segunda-feira, 2 de março de 2015

MACBETH, Teatro Nacional de São Carlos, 23.02.2015





Está em cena no Teatro Nacional de São Carlos a ópera Macbeth, de Verdi, com libreto de Francesco Maria Piave, baseado na tragédia homónima de Shakespeare.

Embora tenha sido originalmente composta entre 1846 e 1847 e estreado no Teatro della Pergola, de Florença, no dia 14 de Março de 1847, Verdi procedeu a uma extensa revisão da partitura para o Théâtre Lyrique de Paris, onde foi representada a 19 de Abril de 1865, em francês.
Foi esta versão revista, embora retraduzida para italiano e expurgada do bailado do 3º acto, obrigatório em Paris, que acabou por se estabelecer no repertório dos teatros de ópera e que é, actualmente, a versão normalmente levada ao palco e gravada. Aliás, que seja do meu conhecimento, apenas existe uma gravação discográfica da versão original de 1847, na chancela “Opera Rara”.

É uma ópera, na versão revista, que apresenta já muitas das características do Verdi da maturidade e em que a prevalência da componente dramática é já bastante evidente. As linhas vocais e as sonoridades criadas estão já muito mais ao serviço do drama do que da pura arte canora. Embora subsistam componentes mais associadas ao chamado “belcanto” da primeira metade do século, como o recurso à coloratura e ao modelo de ária com cabaletta (veja-se a ária de abertura de Lady Macbeth), note-se que as linhas vocais estão mais vinculadas ao texto e servem muito mais a dramaturgia. Se compararmos, por exemplo, com o posterior Il Trovatore, vemos bem essa diferença.



Também no São Carlos se optou por apresentar a versão revista de 1865 em italiano e sem o bailado.
A encenação ficou a cargo de Elena Barbalich e constitui uma reposição de uma produção de 2007, então estreada no São Carlos.
Todas as cenas são dominadas pelo jogo entre jogos de sombras com cortinas translúcidas e um círculo espelhado, de grandes dimensões, que tanto assume a posição de uma espécie de sol eclipsado, como de caldeirão das bruxas ou de mesa de jantar na cena do banquete.
Os efeitos visuais são bastante bem conseguidos e, aliados a um subtil mas eficaz jogo de luzes, conseguem criar os ambientes tétricos tão adequados à música e ao drama.
As cortinas translúcidas permitem operar a separação entre o mundo fantástico das bruxas e dos fantasmas por estas convocados e o mundo real onde se movem os personagens.
Alguns apontamentos merecem destaque, como o trono de Macbeth – composto por cadeira com encosto vazio – com altura variável consoante a fortuna de cada momento. Outro que me pareceu bem conseguido foi o da cena da floresta, em que a projecção das árvores a avançar sobre o castelo de Macbeth me pareceu muito interessante.
Todavia, embora seja bem conseguida e bem executada, a encenação propriamente dita acaba por ser bastante convencional, na medida em que reproduz com grande fidelidade o texto, não ensaiando qualquer tentativa de apresentar uma nova visão sobre a obra ou de salientar algum aspecto menos evidente, pelo menos de que eu me tenha apercebido. O que, naturalmente, não constitui um defeito em si mesmo e é largamente preferível às encenações que violentam a obra que deveriam servir.



Apesar da ópera ter por título Macbeth, bem poderia chamar-se Lady Macbeth, tal é a importância desta personagem, verdadeiro motor da acção.
A soprano Elisabete Matos encarnou a terrífica esposa de Macbeth. Penso que a sua prestação foi em crescendo, sendo que no primeiro acto a emissão da voz me pareceu um pouco forçada. Todavia, daí para a frente a sua voz opulenta fez-se ouvir com grande esplendor. Embora nas passagens de coloratura não tenha demonstrado a agilidade ideal (o que também não era, objectivamente, expectável), demonstrou segurança no registo grave, tão necessário à personagem (tanto que, por vezes, é interpretada por mezzo-sopranos). Algumas notas agudas dadas de modo mais agreste estão perfeitamente de acordo com o idealizado por Verdi que, recorde-se, pediu expressamente uma vocalização áspera e selvagem para este caracter demoníaco. A cena do sonambulismo foi adqequada, embora ensombrada pelo ré bemol sobreagudo final, que praticamente não saiu.
Gostaria, contudo, de ter ouvido uma Lady Macbeth um pouco mais negra, mais perversa e veemente e não tão controlada. Penso que a Elisabete Matos acabou por faltar a capacidade de colorir a voz em cada momento, ao serviço da caracterização psicológica da personagem. Quem conheça as versões discográficas de Leonie Rysanek, Christa Ludwig ou Shirley Verrett, para não falar de Callas, não pode deixar de sentir algum desapontamento face às elevadas expectativas que a presença da mais famosa das cantoras líricas portuguesas da actualidade sempre suscita.

