Em Outubro de 2014 desloquei-me profissionalmente a
Bucareste. Embora inicialmente tivesse a intenção de assistir a algumas récitas
de ópera, na Ópera Nacional de Bucareste –
cujas temporadas são sempre muito ricas e variadas – tal não foi
possível devido ao facto de a sala estar a sofrer obras de remodelação.
Acabei por conseguir bilhetes
para um concerto de música de câmara no Ateneu Romeno (Ateneului Român),
que é simplesmente uma das mais belas salas que já tive a oportunidade de
visitar.
Trata-se de um edifício da
segunda metade do séc. XIX, no mais puro estilo neoclássico. O seu interior é
ricamente decorado, com mármores multicolores e escadarias imponentes e a sala
de concertos é redonda, encontrando-se as paredes pintadas com frescos
maravilhosos, evocando a história da Roménia.
Sala que acolhe também a
Filarmónica George Enescu, a principal orquestra da Roménia.
O concerto, ocorrido no Dia
Mundial da Música, foi patrocinado pela Embaixada de Itália e ocorreu sob a
égide da presidência italiana do Conselho da UE.
Contou com o consagrado
violinista Uto Ughi e com o não menos famoso pianista Bruno Canino.
O programa poderia ter sido um
pouco mais interessante, na medida em que se centrou, no essencial, em obras de
cariz virtuosístico para o violino e em que o piano apenas desempenha uma
função de acompanhamento.
Nesse âmbitoo recital abriu com a
sonata para violino em sol menor, de Giuseppe Tartini, conhecida como
“Le Trille du Diable”.
Uto Ughi tocou a peça com
bravura, ultrapassando todas as dificuldades técnicas colocadas pela mesma com
grande facilidade, ao mesmo tempo que colocava em evidência o escuro e
aveludado timbre do Stradivarius que tocava.
Veio depois a obra mais
interessante da noite: a sonata para violino e piano n.º 9, op. 47 “Kreutzer”,
de Beethoven.
Trata-se, porventura, da mais
interessante das obras para esta formação compostas por Beethoven e que desde o
seu início gerou opiniões contraditórias. O seu dedicatário, o violinista
francês Rodolphe Kreutzer, recusou-se sempre a tocá-la em público, declarando-a
ininteligível. À data da sua publicação, em 1805, a imprensa de Viena
qualificou-a como “terrorismo musical”, certamente impressionada pelos seus ritmos
abruptos, pelo dramatismo da melodia, pelos contrastes muito marcados e pela
energia quase selvagem que dela se desprende.
Não foi também por acaso que
Tolstoi a escolheu como símbolo do seu célebre romance “Sonata a Kreutzer”...
De forma diferente do que sucede
com as demais peças tocadas neste concerto, em que o violino assume o papel
principal e o piano se reduz a simples acompanhador, nesta sonata o que temos é
um verdadeiro duelo entre ambos os instrumentos, sem qualquer prevalência de um
sobre o outro.
Foi precisamente aí que a versão
trazida por Uto Ughi e Bruno Canino falhou, na medida em que o pianista não
assumiu o protagonismo que a natureza da peça impunha. Ao invés, face a um Uto
Ughi impetuoso, tivemos um Bruno Canino apagado e discreto, o que
comprometeu toda a arquitectura da obra. Apenas no andamento final Canino
demonstrou algum fulgor, mas ainda assim insuficiente para atingir o equilíbrio
que a peça pressupõe.
Em qualquer caso, foi uma leitura
correcta e em que o belíssimo timbre do violino tocado por Ughi proporcionou
belos momentos.
Na segunda parte foram tocadas as
“Quatro peças românticas”, de Dvorak, a “Introdução e Rondó Caprichoso”,
de Camille Saint-Saëns e a “Fantasia Carmen”, de Sarasate.
Em todas elas Ughi brilhou e
demonstrou um domínio absoluto do instrumento, tendo Canino desempenhado a sua
função acompanhadora com correcção.
