(review in English below)
“Götterdämmerung” é a derradeira
ópera da tetralogia “Der Ring des Nibelungen”, encerrando assim esse ciclo
ímpar na história da ópera.
Para além de ser uma ópera longa
(cerca de quatro horas e meia de música, sem contar com os intervalos), tem uma
estrutura narrativa complexa. Todavia, assistir ao vivo à mesma, como culminar
da tetralogia, é uma experiência avassaladora.
Prosseguindo o percurso lógico
iniciado nas óperas anteriores, a encenação de Plamen Kartaloff
encontrou um bom ponto de equilíbrio entre a fidelidade à história do libretto
e o recurso a simbolismos que abrem novos pontos de vista sobre a acção e seu
significado ou que exploram associações de ideias menos óbvias.
Com recurso a figuras geométricas
e a formas simbólicas – o cone, o arco, a mandorla, o tríscelo – o encenador
vai ilustrando a acção e descodificando algumas das ideias subjacentes à música
e às palavras cantadas.
(Prólogo - Foto do site da Ópera de Sófia / Prologue - Photo by Sofia Opera House site)
Veja-se, por exemplo, que o
“Götterdämmerung” começou aqui com o exacto cenário do final do “Siegfried”,
uma espécie de ninho de amor entre Brünnhilde e Siegfried no interior da
mandorla, forma que simboliza, entre outras coisas, o embrião humano.
(Prólogo - Foto do site da Ópera de Sófia / Prologue - Photo by Sofia Opera House site)
Mais
tarde surge o símbolo celta do tríscele (ou triskelion), como que um óvulo
contendo a sabedoria do mundo, do interior do qual aparecem as Nornas.
(Jornada pelo Reno / Rhein Journey - Photo by Sofia Opera House site)
Durante a “Jornada pelo Reno”, a
penetração da mandorla pelo cone que serve de barco a Siegfried acentua a ideia
da humanidade de Brünnhilde e de que a junção de ambos é carnal e não apenas
espiritual.
(Acto I - Foto do site da Ópera de Sófia / Act I - Photo by Sofia Opera House site)
No palácio dos Gibichungs,
Gunther surge como um astrónomo, observando os planetas ou a passagem de
estrelas cadentes, tipicamente anunciadores do fim do mundo. Paralelamente,
cubos com os desenhos das crianças de “Os Sete Planetas e os Zodíacos”, de Hans
Sebald Beham (1500-1550), que seriam aquelas em cuja vida a influência de um
planeta é dominante e que, por isso, se acreditava possuírem as qualidades dos
deuses antigos.
(Morte de Siegfried - Foto do site da Ópera de Sófia / Siegfried's Death - Photo by Sofia Opera House site)
A cena da morte de Siegfried foi
impressionante, com o herói morto caído sobre uma plataforma que simboliza a
sua espada, acompanhada de projecções lunares, que funcionaram muito bem.
(Imolação- Foto do site da Ópera de Sófia / Immolation - Photo by Sofia Opera House site)
Na cena da imolação de Brünnhilde
vemos mesma à garupa de Grane e acoplada à plataforma onde continua Siegfried
morto, quebrando o grande anel, ao mesmo tempo que imagens de chamas vão
tomando conta do cenário.
(Acto III - Foto do site da Ópera de Sófia / Act III - Photo by Sofia Opera House site)
No final, na derrocada do Walhalla, os cones estão em
fogo e vemos os deuses caminhando em direcção às chamas, cambaleantes, para
tudo dar lugar ao azul do Reno. Uma visão clássica, mas dramaticamente eficaz.
A direcção musical de Erich
Wächter conseguiu imprimir mais intensidade à progressão musical e, em
certos momentos, foi electrizante. Recordo-me, por exemplo, da segunda parte do
Prólogo, em que o dueto entre Brünnhilde e Siegfried arrancou uma espontânea
salva de palmas do público, que foi caso único durante toda a tetralogia.
Infelizmente, todavia, a
orquestra continuou a exibir algumas falhas técnicas.
O coro esteve bastante bem, quer
ao nível vocal, quer ao nível de presença em palco.
No papel de Siegfried voltámos a
ter o excelente Martin Iliev, que confirmou a magnífica imagem que já
tinha dado ao cantar Siegmund, exibindo uma voz brilhante, potente e com um
timbre radioso, a par de um temperamento dramático apurado. Mais uma vez ficou
a sensação de que se trata de um cantor que qualquer casa de ópera mundial não
desdenharia ter nos seus elencos.
