(review in English below)
O ciclo “Der Ring des Nibelungen”, de Richard
Wagner é, seguramente, uma das mais extraordinárias realizações artísticas
da Humanidade e um marco incontornável na história da música, em particular da
ópera.
Quer pela sua extensão, quer pela
extraordinária riqueza da sua invenção musical, quer ainda pela multiplicidade
das suas dimensões simbólicas e filosóficas, a sua apresentação constitui um
desafio que nenhuma companhia ou casa de ópera pode encarar de ânimo leve. A
sua levada a cena exige não só um alargado naipe de cantores com
características difíceis de reunir, como também uma orquestra de dimensões
acima do comum (Wagner previu 124 músicos) e infra-estruturas cénicas muito
exigentes.
Todo o ciclo representa também um
elevado desafio para o encenador e para o director musical, dos quais depende,
em grande medida, a capacidade de lhe conferir unidade e significado.
(Fosso da orquestra em Bayreuth / Orchestra Pit at Bayreuth)
Uma breve introdução a esta
monumental obra de Richard Wagner pode ler-se aqui.
Embora conheça muito bem o “Ring”
em termos discográficos – na minha discoteca está representado com treze
gravações integrais em CD e uma em DVD (Boulez) – nunca tinha tido a
oportunidade de assistir a uma sua representação ao vivo.
Essa oportunidade surgiu agora,
em Sófia, na sua Ópera Estatal e foi, de facto, uma experiência marcante.
Para comemorar os 200 anos do
nascimento de Richard Wagner, a Ópera de Sófia decidiu encenar o primeiro
“Ring” integral a ser apresentado na Bulgária. E decidiu fazê-lo recorrendo
exclusivamente a cantores búlgaros (mais de 200), à Orquestra, Coro e Corpo de
Bailado da Ópera de Sófia, o que não deixa de ser um feito notável. Suponho que
poucas casas de ópera pelo mundo fora se possam orgulhar de um tal
empreendimento e com o grau de sucesso que tem obtido.
Por outro lado, o recurso
exclusivo a cantores búlgaros constitui uma demonstração de grande pujança de
uma escola de vozes que legou muitos nomes célebres à arte lírica, embora
poucos deles se tenham destacado no repertório wagneriano.
(Ópera de Sófia / Sofia Opera House)
O “Ring” de Sófia é o culminar de
um processo longo, pois começou com a apresentação de cada uma das quatro
óperas ao longo das temporadas 2009/2010 até 2012/2013. Em Julho de 2013, pela
primeira vez, foram apresentadas nos termos preconizados por Wagner, ou seja,
como um Bühnenfestspiel composto por um Vorabend
e três dias, ao longo de uma semana.
O sucesso do projecto levou a
novas apresentações em 2014 e 2015, em Sófia, e em Setembro de 2015, no
Festspielhaus de Füssen, na Alemanha.
A encenação ficou a cargo de Plamen
Kartaloff, membro da Academia de Ciências da Bulgária e director da Ópera
de Sófia e a direcção musical a cargo do maestro alemão Erich Wächter.
(Plamen Kartaloff)
Nos textos que dedicarei a cada
uma das quatro óperas que compõem o ciclo falarei de modo mais pormenorizado
sobre os cantores intervenientes, a prestação da orquestra e abordarei as
questões relativas à encenação de forma mais específica.
Neste primeiro texto introdutório
gostaria apenas de tecer algumas considerações mais genéricas, suscitadas pela
impressão geral que me ficou do ciclo como um todo.
A actual Ópera de Sófia abriu
portas em 1953 e constitui um edifício de cariz neoclássico, de dimensões
médias, encontrando-se integrado em plena malha urbana, com a fachada principal
virada para uma pequena e estreita rua secundária.
(Ópera de Sófia / Sofia Opera House)
O seu interior é tradicional, de
dimensões médias, dispondo de plateia e dois balcões, sem camarotes.
Uma vez que os bilhetes eram
vendidos separadamente para cada ópera, acabei por me sentar em quase todas as
zonas da sala. A plateia apresenta claramente as melhores condições acústicas e
de visibilidade, sendo que nos balcões a acústica e a visibilidade ficam um
pouco prejudicadas.
(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)
O fosso orquestral é pequeno e não permite acomodar uma
orquestra com a dimensão ideal para tocar Wagner. Dessa forma, os naipes de
cordas acabaram por ser os mais prejudicados, especialmente os violoncelos e
contrabaixos, em pequeno número.
