(Review in English below)
Assistimos ontem, na Fundação Gulbenkian, à vigésima-oitava e última das óperas
compostas pelo compositor italiano, Giuseppe
Verdi. Estamos a falar da comédia lírica Falstaff, cujo libreto,
escrito por Arrigo Boito (que
colaborou com Verdi também em Otello
e em Un Ballo in Maschera), se baseou
na obra As Alegres Comadres de Windsor, de William Shakespeare.
A ópera, composta entre 1889 e 1893, foi
estreada, obtendo enorme e imediato sucesso, a 9 de Fevereiro de 1893 no Teatro
Alla Scalla, em Milão e foi, apenas, a segunda ópera de cariz cómico de Verdi,
quarenta anos após a primeira e totalmente falhada tentativa com Un
giorgno de regno, que foi retirada do Scalla milanês imediatamente após
a primeira récita.
A história da ópera é conhecida dos amantes da
ópera, pelo que não a descreveremos aqui. Em todo o caso, deixamos o link para o programa de sala
disponibilizado pela Gulbenkian, que inclui, para além da sinopse, um excelente
texto da autoria de Francisco Sassetti acerca de Falstaff.
O Falstaff
de ontem foi apresentado em versão encenada, contando com a participação da
encenadora italiana Rosetta Cucchi.
Apesar de o Grande Auditório da Fundação Gulbenkian não se encontrar preparado
para proceder a grandes encenações, visto tratar-se de uma sala de concertos, foi
preparada uma versão que, poderíamos dizê-lo assim, ficou entre a versão
encenada e a versão de concerto. Não obstante as limitações referidas, a
“semi-encenação” foi muito simples mas eficaz. Foi montado um palco atrás da
orquestra e, num plano mais elevado, surgia, do lado direito, uma barrica de
vinho, adornada por um amplo conjunto de copos e garrafas de bebidas
espirituosas, e uma cadeira alta ao estilo de um bar, que assim criavam o
ambiente de taberna onde Sir John
Falstaff se encontra boa parte do tempo da ópera a tratar de encher a
barrica que carrega dentro do abdómen. Do outro lado, o direito, uma grande
mesa redonda e um candeeiro criavam o ambiente de uma sala onde as Alegres
Comadres confraternizavam, e aos quais se juntou um cesto-baú de verga no
segundo acto, evocando o enorme cesto de roupa suja em que o “enorme” Falstaff
é atirado ao rio para fugir do ciumento marido de Alice Ford, o Sir Ford.
No
terceiro acto, e porque a ação se desenvolve na penumbra de um bosque à
meia-noite, foi aberta a parte de trás do Grande Auditório, que tem vista para
os jardins da Gulbenkian, pelo que o cenário da cena final ficou totalmente em
consonância com as exigências do libretto.
Enfim, e sem querer insistir em Francesco Esposito, que encenou as três óperas
de Verdi que o Teatro São Carlos produziu em Abril e Maio e que foram
amplamente descritas e comentadas neste blog, não podemos deixar de salientar
que Rosetta Cucchi fez, com ainda menos, muito mais!
O maestro foi Lawrence Foster, tendo dirigido a Orquestra Gulbenkian, esteve, em geral, em bom plano, sem ter sido
extraordinário, já que não foi clara a sua abordagem interpretativa da ópera. Nem
foi propriamente cómica, com o foi claramente, por exemplo, Solti na gravação que
fez para a Decca, nem optou por um estilo claramente mais intimista como Abbado
na recente gravação para a Deutsche Grammophon. Por exemplo, no início da ópera
faltou quase totalmente a estridência nos sopros, perdendo-se o início tosco e
cómico de que os sopros devem dar imediatamente nota. Mas, gostos à parte,
insistimos que a orquestra esteve, em geral, bem, tendo sido uma récita
agradável. A
curta participação do Coro Gulbenkian
foi de qualidade.
Sir John Falstaff foi o barítono
norte-americano Lester Lynch. Foi
cénica e interpretativamente muito convincente, tendo cumprido perfeitamente as
exigências cómicas da sua personagem, desde logo, mas não só, porque a sua
figura física é perfeitamente compatível com a descrição de Falstaff: é enorme
e, se as Alegres Comadres conseguissem aprovar o imposto sobre a gordura de que
falam na ópera para castigar Falstaff, não temos dúvidas de que o intérprete
não lhe conseguiria fugir. Tem uma voz muito profunda e muito potente, não
revelando dificuldades nos agudos mais fortes, mas tem um certo grão na voz que
prejudica a clareza na projeção e a dicção.
