domingo, 20 de setembro de 2015

Der Ring des Nibelungen - Sófia, 4 a 9 de Julho de 2015


(review in English below)

O ciclo “Der Ring des Nibelungen”, de Richard Wagner é, seguramente, uma das mais extraordinárias realizações artísticas da Humanidade e um marco incontornável na história da música, em particular da ópera.
Quer pela sua extensão, quer pela extraordinária riqueza da sua invenção musical, quer ainda pela multiplicidade das suas dimensões simbólicas e filosóficas, a sua apresentação constitui um desafio que nenhuma companhia ou casa de ópera pode encarar de ânimo leve. A sua levada a cena exige não só um alargado naipe de cantores com características difíceis de reunir, como também uma orquestra de dimensões acima do comum (Wagner previu 124 músicos) e infra-estruturas cénicas muito exigentes.
Todo o ciclo representa também um elevado desafio para o encenador e para o director musical, dos quais depende, em grande medida, a capacidade de lhe conferir unidade e significado.

(Fosso da orquestra em Bayreuth / Orchestra Pit at Bayreuth)

Uma breve introdução a esta monumental obra de Richard Wagner pode ler-se aqui.

Embora conheça muito bem o “Ring” em termos discográficos – na minha discoteca está representado com treze gravações integrais em CD e uma em DVD (Boulez) – nunca tinha tido a oportunidade de assistir a uma sua representação ao vivo.
Essa oportunidade surgiu agora, em Sófia, na sua Ópera Estatal e foi, de facto, uma experiência marcante.
Para comemorar os 200 anos do nascimento de Richard Wagner, a Ópera de Sófia decidiu encenar o primeiro “Ring” integral a ser apresentado na Bulgária. E decidiu fazê-lo recorrendo exclusivamente a cantores búlgaros (mais de 200), à Orquestra, Coro e Corpo de Bailado da Ópera de Sófia, o que não deixa de ser um feito notável. Suponho que poucas casas de ópera pelo mundo fora se possam orgulhar de um tal empreendimento e com o grau de sucesso que tem obtido.
Por outro lado, o recurso exclusivo a cantores búlgaros constitui uma demonstração de grande pujança de uma escola de vozes que legou muitos nomes célebres à arte lírica, embora poucos deles se tenham destacado no repertório wagneriano.

(Ópera de Sófia / Sofia Opera House)

O “Ring” de Sófia é o culminar de um processo longo, pois começou com a apresentação de cada uma das quatro óperas ao longo das temporadas 2009/2010 até 2012/2013. Em Julho de 2013, pela primeira vez, foram apresentadas nos termos preconizados por Wagner, ou seja, como um Bühnenfestspiel composto por um Vorabend e três dias, ao longo de uma semana.
O sucesso do projecto levou a novas apresentações em 2014 e 2015, em Sófia, e em Setembro de 2015, no Festspielhaus de Füssen, na Alemanha.

A encenação ficou a cargo de Plamen Kartaloff, membro da Academia de Ciências da Bulgária e director da Ópera de Sófia e a direcção musical a cargo do maestro alemão Erich Wächter.

(Plamen Kartaloff)

Nos textos que dedicarei a cada uma das quatro óperas que compõem o ciclo falarei de modo mais pormenorizado sobre os cantores intervenientes, a prestação da orquestra e abordarei as questões relativas à encenação de forma mais específica.
Neste primeiro texto introdutório gostaria apenas de tecer algumas considerações mais genéricas, suscitadas pela impressão geral que me ficou do ciclo como um todo.

A actual Ópera de Sófia abriu portas em 1953 e constitui um edifício de cariz neoclássico, de dimensões médias, encontrando-se integrado em plena malha urbana, com a fachada principal virada para uma pequena e estreita rua secundária.

(Ópera de Sófia / Sofia Opera House)

O seu interior é tradicional, de dimensões médias, dispondo de plateia e dois balcões, sem camarotes.
Uma vez que os bilhetes eram vendidos separadamente para cada ópera, acabei por me sentar em quase todas as zonas da sala. A plateia apresenta claramente as melhores condições acústicas e de visibilidade, sendo que nos balcões a acústica e a visibilidade ficam um pouco prejudicadas.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

O fosso orquestral é pequeno e não permite acomodar uma orquestra com a dimensão ideal para tocar Wagner. Dessa forma, os naipes de cordas acabaram por ser os mais prejudicados, especialmente os violoncelos e contrabaixos, em pequeno número.