(Orquestra da Ópera de Sófia / Sofia Opera Orchestra)
No cômputo global, posso dizer
que a prestação orquestral foi o ponto mais fraco do “Ring” de Sófia. De facto,
para além da dimensão reduzida da orquestra se reflectir sobre o volume sonoro
que é expectável em alguns momentos da obra, penso que a Orquestra da Ópera de
Sófia não possui ainda o nível qualitativo das suas congéneres do centro da Europa
ou Estados Unidos. As falhas foram frequentes e incidiram especialmente sobre
as madeiras e os metais, sabendo-se que este último é um dos naipes cuja
intervenção é mais exigente. Mas também as cordas demonstraram alguma
inconsistência, com desafinações frequentes e desacertos nos ataques.
Todavia, no final a orquestra foi
muito aplaudida e importa salientar o enorme esforço físico e intelectual que
representa tocar cerca de 15 horas de música em quatro dias.
(Orquestra da Ópera de Sófia / Sofia Opera Orchestra)
A direcção musical de Erich
Wächter foi correcta e sóbria. Imprimiu, no geral, tempos moderados,
notando-se sempre a preocupação de suportar as vozes dos cantores, que nunca
abafou. Conseguiu sempre manter texturas orquestrais transparentes, o que
permitiu uma escuta mais analítica da música. Dessa forma, embora por vezes
tenha faltado alguma poesia ou empolgamento, tal foi contrabalançado pela
grande facilidade em ouvir os leitmotive em todas as suas vertentes e
transformações.
(Erich Wächter - Foto de Barbara Bönsch)
A encenação ficou a cargo de Plamen Kartaloff.
Confesso que as primeiras imagens que vi na net me deixaram algo
apreensivo, pois os cantores pareciam personagens de filmes de ficção
científica dos anos 80. Contudo, penso que a encenação apresentou aspectos
bastante positivos e, no essencial, serviu bem a obra.
Embora os cenários e os figurinos nos transportem para um
universo difícil de identificar, num misto de figuras monstruosas e fatos
prateados que lembram os cantores pop dos anos 80, a encenação como um todo é
bastante tradicional, na medida em que ilustra de forma literal a acção da
ópera, tal como está escrita. Em cena as personagens executam precisamente
aquilo que o libreto indica e o desenvolvimento da acção acompanha a história.
Não há reinterpretações e muito menos contradição entre o que se passa no palco
e o que é cantado e consta da partitura.
Trata-se de uma opção perfeitamente válida e que faz
sentido se pensarmos que esta é a primeira apresentação do “Der Ring des
Nibelungen” na Bulgária, pensada em primeiro lugar para a audiência nacional.
Todavia, penso que em alguns aspectos a encenação foi demasiado explícita,
mostrando no palco aquilo que cabe à música representar, especialmente quando o
uso dos leitmotive desempenha, em grande medida, essa função.
Como se sabe, o “Ring”, pelas vicissitudes e ordem da
composição, está cheio de relatos e alusões que resumem aquilo que já sucedeu
nas óperas anteriores. Ora, cada vez que uma personagem aludia a qualquer
acontecimento ou a orquestra fazia ouvir o leitmotiv de qualquer outra
personagem, o encenador fazia-a entrar em cena sob uma forma fantasmagórica,
como que tornando visualmente explícito aquilo que a música já sugeria de forma
cabal.
Penso que por vezes se exagerou nesta prática, o que, de
certo modo, se traduziu numa certa de desvalorização da música de Wagner,
designadamente do papel que nela desempenham os leitmotive.
Um ponto bastante bem conseguido
foi o facto de a encenação e do trabalho de palco ter sido coerente com a
continuidade do fluxo musical. As cortinas nunca foram fechadas e/ou a música
interrompida para alteração de cenário, pois este ia-se modificando
continuamente, adaptando-se à música e à acção.
O encenador recorreu a um
conjunto de figuras simbólicas que se iam transmutando consoante a acção
dramática. Neste aspecto, importa destacar a presença permanente em palco de um
gigantesco anel, que tanto se apresentava na sua forma circular e completa,
como se ia separando em dois semi-círculos, formando arcos, mandorlas ou outras
figurações.
Para além desse enorme anel de 12 metros de diâmetro,
outro objecto bastante presente foi o cone, que tanto assumiu o papel de
castelo (Walhalla), como de cavalo (das Valquírias) e que simboliza, de acordo
com o texto do encenador no programa de sala, a ligação entre o céu e a terra.
(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)
Um aspecto muito agradável foi a
existência de dupla legendagem, em búlgaro e em inglês, o que é demonstrativo
do excelente acolhimento dado ao público estrangeiro.
(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)
A este propósito, não posso
deixar de dirigir publicamente uma palavra de grande apreço para com o Director
de Relações Públicas da Ópera de Sófia, Dimitar Sotirov, com quem travámos
conhecimento aquando do levantamento dos ingressos na bilheteira da Ópera e que
nos acolheu com grande gentileza, interessando-se pela nossa opinião
relativamente a todos os aspectos das récitas a que íamos assistindo,
pedindo-nos para falar à televisão búlgara e convidando-nos para um cocktail
dado pela Ópera de Sófia no final do “Götterdammerung”, com a presença de
alguns cantores e do maestro, o que foi muito agradável.