O barítono Àngel Òdena intrepretou o protagonista que dá nome à ópera. Foi, para mim, uma agradável surpresa, pois nunca tinha ouvido falar deste cantor. O timbre é escuro, uniforme e bastante belo, não se tendo notado qualquer deterioração da qualidade sonora durante toda a récita, num papel que é muito extenso e exigente. A projecção vocal foi sempre perfeita e a belíssima ária final Pietà, rispetto, amore foi, para mim, um dos momentos altos da noite no puro plano da beleza do canto.
Òdena compôs um Macbeth bastante torturado. Todavia, talvez tenha faltado alguma diferenciação tímbrica e uma caracterização vocal mais pronunciada, que conferisse uma maior espessura ao perfil dramático da personagem.



O baixo Giacomo Prestia, no papel de Banquo, esteve magnífico. A sua voz cheia e escura, aliada a uma nobreza da linha de canto, fizeram inteira justiça a um papel curto, mas que Verdi dotou de uma música transcendente.

O tenor Enzo Peroni, no papel de Macduff, cantou bastante bem a sua ária O figli, o figli miei!” – uma das mais belas árias para tenor de toda a produção verdiana – colocando em evidência um timbre claro e bonito, embora ligeiramente nasalado, segundo me pareceu.

Os demais cantores estiveram bem e cumpriram sem mácula os seus papéis.

O coro saiu algo prejudicado por alguns desacertos nas entradas das vozes nos coros das bruxas. No mais, a sua prestação foi meritória.
A direcção de Domenico Longo conferiu à orquestra um papel relevante na criação de ambiências e no desenvolvimento do drama. Com excepção dos já referidos desacertos com o coro, que já referi, apenas salientaria, em termos menos positivos, a adopção de um tempo excessivamente rápido na secção inicial do prelúdio, comprometendo a criação do ambiente tétrico e sombrio que evoca. 

11 comentários:

  1. continuamos com o nosso triste adn de ignorar os cantores nacionais, nem menção do nome, nem tag, nada, "os demais" chega. das duas uma, ou se está no topo dos topos ou abaixo disso é ralé. bem sei que os papeis não eram grandes mas talvez com nome mais exótico ou "estrageirado" já fossem dignos de referência. certemente deve ser por falta de espaço ou por caracteres limitados na publicação.

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    1. O seu comentário parece-me algo injusto e a ironia é até descabida.
      Injusto porque, num texto sem pretensão de exaustividade, os cantores sobre os quais me pronunciei foram os que interpretaram os papéis mais relevantes da ópera, independentemente da nacionalidade. Até sucedeu que a primeira cantora mencionada fosse portuguesa e, apesar de muito conhecida, nem por isso foi colocada no “topo dos topos”.
      A ironia é descabida porque, no meu modo de ver, o que releva numa apreciação objectiva é a qualidade artística de um cantor e não a sua nacionalidade. Um bom cantor não o é mais ou menos por ser ou não português ou por ter um nome mais ou menos “exótico” ou “estrangeirado”. Daí que, na minha opinião, a referência aos mesmos, apenas por serem portugueses, é que seria um sintoma do “nosso triste adn”.
      Seja como for, agradeço o seu comentário e convido-o a reparar o agravo que entende ter sido feito, partilhado connosco a sua opinião sobre as prestações dos cantores em causa!
      Cumprimentos,
      João Pedro Baptista

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  2. De entre os registos comerciais que constituem o "corpus" discográfico da versão inicial de "Macbeth" figura, igualmente, uma gravação efectuada ao vivo no Festival de Martina Franca, protagonizada por Evgenyi Demerdjiev e Iano Tamar, sob a égide de Marco Guidarini (1997) e editada pelo selo Dynamic.

    Relativamente a Àngel Òdena, trata-se de um dos mais destacados barítonos hispânicos da actualidade com actuações nos principais teatros líricos internacionais, pese embora detentor de uma carreira abarcando cerca de duas décadas. Curiosamente, estreou-se em São Carlos interpretando o papel de Figaro em "O Barbeiro de Sevilha", ladeado por Luciana Serra (1996), tendo regressado no ano sequente para a assunção da personagem Enrico na ópera "L'isola disabitata", composta de Joseph Haydn.

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    1. Caro Hugo, obrigado pela referência da gravação da Dynamic, cuja existência eu desconhecia.

      Também desconhecia - e confesso que não fui investigar - a carreira de Àngel Òdena, que, afinal, não é nenhum principiante. Mas o que refere foi confirmado na récita, na medida em que a sua prestação foi, na minha opinião, uma das melhores da noite.

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  3. Um espectáculo de grande qualidade no Teatro de São Carlos. Solistas excelentes, encenação magnífica e coro e orquestra não destoando.
    Continua muito bem a presente temporada do nosso único teatro de ópera.

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    1. Só esperemos que tenha continuidade após o Verão...