Sir Ford foi o barítono moldavo Igor Gnidii. Foi, talvez, a melhor voz da
récita. Tem uma voz potente e clara e, do ponto de vista da interpretação,
esteve muito bem, quer vocal, quer cenicamente. Na sua ária principal (se se
puder falar disso nesta ópera) – È sogno,
o realtà? – esteve muito bem e a sua interpretação foi muito correta: nem
foi muito agressivo, como alguns barítonos tendem a ser, apesar das dúvidas
que, não obstante o encontro de Falstaff com Alice até já estar marcado, deviam ter,
nem demasiado descrente no seu ciúme, o que teria dado espaço a uma
interpretação amorfa.
O tenor português Fernando Guimarães foi Fenton. O papel é relativamente pequeno, mas
muito melodioso. Esteve bem, sem ser perfeito, mas cumpriu plenamente o papel.
Tem um timbre muito bonito e boa presença em palco. A projeção da sua voz nem
sempre é a ideal, apresentando por vezes algumas dificuldades, ainda que, desta
vez, menos do que em anteriores situações em que tivemos oportunidade de o
ouvir.
Dr. Caius foi o tenor austríaco Dietmar Kerschbaum. O papel desta
personagem é bastante curto e tem especial importância logo no início do
primeiro acto. Gostámos da sua voz, que é melódica e bastante bem sustentada.
Projetou sempre bem a sua voz e esteve cenicamente bem.
O tenor alemão Paul Kaufmann foi Bardolfo, enquanto que o baixo português Nuno Dias foi Pistola. Gostámos
igualmente de ambos, tendo os dois funcionado muito bem cenicamente sendo as
suas vozes bastante audíveis. Apesar de a sua participação ser bastante limitada,
são das poucas personagens da ópera de cariz estritamente cómico, campo em que
estiveram muito bem e coordenados.
Alice Ford foi encarnada pelo soprano francês Isabelle Cals. Gostámos muito da sua
prestação. Tem um papel central na ópera e conseguiu sê-lo efetivamente, quer
ao nível da sua capacidade vocal, quer no campo da interpretação cénica.
O soprano romeno Liliana Faraon foi Nanneta. Tem um timbre bonito e agradável,
esteve bem cenicamente. Projetou relativamente bem a voz, mas nem sempre com a
sustentação ideal dos agudos, nomeadamente dos mais prolongados.
Renée
Morloc, meio-soprano alemão, foi
Mrs. Quickly. Apresentou uma voz bastante profunda e interpretou muito bem o
seu papel, que tem um carácter essencialmente cómico. Contracenou muito bem com
Falstaff quando surge na taberna para lhe dar conta do “interesse” de Alice e
de Meg Page no amor que Falstaff lhes oferecera.
Meg Page foi interpretada pelo meio-soprano irlandês Zandra McMaster. O papel é praticamente irrelevante do ponto de vista vocal. Entre o quarteto de vozes feminino não tem qualquer destaque individual, ao contrário das outras três personagens. Ainda assim, esteve bem, conquanto não possamos fazer uma apreciação muito concreta da sua voz.
Em suma, foi uma récita bastante boa, que confirma a boa réplica que a Fundação Gulbenkian tem dado nas poucas óperas que têm feito parte da temporada 2012/2013 (relembremo-nos, por exemplo, da excelente A Flauta Mágica de Mozart, com Renée Jacobs) e que abre boas perspectivas para o que se poderá escutar nas versões de concerto da ópera Otello, que terão lugar na próxima quinta-feira (dia 30 de Maio) e no próximo Domingo (dia 2 de Junho), às quais iremos assistir e de que se dará conta neste blog.