(Orquestra da Ópera de Sófia / Sofia Opera Orchestra)

No cômputo global, posso dizer que a prestação orquestral foi o ponto mais fraco do “Ring” de Sófia. De facto, para além da dimensão reduzida da orquestra se reflectir sobre o volume sonoro que é expectável em alguns momentos da obra, penso que a Orquestra da Ópera de Sófia não possui ainda o nível qualitativo das suas congéneres do centro da Europa ou Estados Unidos. As falhas foram frequentes e incidiram especialmente sobre as madeiras e os metais, sabendo-se que este último é um dos naipes cuja intervenção é mais exigente. Mas também as cordas demonstraram alguma inconsistência, com desafinações frequentes e desacertos nos ataques.
Todavia, no final a orquestra foi muito aplaudida e importa salientar o enorme esforço físico e intelectual que representa tocar cerca de 15 horas de música em quatro dias.

(Orquestra da Ópera de Sófia / Sofia Opera Orchestra)

A direcção musical de Erich Wächter foi correcta e sóbria. Imprimiu, no geral, tempos moderados, notando-se sempre a preocupação de suportar as vozes dos cantores, que nunca abafou. Conseguiu sempre manter texturas orquestrais transparentes, o que permitiu uma escuta mais analítica da música. Dessa forma, embora por vezes tenha faltado alguma poesia ou empolgamento, tal foi contrabalançado pela grande facilidade em ouvir os leitmotive em todas as suas vertentes e transformações.

(Erich Wächter - Foto de Barbara Bönsch)

A encenação ficou a cargo de Plamen Kartaloff. Confesso que as primeiras imagens que vi na net me deixaram algo apreensivo, pois os cantores pareciam personagens de filmes de ficção científica dos anos 80. Contudo, penso que a encenação apresentou aspectos bastante positivos e, no essencial, serviu bem a obra.
Embora os cenários e os figurinos nos transportem para um universo difícil de identificar, num misto de figuras monstruosas e fatos prateados que lembram os cantores pop dos anos 80, a encenação como um todo é bastante tradicional, na medida em que ilustra de forma literal a acção da ópera, tal como está escrita. Em cena as personagens executam precisamente aquilo que o libreto indica e o desenvolvimento da acção acompanha a história. Não há reinterpretações e muito menos contradição entre o que se passa no palco e o que é cantado e consta da partitura.

Trata-se de uma opção perfeitamente válida e que faz sentido se pensarmos que esta é a primeira apresentação do “Der Ring des Nibelungen” na Bulgária, pensada em primeiro lugar para a audiência nacional. Todavia, penso que em alguns aspectos a encenação foi demasiado explícita, mostrando no palco aquilo que cabe à música representar, especialmente quando o uso dos leitmotive desempenha, em grande medida, essa função.
Como se sabe, o “Ring”, pelas vicissitudes e ordem da composição, está cheio de relatos e alusões que resumem aquilo que já sucedeu nas óperas anteriores. Ora, cada vez que uma personagem aludia a qualquer acontecimento ou a orquestra fazia ouvir o leitmotiv de qualquer outra personagem, o encenador fazia-a entrar em cena sob uma forma fantasmagórica, como que tornando visualmente explícito aquilo que a música já sugeria de forma cabal.
Penso que por vezes se exagerou nesta prática, o que, de certo modo, se traduziu numa certa de desvalorização da música de Wagner, designadamente do papel que nela desempenham os leitmotive.

Um ponto bastante bem conseguido foi o facto de a encenação e do trabalho de palco ter sido coerente com a continuidade do fluxo musical. As cortinas nunca foram fechadas e/ou a música interrompida para alteração de cenário, pois este ia-se modificando continuamente, adaptando-se à música e à acção.

O encenador recorreu a um conjunto de figuras simbólicas que se iam transmutando consoante a acção dramática. Neste aspecto, importa destacar a presença permanente em palco de um gigantesco anel, que tanto se apresentava na sua forma circular e completa, como se ia separando em dois semi-círculos, formando arcos, mandorlas ou outras figurações.
Para além desse enorme anel de 12 metros de diâmetro, outro objecto bastante presente foi o cone, que tanto assumiu o papel de castelo (Walhalla), como de cavalo (das Valquírias) e que simboliza, de acordo com o texto do encenador no programa de sala, a ligação entre o céu e a terra.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

Um aspecto muito agradável foi a existência de dupla legendagem, em búlgaro e em inglês, o que é demonstrativo do excelente acolhimento dado ao público estrangeiro.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

A este propósito, não posso deixar de dirigir publicamente uma palavra de grande apreço para com o Director de Relações Públicas da Ópera de Sófia, Dimitar Sotirov, com quem travámos conhecimento aquando do levantamento dos ingressos na bilheteira da Ópera e que nos acolheu com grande gentileza, interessando-se pela nossa opinião relativamente a todos os aspectos das récitas a que íamos assistindo, pedindo-nos para falar à televisão búlgara e convidando-nos para um cocktail dado pela Ópera de Sófia no final do “Götterdammerung”, com a presença de alguns cantores e do maestro, o que foi muito agradável.

