sábado, 5 de março de 2016

Noite Wagneriana na Gulbenkian, com Waltraud Meier – 3 de Março 2016

(Fotografia: FCG)

Assisti ao concerto do passado dia 3 de Março de 2016, na Fundação Calouste Gulbenkian.
O programa foi preenchido, na primeira parte, pelo Prelúdio (e não abertura, como refere o programa) do Lohengrin e pelos Wesendonck Lieder, em versão orquestral. Na segunda parte tocou-se a 3ª Sinfonia de Anton Bruckner.

(Fotografia: FCG)

A Orquestra Gulbenkian foi dirigida pelo maestro finlandês Jukka-Pekka Saraste e contou com a interpretação da mezzo-soprano Waltraud Meier nos Wesendonck Lieder.

O Prelúdio da ópera Lohengrin é uma peça de grande delicadeza, cujo sucesso depende da capacidade do maestro de traduzir o carácter etéreo e quase intangível que constitui a essência do mundo divino que a música visa representar. O início, no registo sobre-agudo dos violinos, divididos em oito partes, necessita de uma perfeita articulação e de um ambiente de sublimidade que, manifestamente, não foi criado por Saraste. O tempo foi muito brusco, os naipes dos violinos tiveram dificuldade na articulação e a “beleza azul-prateada”, descrita por Thomas Mann, não se sentiu. O crescendo até ao culminar do tema do Graal, com as entradas sucessivas dos diversos naipes instrumentais, foi demasiado impetuosa na minha opinião, perdendo-se a atmosfera adequada à idealização de Wagner, que pretendia representar a descida dos anjos do céu em direcção às regiões sagradas de Montsalvat para confiar o Graal ao cuidado dos puros. O crescendo orquestral desembocou num fortíssimo muito poderoso, em que toda a orquestra ribombou de forma tremenda (marca constante deste concerto), para depois fazer o caminho inverso, de volta às harmonias iniciais.

(Mathilde Wesendock)

Para cantar os Wesendonck Lieder tivemos a presença da grande diva wagneriana Waltraud Meier (Würzburg, 09-01-1956), que eu nunca tinha tido oportunidade de ouvir ao vivo.


Como seria de esperar, a sua voz já não é – nem pode ser – o que foi nos anos 90, quando estava no seu auge. Em especial quando o maestro não ajuda e faz troar a orquestra, abafando-a completamente, como aconteceu em algumas ocasiões. Pareceu-me notar um certo nasalamento do timbre e o fôlego já não permite um legato perfeito. Contudo, a marca da grande artista está toda lá, na elegância do fraseio e na inteligência do canto.
A sua interpretação do lied “Im Treibhaus” foi verdadeiramente tocante, o melhor momento da sua actuação. Os lieder “Der Engel” e “Stehe still!” teriam igualmente sido perfeitos se Jukka-Pekka Saraste tivesse adoptado tempos menos rápidos, que me parecem pouco adequados a deixar a música respirar e a poesia a vir ao de cima. Com “Träume” encerrou-se o ciclo de forma belíssima.



Embora Waltraud Meier seja uma intérprete vocal de excepção, ela atinge o seu zénite na representação teatral, como atestam as gravações em dvd disponíveis. Não sendo os Wesendock Lieder, porventura, o seu repertório mais significativo, foram, todavia, um excelente palco para demonstrar como os seus dotes artísticos permanecem intocados.
Para além disso, demonstrou grande simpatia com os membros do público que a procuraram para trocar umas palavras e pedir autógrafos, como pude testemunhar.



A segunda parte do concerto foi integralmente preenchida com a 3ª Sinfonia, em ré menor, de Anton Bruckner, na versão de 1877, edição Leopold Nowak.
Escrita inicialmente em 1873 (Bruckner terminou-a a 31 de Dezembro), a Sinfonia n.º 3 foi dedicada a Wagner. Mas, curiosamente, não directamente por escolha de Brucker, mas por escolha do próprio Wagner, a quem o mestre de Sankt Florian a apresentou em Setembro de 1873 (antes de estar concluída a orquestração do Finale) juntamente com a 2ª Sinfonia. Todavia, ao que rezam as crónicas, depois de Wagner ter escolhido a 3ª Sinfonia, ambos beberam tanta cerveja que, ao chegar a casa, Bruckner já não tinha a certeza de qual havia sido escolhida pelo seu mestre mais admirado. Escreveu-lhe então a perguntar se era aquela cujo tema inicial era tocado pela trompete, ao que Wagner terá respondido «Sim, sim! Melhores cumprimentos!», passando desde então a referir-se àquele como “Bruckner, o trompete».
Anedotas à parte, a 3ª Sinfonia marca o início das sinfonias da maturidade de Bruckner e, como se tornou hábito, foi sujeita a uma infindável série de revisões, nem todas da lavra do próprio compositor. As duas principais revisões foram a de 1877 e a de 1888/89, com a colaboração de Franz Schalk.
Neste concerto foi tocada a versão de 1877, com a coda do Scherzo, publicada por Nowak em 1981.
Jukka-Pekka Saraste, que dirigiu de memória, privilegiou tempos relativamente rápidos (pela minha contagem, a interpretação durou 56:31, dividida da seguinte forma: I – 19:30; II – 15:00; II – 7:34; IV – 14:27. Como referências comparativas que tenho posso indicar as gravações de Haitink/VPO 61:29; Sinopoli/Dresden 59:11; Solti/CSO 59:33) e, ao nível da estrutura interpretativa, a sua leitura foi marcada por grandes contrastes dinâmicos, um marcado sentido de progressão e uma sensação de urgência que às vezes roçava o enfático. Embora a orquestra tenha tocado sempre com uma elevada pressão sonora, os típicos e abruptos silêncios brucknerianos foram executados na perfeição.