Em extra-programa, o duo brindou-nos com a conhecida
“Ronde des Lutins”, de Antonio Bazzini, uma peça a exigir um virtuosismo
funambulesco, que Uto Ughi tocou com brilhantismo.
Embora me tenha parecido um
programa algo desequilibrado, por colocar em demasiado destaque o violino, em
detrimento do piano, tratou-se de um serão muito agradável e uma oportunidade
única de assistir a um concerto numa das mais belas salas do mundo destinadas à
execução musical.
Violin and piano recital, Romanian Athenaeum, Bucharest, 1st October 2014
Last
October 2014 I went on a professional trip to Bucharest.
Although
initially I intended to attend some opera at the National Opera of Bucharest -
whose seasons are always very rich and varied - this was not possible due to
the fact that the House was undergoing refurbishment works.
I ended
up getting tickets for a chamber music concert at the Romanian Athenaeum
(Ateneului Român), which is simply one of the most beautiful concert halls I've
ever had the opportunity to visit.
It is a
building of the second half of the 19th century, in the purest
neoclassical style. Its interior is richly decorated with multicolored marbles
and impressive staircases and the concert hall is round, with amazing fresco
painted walls, evoking the history of Romania.
This
concert hall houses the George Enescu Philharmonic, the main orchestra of
Romania.
The
concert, which took place on World Music Day, was sponsored by the Embassy of
Italy and ocurred under the auspices of the Italian Presidency of the EU
Council.
It
featured the recognised violinist Uto Ughi the no less famous pianist Bruno
Canino.
The
program could have been a little more interesting, since it focused mainly on
virtuosic works oriented towards the violin, in which the piano only performs
an accompaniment function.
The
recital opened with the violin sonata in G minor, by Giuseppe Tartini, known as
“Le Trille du Diable”.
Uto Ughi
played the part bravely, surpassing all the technical difficulties involved in
it with great ease, while putting in evidence the dark and velvety timbre of
the Stradivarius he was playing.
Then came
the most important piece of the evening: the Sonata for violin and piano no. 9,
op. 47 "Kreutzer", by Beethoven.
This is
perhaps the most interesting of the works for this formation composed by
Beethoven and ever since it has been generating contradictory opinions. Its
dedicatee, the french violinist Rodolphe Kreutzer, has always refused to play
it in public, since he considered it unintelligible. When it was published, in
1805, the press of Vienna described it as "musical terrorism",
certainly impressed by its abrupt rhythms, by the drama contained in the
melody, by its sharp contrasts and its almost savage energy.
It was also
no accident that Tolstoy chose it as a symbol of his famous novel "The
Kreutzer Sonata" ...
Different
from what happens with the other pieces played in this concert, in which the
violin takes center stage and the piano is just accompaniment, this sonata is a
real duel between both instruments, without any prevalence of one over the
other.
Precisely
at that point the version performed by Ughi and Canino failed, since the
pianist did not assume the role imposed by the very nature of the piece.
Instead, faced with a fierce Uto Ughi, was a shallow and discreet Bruno Canino,
which compromised the entire structure of the work. Only in the final movement
Canino showed some glow, but still insufficient to achieve the balance the
piece requires.
In any
case, it was a correct reading and the beautiful timbre of the violin played by
Ughi provided beautiful moments.
After
intermission they played the "Four romantic pieces" by Dvorak, the
"Introduction and Rondo Capriccioso" by Saint-Saëns and "Carmen
Fantasy" by Sarasate.
In each
one of them Ughi demonstrated an absolute mastery of the instrument, and Canino
performed his accompanist function correctly.
As an
extra-program, the duo performed the famous "Ronde des Lutins" by
Antonio Bazzini, a piece demanding a funambulartory virtuosity, brilliantly
played by Uto Ughi.
Although it seemed a
somewhat unbalanced program to me, by putting too much emphasis on the violin
instead of the piano, this was a very pleasant evening and a unique opportunity
to attend a concert in one of the most beautiful concert halls in the world.