Outro aspecto muito interessante
foi o facto de, à semelhança da tradição de Bayreuth, o início de cada récita
ser precedido por uma fanfarra tocada pelos metais, com temas extraídos da
ópera respectiva. Fanfarra essa que, como em Bayreuth, era repetida por três
vezes, 30, 20 e 10 minutos antes do início da ópera.
(Fanfarra antes do início da ópera / Fanfare before opera)
Foi também a oportunidade para
conhecer outros melómanos wagnerianos de todo o mundo, para trocar experiências
e impressões e para discutir as récitas.
Em suma, foi uma experiência
musical muito gratificante e que seguramente nunca irei esquecer.
Der Ring des Nibelungen – Sofia, 4th – 9th July 2015
The “Der
Ring des Nibelungen” cycle, by Richard Wagner, is surely one of the most
extraordinary artistic achievements of mankind and an essential milestone in
the history of music, particularly opera.
Either by
its extension, or the extraordinary richness of its musical invention, or even
the multiplicity of its symbolic and philosophical dimensions, its presentation
is a challenge that no company or opera house can face lightly. Making it
happen requires not only gathering singers with features which are hard to
find, but also a larger than normal orchestra (Wagner asked for 124 players)
and very demanding scenic infrastructures.
The whole
cycle also represents a high challenge to the director and the music director,
on whom depends to a large extent, the ability to confer it unity and meaning.
A brief
introduction to this monumental work of Richard Wagner can be read here.
Although
I know the “Ring” very well in discographic terms - in my record collection it
is represented with thirtheen complete CD cycles and a DVD cycle (Boulez) – I
had never had the opportunity to attend a live performance.
That
opportunity has now arisen, in Sofia, in his State Opera and was in fact a
remarkable experience.
To celebrate
the 200th anniversary of the birth of Richard Wagner, the Sofia Opera decided
to stage the first complete “Ring” in Bulgaria. They decided to do it using
only Bulgarian singers (over 200), the Orchestra, Chorus and Opera Ballet Corps
of Sofia Opera, which is nonetheless a remarkable achievement. I suppose that
few opera houses around the world can be proud of such a project and the degree
of success it has achieved.
On the
other hand, the exclusive use of Bulgarian singers shows te great strength of a
school of voices that has given many famous names to the lyrical art, although
few of them have stood out in the Wagnerian repertoire.
The
“Ring” of Sofia is the culmination of a long process because it started with
the presentation of each of the four operas throughout the seasons 2009/2010 to
2012/2013. In July 2013 it was presented for the first time as Wagner thought:
a Bühnenfestspiel structured in three days preceded by a Vorabend, performed over one week.
The
success of the project led to new presentations in 2014 and 2015, in Sofia, and
in September 2015 in the Festspielhaus in Füssen, Germany.
The
staging was done by Plamen Kartaloff, member of the Bulgarian Academy of
Sciences and Director of the Sofia Opera and the musical direction was in the
hands of the German conductor Erich Wächter.
In the
forthcoming texts devoted to each of the four operas that make up the cycle I
will speak in more detail about the singers, the performance of the orchestra
and will discuss the issues of staging more specifically.
In this
first introductory text, I would just like to make a few more general
considerations raised by the general impression I got of the cycle as a whole.
The
current Sofia Opera House was opened in 1953 and is a neoclassic building,
medium-sized, lying fully integrated into the urban fabric, with the main
facade facing a small, narrow side street.
The
interior is traditional, medium-sized, offering parterre and two balconies
without boxes.
As the
tickets were sold separately for each opera, I ended up sitting down in almost
all areas of the hall. The parterre clearly has the best acoustics and
visibility conditions; in the balconies acoustics and visibility are slightly
less impressive.
The
orchestra pit is small and can not accommodate an orchestra with the ideal size
to play Wagner. Thus, the strings section was the most affected, especially the
cellos and double-basses, which were insufficient in number.
In the
overall context, I can say that the orchestral performance was the weakest point
of the Sofia “Ring”. In fact, apart from the small size of the orchestra
reflect on the sound volume that is expected in some of the work moments, I
think the Orchestra of the Sofia Opera does not yet have the qualitative level
of their counterparts in central Europe or in the United States. The failures
were frequent and occurred, especially on woodwinds and brass, given that the
latter is one of the sections whose role is more demanding. But also the
strings showed some inconsistency with frequent out of tune playing and
imprecisions in the attacks.
However,
in the end the orchestra was greatly applauded and it should be noted the
enormous physical and intellectual effort that is playing about 15 hours of
music in four days.