O início do primeiro andamento não teve o carácter “misterioso” que a partitura pede, precisamente pela urgência adoptada pelo maestro finlandês. Contudo, a partir daí, as grandes massas sonoras foram sempre bem esculpidas, para terminar numa coda galvanizadora.
O segundo andamento foi muito equilibrado, cheio de belos momentos e com uma excelente execução.
O Scherzo foi, para mim, o melhor momento da Sinfonia, ao qual o estilo musculado de Jukka-Pekka Saraste se adequou perfeitamente. Extremamente vigoroso no seu tema principal, o maestro finlandês tocou-o com uma energia contagiante. Na secção central, do trio, a abordagem foi notavelmente robusta, evidenciando o carácter rústico do ländler. Era visível o prazer que tocar estas páginas estava a dar aos músicos da orquestra e que se reflectia dos seus sorrisos cúmplices com o maestro.
O final foi tocado de forma grandiosa, culminando toda a experiência bruckneriana que, seguramente, não deixou indiferente nenhum espectador do auditório, como se pôde atestar pelos longos aplausos proporcionados a todos os músicos.


Em suma, um concerto muito gratificante e que permanecerá na memória.

8 comentários:

  1. Muito bom relato, obrigado. É pena que as 'divas' só tendam a visitar-nos em fase de declínio.
    Fico contente pelo bom nível da orquestra.

    Os tempos rápidos e o enfatismo são uma pecha que as interpretações 'autênticas' da música barroca trouxeram, incorrectamente estendidas ao romantismo por icompetência. Bruckner não pode ser interpretado à barroca. Mas ainda bem que o Scherzo resultou.

    Se vivesse em Lisboa não teria perdido este concerto; o relato, parcialmente, compensou-me a ausência :)

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    1. Mário, embora certas visitas nos levem a lamentar que as 'divas' só tendam a visitar-nos em fase de declínio isso não é, felizmente, totalmente verdade...

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  2. Obrigado João Baptista pelo excelente texto sobre este concerto que não tive oportunidade de ver. Mas a qualidade e pormenor da descrição atenua um pouco a perda, tal como referiu o Mário Gonçalves.
    Estou totalmente de acordo consigo quando refere que a Waltraud Meier é fabulosa também na representação teatral. Vi-a pela primeira vez ao vivo na Ortrud, num Lohengrin apresentado em São Carlos em 1990, onde foi a cantora que mais me marcou. Bons tempos...

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    1. Só não fico com inveja porquanto, nessa data, nunca tinha ouvido qualquer ópera de Wagner (talvez só de Mozart e, mesmo assim, não tenho a certeza...)!

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  3. Agradeço o comentário critico que muito apreciei e com o qual concordo em absoluto. Sou grande admirador de Waltraude Meier da qual tive oportunidade de ouvir varias vezes e na realidade os 60 anos já fazem o seu efeito. Não esqueço Kundry no Parsifal e a Isolda em Paris na encenação Sellars/Bill Viola. Clitemnestra de excepção, na Elektra em Salzburg. O timbre continua belíssimo. Maestro não ajudou, nas primeiras canções o volume da Orquestra chegou por vezes a cobrir a voz da cantora.

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  4. Obrigada, João Baptista, por este seu relato; gostaria ter assistido a este concerto e a sua descrição compensa-me e consola-me um bocadinho...

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  5. Obrigado pelos vossos comentários. Fico muito satisfeito por perceber o interesse que a crónica suscitou e, em especial, por ver que permitiu a quem não teve a oportunidade de assistir ao concerto de ficar com uma ideia do que ali se passou e, em parte, de compensar essa ausência. Cumpriu, pois, a sua função!

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  6. Caro João Baptista,

    Não estive na FCG para ouvir a Waltraud Meier precisamente porque também eu sou um admirador de longa data desta extraordinária intérprete, e tenho infelizmente tendência para concordar com a observação de Mário Gonçalves no primeiro comentário ao seu texto.

    Gosto de guardar boas recordações e procuro sempre que possível não as deixar estragar por outras menos felizes.

    Fiquei por isso muito satisfeito por perceber que a marca da grande artista se mantém, como tão elegantemente diz, ao mesmo tempo que lamento que o amigo não possa ter tido a oportunidade de ver ao vivo a cantora no seu apogeu.

    Mais importante do que tudo isto é porém a qualidade do seu texto, em que o rigor e a sensibilidade crítica se aliam a uma clareza pedagógica invulgar. Quero por isso felicitá-lo e agradecer a sua intervenção.

    Que bom podermos ter no Fanáticos momentos deste quilate! Depois de o ler lamentei a decisão de não ter estado presente no Grande Auditório, não por perceber que a Waltraud se defende muito bem do avançar da idade, mas porque pela minha ausência fiquei impossibilitado de aprender confrontando as minhas impressões com o seu magnífico texto.
    Bem haja.
    JAM


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