(Yordanka Derilova- Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)
Em Yordanka Derilova
tivemos a terceira Brünnhilde da tetralogia e, sem margem para dúvidas, a
melhor de todas. Voz potente e bonita, de carácter dramático mas de timbre não
pesado, exibindo excelente projecção vocal. A par destas qualidades vocais, a
evidente capacidade de traduzir vocalmente uma ampla gama de emoções, uma presença em palco cheia de dramatismo e
bons dotes de actriz, aliadas a uma bela figura física, fizeram de Yordanka
Derilova uma Brünnhilde convincente e de grande qualidade.
Hagen foi interpretado pelo baixo
Petar Buchkov, que cantou de forma eficaz, conseguindo conjugar a raiva
que anima a personagem com a subtileza e dissimulação com que actua.
A soprano Tsvetana Bandalovska
cantou a dividida Gutrune. Como já se havia notado, a sua voz bonita e dotada
de um timbre claro, aliada a uma excelente figura, permitiram criar uma
personagem credível.
Gunther ficou a cargo de Atanas
Mladenov, que cantou com correcção e afinação, fazendo transparecer a
personalidade apagada e passiva do meio-irmão de Hagen.
A Waltraute coube a Tsveta
Sarambelieva, que exibiu uma boa potência vocal e uma personalidade vocal
assertiva, o que tornou o seu diálogo com Brünnhilde bastante bem conseguido.
Alberich foi novamente Biser
Georgiev, que não desiludiu.
As Nornas foram cantadas por Lyubov Metodieva, Ina
Pertova e Tsveta Sarambelieva, tendo cumprido vocalmente com
eficácia, para além de boas presenças em palco.
As Filha do Reno foram cantadas
por Irina Zhekova, Silvia Teneva e Elena Marinova.
Podemos ver aqui um vídeo com o
resumo da produção.
Terminou assim a primeira
tetralogia a que tive o privilégio de assistir, num teatro de ópera menos em
evidência e que não é um destino evidente, mas que apresentou um espectáculo de
excelente qualidade, que rivaliza com as melhores produções mundiais da
actualidade.
Em suma, uma experiência operática que não irei esquecer.
(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)
*
*
Götterdämmerung - The Twilight of the Gods - Sofia, July 9, 2015
“Götterdämmerung” is the last opera of the
tetralogy “Der Ring des Nibelungen”, ending this unique cycle in the history of
opera.
In addition to being a long opera (about four
and a half hours of music, plus intermissions), it has a complex narrative
plot. However, attending to a live performance of this culmination of the
tetralogy, is an overwhelming experience.
Continuing the logic present in previous
operas, the staging of Plamen Kartaloff found a good balance between fidelity
to the history of the libretto and the use of symbolism that opens up new views
on the action and its meaning or explores less obvious associations of ideas.
Using geometric solids and symbolic forms - the
cone, the bow, the mandorla, the triskelion - the director ilustrates the
action and decodes some of the ideas behind the music and the words sung.
As an example, “Götterdämmerung” began with the
same setting that ended “Siegfried", a kind of love nest between Brünnhilde
and Siegfried locked within the mandorla, a symbol, among other things, of the
human embryo. Later, the Celtic triskelion symbol appears as an egg cell
containing the wisdom of the world, from the interior of which appear the
Norns.
During the "Rhin Journey" the
penetration of the mandorla by the cone that serves as a boat to Siegfried
accentuates the idea of Brünnhilde’s humanity and that their junction is carnal
and not just spiritual.
In Gibichungs’ Palace, Gunther emerges as an
astronomer, observing the planets or the approaching of blazing stars,
typically seen as signs of the end of the world. At the same time, cubes with
drawings of the children of "The Seven Planets and the Zodiacs" by
Hans Sebald Beham (1500-1550), which would be those on whose life the influence
of a planet is dominant and who, therefore, were believed to possess the
qualities of the ancient gods.
The Siegfried's death scene was impressive with
the dead hero fallen on a platform that symbolizes his sword, accompanied by lunar
projections, which worked very well.
In the immolation of Brünnhilde scene we see
her on the back of Grane and coupled to the platform where is dead Siegfried,
breaking the big ring, while flames start to take over the whole scene. In the
end, when Walhalla collapses, the cones are on fire and we see the gods walking
towards the flames, after what all gives way to the blue Rhine. A classical
view, but dramatically effective.