The
musical direction of Erich Wächter was correct and sober. He favore, on the
whole, moderate times, always with the concern of supporting the voices of the
singers, who were never muffled by the orchestra. He always managed to maintain
transparent orchestral textures, allowing a more analytical listening to the
music. Thus, although sometimes has missed some poetry or thrill, this was
conterbalanced by the ease in listening the leitmotivs in all its forms and
transformations.
The
staging was done by Plamen Kartaloff. I confess that the first images I saw on
the net left me somewhat apprehensive, for the singers looked like characters
from science fiction movies of the 80s However, I think the staging presented
very positive aspects and essentially served well the opera.
Although
the sets and costumes transport us to difficult to identify universe, in a
mixture of monstrous figures and silver costumes reminiscent of the pop singers
of the 80s, the staging as a whole is quite traditional in that it illustrates
literally the Opera action, as it is written. On stage, the characters perform
precisely what the libretto states and the development of action follows the
story. There are no reinterpretations let alone contradiction between what is
happening on stage and what is being sung or written in the score.
This is a
perfectly valid option and it makes sense if we think that this is the first
presentation of “Der Ring des Nibelungen” in Bulgaria, designed primarily for a
Bulgarian audience. However, I think that in some respects, the staging was too
explicit, showing on stage what it is to be represented by music, especially
when the use of leitmotivs plays, to a large extent, this function.
As we
know, because of its specificities and order of composition, the “Ring” is full
of narrations that summarize what has happened in earlier operas. The problem
is that, each time a character alludes to any past event or the orchestra plays
the leitmotiv of any other character or event, the director puts it on the
stage, like a “phantom”, making visually explicit what the music already
suggested adequately enough.
I think
this practice was exaggerated, which somehow translates into a kind of
devaluation of Wagner's music, particularly of the role played by leitmotivs.
A point
quite well done was the fact that the staging and stage work have been
consistent with the continuity of the musical flow. The curtains were never
closed and / or the music stopped for change of scenery. The scenarios changed
continuously, adapting to music and action.
The
director used a set of symbolic figures that were transmuting according to
dramatic action. In this respect, it is worth mentioning the permanent presence
on stage of a gigantic ring, which both presented itself in its circular and in
full, as it was separating into two semi-circles, arcing, mandorlas or other
figurations.
In
addition to this enormous 12 meters wide ring, another very present object was
the cone, which both assumed the role of a castle (Walhalla), as horse (of the
Valkyries) and symbolizing, according to the text of the Director in the
program, a link between heaven and earth.
A very
nice aspect was the existence of dual subtitling in Bulgarian and English,
which is demonstrative of the excellent reception given to foreign audiences.
In this
regard, I must publicly address a word of great appreciation to the Sofia Opera
Public Relations Manager, Dimitar Sotirov, who met us when picking up the
tickets at the box office and welcomed us with great kindness, always asking
for our opinion on all aspects of the performances that we were watching,
asking us to speak to the Bulgarian TV and inviting us for a cocktail given by
the Sofia Opera after “Götterdammerung”, with the presence of some singers and
conductor, which was very pleasant.
Another
very interesting aspect was the fact that, like the Bayreuth tradition, the
beginning of each performance was preceded by a fanfare played by brass
players, with motives taken from the opera that is about to start. As in
Bayreuth, the fanfares were repeated three times, 30, 20 and 10 minutes before
the start of the performance.
It was
also the opportunity to meet other wagnerites from around the world, to
exchange experiences and impressions and to discuss the performances.
In a
whole, it was a very rewarding musical experience and surely I will never
forget it.
Obrigado por este excelente texto introdutório, tão expressivo e elucidativo do que foi este Anel, "instage" e "offstage". E é o primeiro publicado sobre um (ou melhor quatro) espectáculos na Bulgária.
ResponderEliminarAssistir a um Anel completo é sempre uma experiência inesquecível, dada a dimensão da obra nas suas múltiplas componentes. Nunca tive a sorte de ver um Anel nestas condições, o mais que se lhe aproximou terá sido o de Copenhaga, há já uma década. e ainda hoje o recordo com muita saudade.
Estou ansioso por ler os textos que lá virão, mais focados nas diferentes óperas.
Obrigado pelas suas palavras e espero que os textos estejam à altura das expectativas!
ResponderEliminarDe facto, a experiência de assistir ao Anel foi inolvidável e abriu-me o apetite para tentar mais vezes.
No último dia, em conversa com o Director de Relações Públicas da Ópera de Sófia, ele referiu, com grande orgulho, que em 2014 esteve presente uma wagneriana que terá o recorde das assistências a ciclos completos do Anel (76 Anéis!) e que ficou muito bem impressionada.