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    2. Assisti à récita do dia 01/Março. Assim se pode ver que não é necessário fazer produções com nomes sonantes, sem desprimor para os excelentes cantores deste excelente "Macbeht". Tão só é necessário alguém capaz e conhecedor, por trás da produção, que saiba escolher os cantores certos para os papéis e demais profissionais. Desta vez saí do São Carlos deveras satisfeito. Oxalá que futuramente assim continue a ser.
      Manuel Mourato

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  4. Caros amigos,
    Verifico infelizmente que os dias passam e a sucessão de comentários aqui inseridos acerca desta produção do nosso único teatro de ópera se caracteriza por um tom geral de aprovação, para não dizer de louvor ou elogio.
    E digo infelizmente porque, independentemente da justeza pontual de alguns dos comentários (e quero com isto referir-me em especial ao texto inicial de João Baptista) e apesar de sabermos que existirá sempre alguma dose de subjectividade no modo como vemos cada espectáculo, não me parece ser possível encarar objectivamente de forma optimista o momento que vive o São Carlos.
    Nesta percepção sou acompanhado por numerosas vozes, e por isso me decido a intervir dando a minha perspectiva do que se passou, baseada no espectáculo do dia 25 de Fevereiro, a que pude assistir.
    É que o que se passou constitui um sinal da gravidade da crise que o Teatro vive, ao mesmo tempo que um seu resultado. Talvez o facto de divergir das opiniões anteriores anime outros a contribuírem com as suas opiniões para o que creio ser o desejo de todos, uma cada vez maior qualidade do teatro de ópera no nosso país.
    Não sei se deva chamar a este espectáculo uma tragédia ou uma farsa, de tal modo o que se pôde ver e ouvir na sala constituiu um paradigma daquilo que não deve ser feito se se quiser apresentar um espectáculo de ópera com um mínimo de qualidade e concebido para cativar e não para afastar o público.
    A produção apresentada, uma encenação de 2006 vista já no São Carlos em 2007, é uma perfeita demonstração de inépcia total no que respeita a direcção de actores, sentido dramatúrgico, iluminação, cenografia.
    Poderíamos resumir o espectáculo dizendo ter-se assistido a um conjunto de "quadros vivos" cuja sequência aparente pretenderia ilustrar a obra de Shakespeare, porém numa versão plasticamente obsoleta e de difícil apreensão por carência de recursos.
    A indigência é tal que a simples desculpa miserabilista do contexto de crise não é bastante para fazer aceitar sem um sorriso irónico grande parte das soluções cénicas apresentadas.
    Infelizmente o quadro não foi melhor sob o ponto de vista estritamente musical.
    Num conjunto de cantores medianos vagueando melancolicamente pelo espaço cénico, duas referências porém devem ser feitas: uma de final e outra de início de carreira para as duas cantoras soprano portuguesas em palco.
    .....
    (Vou continuar em outro comentário, por imperativo do limite de palavras da aplicação)
    JAM 04/03/2015

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  5. Macbeth no São Carlos (continuação)

    Em fim de carreira, Elisabete Matos mostrou à evidência o que já era patente há anos, uma voz gasta, já difícil e seca nos agudos, com um vibrato excessivo que a cantora dificilmente parece controlar. A habitual postura rígida da cantora e o seu estilo hierático peculiar combinaram aliás perfeitamente com a natureza estática da encenação.
    Em início de carreira, Bárbara Barradas, aprisionada no papel de aia de um quadro medieval, deixou toda a sua energia juvenil extravasar nas cenas finais com o coro de mulheres, como se pretendesse demonstrar em competição que está apta para substituir a diva.
    Foi evidente a sua assinalável capacidade de projecção da voz, mas também óbvia a estridência do seu registo agudo. A sua carreira será seguramente curta se persistir neste tipo de prática.
    O coro teve uma das actuações menos conseguidas que me recordo de ver no São Carlos, por vezes ao nível do pior amadorismo.
    A orquestra actuou em "modo funcionário", seguindo mornamente a rotineira e plácida direcção de Domenico Longo.
    Em resultado, as paixões e o fogo contidos nas árias duetos e coros desta magnífica obra de Verdi estiveram permanentemente ausentes. Um espectáculo para esquecer, um sinal inequívoco da decadência do teatro de ópera lisboeta, uma tristeza, um sombrio prenúncio de desastre.
    Porventura teremos de desviar os nossos olhares para outras bandas se quisermos ver com menos pessimismo o futuro próximo. Nos próximos dias 6 e 7 o Estúdio de Ópera da Escola Superior de Música de Lisboa mostra no Teatro São Luiz o seu trabalho, valerá talvez a pena espreitar.
    Entretanto hoje mesmo, quando nos principais teatros europeus as temporadas de 2015/2016 estão há muito anunciadas, o São Carlos ainda não sabe indicar qual o elenco da última ópera da presente temporada, no final de Maio.
    JAM 04/03/2015

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  6. Depois do dito por o Sr Jose Antonio Miranda nao sei se me atrever a dar a minha opinião. Eu estive na estreia do dia 21, gostei. A encenaçao não é certamente grande coisa, mas para mim a situação economica bem justifica repor produçoes antigas.

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    1. Avance com a sua opinião sem receio, caro amigo AdMiles. O confronto das ideias é o melhor deste espaço, e todos ganhamos com ele.
      E concordo totalmente consigo quando diz que a situação económica justifica repor produções antigas. Foi esse aliás o caso já nesta temporada aquando de Werther. Mas nesse caso a encenação era genial !

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