De José António Miranda, mais
uma contribuição para o blogue:
PAGLIACCI
(Ruggero Leoncavallo)
Ópera em dois Actos
(1892)
Libreto de Ruggero
Leoncavallo
▪ Direcção musical: Martin André
▪ Encenação: Rodula Gaitanou
▪ Cenografia: José Capela
▪ Roupas: Mariana Sá Nogueira
▪ Luzes: Rui Monteiro
▪ Fotografias: José Carlos Duarte
▪ Canio: Peter Auty
▪ Nedda: Norah Amsellem
▪ Tonio: Igor Gnidii
▪ Peppe: Carlos Guilherme
▪ Silvio: Thomas Lehman
▪ Aldeãos: João Queirós, João Rosa
▪ Orquestra Sinfónica Portuguesa
▪ Coro do Teatro Nacional de São Carlos
Dir. Giovanni Andreoli
▪ Coro Juvenil de Lisboa Dir. Nuno Margarido Lopes
▪ Produção: Teatro Nacional de São Carlos (2017)
Pagliacci, de
Leoncavallo, inserida como primeira parte de uma programação dupla, é um
acontecimento relativamente habitual, dada a reduzida extensão temporal da
obra. Quando assim é, o critério determinante para a escolha das obras e da sua
ordenação é com frequência a autoria comum.
Não foi assim desta vez, e por força de acasos que não
interessam aqui, também a encenação foi neste caso entregue a diferentes
autores.
Independentemente destes factos, a verdade é que a ópera
de Leoncavallo tem por si só valia mais do que suficiente para suportar uma
apresentação isolada.
E portanto, podendo tal
apresentação ser apreciada independentemente das circunstâncias em que é feita,
vejamos então brevemente o que foi esta sua presença no São Carlos.
Fotografias de Jorge Carmona / Antena 2 RTP
Se quiséssemos resumir em
poucas linhas o que pudemos ver diríamos que se trata de uma proposta cénica
convencional demonstrando contudo a agilidade operacional suficiente para a
libertar dos excessos decorativistas tão frequentes neste campo e neste
repertório. Mérito da encenação.
Porém, sob o ponto de vista
conceptual, e se acreditarmos nas palavras da encenadora, a proposta estaria
investida de um valor simbólico, metadramático. E ainda, se fizermos fé nas
palavras do director artístico da casa, a mesma proposta estaria vocacionada
para abrir uma série de futuras iniciativas centradas nesse valor a partir da
sua explicitação cenográfica.
Deixando de lado tais
afirmações, pareceu-nos que em verdade o espectáculo não logrou alcançar a
profundidade simbólica alegadamente desejada, e vamos tentar explicar porquê.
É verdade que a ópera começa
de forma auspiciosa, com o palco do teatro ambulante disposto no meio da cena
enquanto à sua volta vão rodando os futuros espectadores, aldeãos na alegria do
regresso da companhia de saltimbancos, num movimento circular.
E a solução adoptada pouco
depois para a construção das estátuas que reproduzem os elementos decorativos
escultóricos que ladeiam o proscénio do São Carlos, como num jogo de puzzle nas
mãos de múltiplos agentes, é plasticamente muito bela.
Mas a partir desse momento, e
algo surpreendentemente, esta dinâmica é interrompida, como se tudo parasse. E
em vez de se completar a construção desse palco maior por sobre o pequeno palco
do teatro ambulante é este que, rodando agora ele também, nos revela a sua
outra face, o palco e a quarta parede do São Carlos.
A razão pela qual a encenação
optou por este salto qualitativo na narrativa cenográfica passa-nos ao lado.
De facto essa opção parece
algo irracional, pois torna de imediato gratuito todo o laborioso processo
anterior de construção, transformando aliás as estátuas-puzzle laterais em
elementos cenográficos redundantes, desnecessários, inúteis porque integrando,
embora em menor escala, a quarta parede do teatro. Não por acaso por isso não
voltaremos a ver esses elementos.
O problema maior reside porém
na ruptura que esta opção provoca na leitura semântica da obra. Não chega
colocar em cena um mini-palco caricatural e anunciar meta-teatro para que este
aconteça. O processo de identificação permitido pela dinâmica inicial sofre
aqui uma brutal interrupção que remete tudo o que se passa depois para a
categoria do anedótico.
Não somos já nós, os
espectadores na sala do São Carlos, que entramos como pares dos aldeãos na
tosca plateia de tábuas corridas para a representação final.
Pelo contrário, a partir daqui
somos simplesmente remetidos para o nosso lugar de passivos assistentes de uma
peça que vai ser representada numa caricatura da nossa sala para outros
espectadores aos quais somos estranhos, os aldeãos.
Não sendo original, esta
solução de reproduzir o palco do teatro no palco não consegue assim neste caso
ultrapassar a mera função mecânica determinada pela narrativa do libreto.
Porém, e algo inesperadamente,
ela tem aqui o mérito de funcionar de algum modo como uma metáfora do estado
actual do nosso teatro lírico: uma espécie de casa de ópera pobre que naquilo
que nos apresenta se aproxima dos padrões habituais do teatro ambulante tão bem
caricaturados na obra de Leoncavallo.
De algum modo correspondendo
harmonicamente a esta impressão visual foi também o que se ouviu. Uma
orquestra tosca por ausência de quem lhe tome o pulso e lhe dê rumo,
acompanhando um elenco de província, num entorno pobre, para gáudio de um
público ávido porque faminto, mas por isso mesmo pouco exigente em relação ao
que se passa em palco.
Contudo não é suficiente
dizer que a orquestra funcionou em modo rotineiro. Martin André não impediu
alguns desacertos e a sua direcção foi pesada, sem qualquer subtileza. E assim,
a interpretação orquestral apenas ganhou alguma consistência no final.
Pelo contrário, a
interpretação dramática foi em geral razoável, apesar de que Gaitanou apenas
conseguiu fazer expressar plenamente toda a força do libreto no acto final em palco
à la commedia del’arte.
Canio o palhaço esteve bem e
Nedda a mulher, algo estridente no registo agudo. Em geral o Peppe de Carlos
Guilherme terá sido talvez o mais equilibrado.
Contrastando com os solistas,
o coro, cuja deslocação em palco foi em geral muito bem conseguida,
apresentou-se sem qualquer subtileza numa berraria cansativa e
inexpressiva: la commedia e stupenda!.
JAM
10/04/2017