Outro aspecto muito interessante foi o facto de, à semelhança da tradição de Bayreuth, o início de cada récita ser precedido por uma fanfarra tocada pelos metais, com temas extraídos da ópera respectiva. Fanfarra essa que, como em Bayreuth, era repetida por três vezes, 30, 20 e 10 minutos antes do início da ópera.

(Fanfarra antes do início da ópera / Fanfare before opera)

Foi também a oportunidade para conhecer outros melómanos wagnerianos de todo o mundo, para trocar experiências e impressões e para discutir as récitas.

Em suma, foi uma experiência musical muito gratificante e que seguramente nunca irei esquecer.


Der Ring des Nibelungen – Sofia, 4th – 9th July 2015


The “Der Ring des Nibelungen” cycle, by Richard Wagner, is surely one of the most extraordinary artistic achievements of mankind and an essential milestone in the history of music, particularly opera.
Either by its extension, or the extraordinary richness of its musical invention, or even the multiplicity of its symbolic and philosophical dimensions, its presentation is a challenge that no company or opera house can face lightly. Making it happen requires not only gathering singers with features which are hard to find, but also a larger than normal orchestra (Wagner asked for 124 players) and very demanding scenic infrastructures.
The whole cycle also represents a high challenge to the director and the music director, on whom depends to a large extent, the ability to confer it unity and meaning.

A brief introduction to this monumental work of Richard Wagner can be read here.

Although I know the “Ring” very well in discographic terms - in my record collection it is represented with thirtheen complete CD cycles and a DVD cycle (Boulez) – I had never had the opportunity to attend a live performance.
That opportunity has now arisen, in Sofia, in his State Opera and was in fact a remarkable experience.
To celebrate the 200th anniversary of the birth of Richard Wagner, the Sofia Opera decided to stage the first complete “Ring” in Bulgaria. They decided to do it using only Bulgarian singers (over 200), the Orchestra, Chorus and Opera Ballet Corps of Sofia Opera, which is nonetheless a remarkable achievement. I suppose that few opera houses around the world can be proud of such a project and the degree of success it has achieved.
On the other hand, the exclusive use of Bulgarian singers shows te great strength of a school of voices that has given many famous names to the lyrical art, although few of them have stood out in the Wagnerian repertoire.

The “Ring” of Sofia is the culmination of a long process because it started with the presentation of each of the four operas throughout the seasons 2009/2010 to 2012/2013. In July 2013 it was presented for the first time as Wagner thought: a Bühnenfestspiel  structured in three days preceded by a Vorabend, performed over one week.
The success of the project led to new presentations in 2014 and 2015, in Sofia, and in September 2015 in the Festspielhaus in Füssen, Germany.

The staging was done by Plamen Kartaloff, member of the Bulgarian Academy of Sciences and Director of the Sofia Opera and the musical direction was in the hands of the German conductor Erich Wächter.

In the forthcoming texts devoted to each of the four operas that make up the cycle I will speak in more detail about the singers, the performance of the orchestra and will discuss the issues of staging more specifically.
In this first introductory text, I would just like to make a few more general considerations raised by the general impression I got of the cycle as a whole.

The current Sofia Opera House was opened in 1953 and is a neoclassic building, medium-sized, lying fully integrated into the urban fabric, with the main facade facing a small, narrow side street.
The interior is traditional, medium-sized, offering parterre and two balconies without boxes.
As the tickets were sold separately for each opera, I ended up sitting down in almost all areas of the hall. The parterre clearly has the best acoustics and visibility conditions; in the balconies acoustics and visibility are slightly less impressive.

The orchestra pit is small and can not accommodate an orchestra with the ideal size to play Wagner. Thus, the strings section was the most affected, especially the cellos and double-basses, which were insufficient in number.
In the overall context, I can say that the orchestral performance was the weakest point of the Sofia “Ring”. In fact, apart from the small size of the orchestra reflect on the sound volume that is expected in some of the work moments, I think the Orchestra of the Sofia Opera does not yet have the qualitative level of their counterparts in central Europe or in the United States. The failures were frequent and occurred, especially on woodwinds and brass, given that the latter is one of the sections whose role is more demanding. But also the strings showed some inconsistency with frequent out of tune playing and imprecisions in the attacks.
However, in the end the orchestra was greatly applauded and it should be noted the enormous physical and intellectual effort that is playing about 15 hours of music in four days.