The musical direction of Erich Wächter
imprinted more intensity to the musical progression and, at times, was
electrifying. I remember, for example, the second part of the Prologue, in
which the duet between Brünnhilde and Siegfried snatched a spontaneous round of
applause from the audience, which happened only once during the entire
tetralogy.
Unfortunately, however, the orchestra continued
to show some technical failures.
The choir was quite good, both in vocal level,
as in terms of stage presence.
In the role of Siegfried we had again the
excellent Martin Iliev, who confirmed the magnificent image that had already
been given when he sang Siegmund, displaying a bright and powerful voice, with
a bright timbre, along with a sharp dramatic temperament. Again I got the
feeling that this is a singer that can have place in any world opera house.
In Yordanka Derilova we had the third
Brünnhilde of tetralogy and, beyond any doubt, the best of all. Powerful and
beautiful voice, dramatic character but not heavy timbre, with excellent vocal
projection. Alongside these vocal qualities, the evident ability to translate
vocally a wide range of emotions, a presence full of stage drama and good
actress skills, combined with a beautiful physical figure, made of Yordanka
Derilova a convincing and high quality Brünnhilde.
Hagen was interpreted by the bass Petar
Buchkov, who sang effectively, managing to combine the anger that animates the
character with the subtlety and stealth with which it operates.
The soprano Tsvetana Bandalovska sang the
divided Gutrune. As had already been noted, her beautiful and clear timbre
voice, combined with a great figure, helped to create a credible character.
Gunther was played by Atanas Mladenov, who sang
with correction and pitch, translating the erased and passive personality of
Hagen's half-brother.
Waltraute was incarnated by Tsveta
Sarambelieva, who displayed a good vocal power and an assertive vocal style,
which made the dialogue between her and Brünnhilde quite well done.
Alberich was again Biser Georgiev, and he did
not disappoint.
The Norns were sung by Lyubov Metodieva, Ina
Pertova and Tsveta Sarambelieva, having fulfilled vocally effectively, in
addition to good presence on stage.
The Rhinemaidens were sung by Irina Zhekova,
Silvia Teneva and Elena Marinova.
We can see here a video with the summary of this
production.
Thus ended the first tetralogy that I was
privileged to attend, in an opera house less in evidence and that it is not an
obvious destination, but that presented a high quality spectacle that rivals
the world's best present productions.
In short, an operatic experience that I will
not forget.
Muito obrigado por esta magnífica colecção de textos. Seguramente que serão mais uma referência de consulta obrigatória para os amantes de Wagner e, sobretudo, para quem for ver uma das óperas do Anel (já que esta oportunidade ímpar de conseguir ver o Anel completo será, realmente, de excepção).
ResponderEliminarE que interessante e enriquecedor é ler textos de autores diferentes sobre as mesmas obras. Aprendemos sempre mais um pouco e "vemos e ouvimos" aspectos que não tínhamos, ainda, notado tão claramente.
Seguramente que para si será um marco inesquecível e, para todos nós que só aqui contactámos com estes relatos, é uma fonte de prazer, inspiração e um incentivo para procurar as grandes obras em teatros menos "sonantes".
Caro Fanático_Um,
EliminarObrigado pelas suas simpáticas palavras.
Para além do prazer de partilhar uma experiência operática ímpar, tentei que os textos pudessem, modestamente, contribuir para a inesgotável discussão sobre a encenação e interpretação das óperas de Wagner, mormente do Anel.
Para mim, paralelamente à pura fruição musical, a discussão e troca de ideias sobre as obras, os seus intérpretes, as produções e as gravações existentes, constitui uma outra dimensão, também ela imprescindível, da paixão pela música. E penso que um blog como este vive precisamente desse gosto por uma partilha que enriqueça a própria experiência musical.
João Baptista, gostei muito de ler esta reportagem. Como escreveu o Fanático _Um, não é fácil assistir-se à tetralogia completa, e deve ser fascinante ver como cantores diferentes compõem os mesmos personagens nas diversas óperas, que em parte foi o que aqui nos proporcionou.
ResponderEliminarSeria interessante encontrar alguns dos cantores noutros teatros de õpera, assim como o encenador.
Caro Gi,
EliminarFico satisfeito por saber que estes textos lhe suscitaram interesse.
Como bem diz, teria imenso prazer em encontrar alguns destes cantores noutros palcos de ópera. E considero que a qualidade dos mesmos justificaria plenamente uma projecção mais alargada. Penso, designadamente, em Martin Iliev, Yordanka Derilova e Nikolay Petrov.