Em suma, foi uma récita bastante boa, que confirma a boa réplica que a Fundação Gulbenkian tem dado nas poucas óperas que têm feito parte da temporada 2012/2013 (relembremo-nos, por exemplo, da excelente A Flauta Mágica de Mozart, com Renée Jacobs) e que abre boas perspectivas para o que se poderá escutar nas versões de concerto da ópera Otello, que terão lugar na próxima quinta-feira (dia 30 de Maio) e no próximo Domingo (dia 2 de Junho), às quais iremos assistir e de que se dará conta neste blog.
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(Review in English)
Yesterday, we attended at the Gulbenkian Foundation the twenty-eighth
and last opera composed by Italian composer Giuseppe Verdi. We are talking about the lyrical comedy Falstaff, whose libretto, written by Arrigo Boito (who also collaborated
with Verdi in Otello and Un Ballo in Maschera), was based on the work The Merry Wives of Windsor by William Shakespeare.
The opera, composed between 1889 and 1893,
was premiered at February 9, 1893 at the Teatro Alla Salla in Milan getting
huge and immediate success, and was only
the second Verdi’s comic opera, forty years after the first and utterly failed
attempt to Un Giorgno di regno, which was removed from Scalla immediately after
the first recitation.
Opera lovers know the opera history, so we
will not describe it here. In any case, we leave the link to the room’s program
provided by the Gulbenkian, which includes, beyond the synopsis, an excellent
text by Francisco Sassetti about
Falstaff.
Falstaff was presented in staged version,
with the participation of the Italian stage director Rosetta Cucchi. Although the Grand Auditorium of the Gulbenkian
Foundation not find prepared to make major scenarios, as it is a concert hall, the
version that was prepared, we could say it, thus became between a staged and concert
opera version. Despite these limitations, the "semi-staged" was very
simple but effective. A stage was mounted behind the orchestra. On a higher
plane, it appeared on the right side, a barrel of wine, adorned by a wide set
of glasses and wine bottles, and a high chair in the bar style, so they created
tavern environment where Sir John Falstaff is having great time filling the
barrel that he carries inside his abdomen. On the other hand, at the right side,
a large round table and a lamp created the atmosphere of a room where the Merry
Wives fraternized, and joined them a basket-wicker chest in the second act,
evoking huge laundry basket in which the "huge" Falstaff is thrown
into the river to escape the jealous husband of Alice Ford, Sir Ford. In the third
act, and because the action unfolds in the shadows of a forest at midnight, the
opened back stage of the Grand Auditorium, which overlooks Gulbenkian’s gardens,
was totally perfect and matching libretto’s requirements. Finally, and without
wanting to insist in Francesco Esposito, who staged three Verdi’s operas at Teatro
São Carlos in April and May that were widely described and commented on this
blog, we must point out that Rosetta Cucchi made, with even less money, much
better!
The conductor Lawrence Foster was, directing Gulbenkian Orchestra, generally in
good plan, without being extraordinary, since it was not clear his interpretive
approach of the score. Neither it was strictly comic, as it is clearly, for
example, Solti’s recording for Decca, or intimate as the recent Abbado’s
recording for Deutsche Grammophon. For example, at the beginning of the opera it
nearly completely lacked the stridency in wind instruments, losing the early
rough and humorous that they should immediately take note. But taste aside we insist
that the orchestra was, in general, well, having been a nice recitation. The Gulbenkian Choir interpreted the short
choral role with quality.
Sir John Falstaff was the American baritone
Lester Lynch. He was very scenic and
interpretively compelling, and perfectly fulfilled the requirements of his
comic character from the outset, but not only, because his physical figure is
perfectly compatible with the description of Falstaff: he is huge and if the
Merry Wives managed to approve a tax punnishing fat as they proposed, we have
no doubt that the interpreter will not be able to escape. He has a very deep
voice and very powerful, not revealing difficulties in high pitch notes, but
has certain grit in his voice that impairs clarity in diction and projection.
Sir Ford was the Moldovan baritone Igor Gnidii. He was perhaps the best
voice of recitation. He has a powerful and clear voice, and at the point of
view of interpretation, he did it very well, either vocal or scenically. In his
principal aria (if one can speak of it in this opera) - È sogno, to realtà? – he
was very good and his interpretation was quite correct: neither was very
aggressive, as some baritones tend to be, despite doubts that he should have
because of Falstaff previous arranged meeting with his wife, or too cynical in
his jealousy, which would have given way to an amorphous interpretation.