The musical direction of Erich Wächter was correct and sober. He favore, on the whole, moderate times, always with the concern of supporting the voices of the singers, who were never muffled by the orchestra. He always managed to maintain transparent orchestral textures, allowing a more analytical listening to the music. Thus, although sometimes has missed some poetry or thrill, this was conterbalanced by the ease in listening the leitmotivs in all its forms and transformations.

The staging was done by Plamen Kartaloff. I confess that the first images I saw on the net left me somewhat apprehensive, for the singers looked like characters from science fiction movies of the 80s However, I think the staging presented very positive aspects and essentially served well the opera.
Although the sets and costumes transport us to difficult to identify universe, in a mixture of monstrous figures and silver costumes reminiscent of the pop singers of the 80s, the staging as a whole is quite traditional in that it illustrates literally the Opera action, as it is written. On stage, the characters perform precisely what the libretto states and the development of action follows the story. There are no reinterpretations let alone contradiction between what is happening on stage and what is being sung or written in the score.
This is a perfectly valid option and it makes sense if we think that this is the first presentation of “Der Ring des Nibelungen” in Bulgaria, designed primarily for a Bulgarian audience. However, I think that in some respects, the staging was too explicit, showing on stage what it is to be represented by music, especially when the use of leitmotivs plays, to a large extent, this function.
As we know, because of its specificities and order of composition, the “Ring” is full of narrations that summarize what has happened in earlier operas. The problem is that, each time a character alludes to any past event or the orchestra plays the leitmotiv of any other character or event, the director puts it on the stage, like a “phantom”, making visually explicit what the music already suggested adequately enough.
I think this practice was exaggerated, which somehow translates into a kind of devaluation of Wagner's music, particularly of the role played by leitmotivs.

A point quite well done was the fact that the staging and stage work have been consistent with the continuity of the musical flow. The curtains were never closed and / or the music stopped for change of scenery. The scenarios changed continuously, adapting to music and action.
The director used a set of symbolic figures that were transmuting according to dramatic action. In this respect, it is worth mentioning the permanent presence on stage of a gigantic ring, which both presented itself in its circular and in full, as it was separating into two semi-circles, arcing, mandorlas or other figurations.
In addition to this enormous 12 meters wide ring, another very present object was the cone, which both assumed the role of a castle (Walhalla), as horse (of the Valkyries) and symbolizing, according to the text of the Director in the program, a link between heaven and earth.

A very nice aspect was the existence of dual subtitling in Bulgarian and English, which is demonstrative of the excellent reception given to foreign audiences.
In this regard, I must publicly address a word of great appreciation to the Sofia Opera Public Relations Manager, Dimitar Sotirov, who met us when picking up the tickets at the box office and welcomed us with great kindness, always asking for our opinion on all aspects of the performances that we were watching, asking us to speak to the Bulgarian TV and inviting us for a cocktail given by the Sofia Opera after “Götterdammerung”, with the presence of some singers and conductor, which was very pleasant.

Another very interesting aspect was the fact that, like the Bayreuth tradition, the beginning of each performance was preceded by a fanfare played by brass players, with motives taken from the opera that is about to start. As in Bayreuth, the fanfares were repeated three times, 30, 20 and 10 minutes before the start of the performance.

It was also the opportunity to meet other wagnerites from around the world, to exchange experiences and impressions and to discuss the performances.

In a whole, it was a very rewarding musical experience and surely I will never forget it.

2 comentários:

  1. Obrigado por este excelente texto introdutório, tão expressivo e elucidativo do que foi este Anel, "instage" e "offstage". E é o primeiro publicado sobre um (ou melhor quatro) espectáculos na Bulgária.
    Assistir a um Anel completo é sempre uma experiência inesquecível, dada a dimensão da obra nas suas múltiplas componentes. Nunca tive a sorte de ver um Anel nestas condições, o mais que se lhe aproximou terá sido o de Copenhaga, há já uma década. e ainda hoje o recordo com muita saudade.
    Estou ansioso por ler os textos que lá virão, mais focados nas diferentes óperas.

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  2. Obrigado pelas suas palavras e espero que os textos estejam à altura das expectativas!
    De facto, a experiência de assistir ao Anel foi inolvidável e abriu-me o apetite para tentar mais vezes.
    No último dia, em conversa com o Director de Relações Públicas da Ópera de Sófia, ele referiu, com grande orgulho, que em 2014 esteve presente uma wagneriana que terá o recorde das assistências a ciclos completos do Anel (76 Anéis!) e que ficou muito bem impressionada.

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