The Portuguese tenor Fernando Guimarães was Fenton. The role is relatively small, but
very melodic. He was good without being perfect, but fully fulfilled the role. He
has a beautiful timbre and good stage presence. The projection of his voice is
not always ideal, sometimes presenting some difficulties, though, this time,
less than in previous situations where we had the opportunity to hear him.
Dr. Caius was the Austrian tenor Dietmar Kerschbaum. The role of this
character is quite short and is especially important early in the first act. We
liked his voice, which is melodic and very well supported. He always projected
his voice well and was scenically at good level.
The German tenor Paul Kaufmann was Bardolph, while the Portuguese bass Nuno Dias was Pistol. We liked both
equally, and both worked very well scenically and with their voices quite
audible. Although their participation is quite limited, are the few characters
of the opera strictly oriented to be comic, they were very good and
coordinated.
Alice Ford was incarnate by French soprano Isabelle Cals. We enjoyed her
performance very much. She has a central role in the opera and managed it effectively,
both in terms of her vocal ability, and in the field of scenic interpretation.
The Romanian soprano Liliana Faraon was Nanneta. She has a beautiful and pleasant tone, and
she was very well scenically. She projected her voice relatively well, but not
always with the ideal support of high notes, in particular longer ones.
Renée
Morloc, German mezzo-soprano,
was Mrs. Quickly. She presented a very deep voice and played her role very well
which is essentially comic. She was playing opposite very nicely with Falstaff
when she arises the tavern to give account of the "interest" of Alice
and Meg Page in Falstaff love he offered them by letter.
Meg Page was interpreted by Irish
mezzo-soprano Zandra McMaster. The role
is practically irrelevant from the vocal standpoint. Among the quartet of
female voices she has no prominent role, unlike the other three characters.
Still, she was good, although we cannot make a very real appreciation of her
voice.
In short, it was a very good recitation,
which confirms the good replica Gulbenkian Foundation has been given in the few
operas that have been part of the 2012/2013 season (we remember, for example,
the excellent The Magic Flute by Mozart, with Renée Jacobs), and augurs for
what we can hear in concert versions of opera Otello, which will take place
next Thursday (May 30th) and next Sunday (June 2), to which we will attend and
will comment in this blog.
Foi uma noite muito agradável e uma prova de como, com muito menos, se pode fazer muito melhor do que vimos há poucas semanas no São Carlos. Refiro-me ao que o camo_opera salientou, a encenação. Com imaginação e bom gosto conseguem-se resultados muito positivos.
ResponderEliminarA qualidade dos cantores foi também muito superior. Aguardo com expectativa o Otello.
I love the operas based on Shakespearean works. They seem to have deeper meaning for me than many of the standard plots. I also get to read more into the productions.
ResponderEliminarI like Shakespearean plots too. For example, Adès's The Tempest is a fantastic contemporary opera with an excellent plot. And, in a few days, we will write about Otello at FCG in this blog: Verdi's Otello with an marvelous Boito's libretto based on Shakespeare play is one of my favorite.
EliminarYes: the staging is the key to an opera to be unforgettable.
Estive presente também nesta récita. A encenação simples e eficaz, que poderá servir de exemplo para outros locais de ópera que estão a apertar o cinto. Não sei se foi este o caso, mas é preferível um cenário e guarda-fatos minimalista, deixando o resto à nossa imaginação, desviando as verbas para outras áreas como qualidade dos intérpretes.
ResponderEliminarConcordo em geral com a critica, mas acho que o granulado de que refere na voz é fácil de ultrapassar dado a qualidade do instrumento vocal de Lester Lynch: poderoso, agradável ao ouvido e afinado. Mas há males que devem vir por bem, e Lynch esteve impecável quer a cantar, quer na expressão dramática e linguagem corporal. Aguardo com expectativa a sua interpretação de Iago em Otello.
Cumprimentos
Ótima crônica!
ResponderEliminarO blog dos fanáticos presta um serviço de primeira e todos os colaboradores escrevem muito bem!
Um abraço
Olá, é possível conseguir o libretto com tradução para o português? O TNSC sempre disponibilizou este com a tradução completa. Como posso ter acesso a isso? Obrigado
ResponderEliminaremail: fabiosiniscarchio@gmail.com