terça-feira, 10 de março de 2015

MACBETH no Teatro Nacional de São Carlos — 27 de Fevereiro e 1 de Março de 2015

(imagens da internet)

Assisti à penúltima e última récitas da ópera Macbeth de Giuseppe Verdi. Trata-se de um ópera estreada em 1847, num dos períodos mais produtivos do compositor, mas, sobretudo, num período de maturação estilística de Verdi, havendo já muito daquele Verdi da trilogia popular (Il Trovatore, Rigoletto e La Traviata). Esta ópera foi, aquando da estreia em Paris em 1865, globalmente revista, sendo essa versão, claramente superior à original, aquela que hoje em dia se representa. Trata-se da primeira obra de Verdi que tem por base um peça do dramaturgo inglês William Shakespeare que foi adaptada pelo seu libretista Francesco Maria Piave. Para o meu gosto pessoal, trata-se de uma das óperas mais entusiasmantes de Verdi, com todo um conjunto de árias de dificuldade muito elevada e com um ritmo alucinante entre cenas.


O texto de Shakespeare é uma trama de crime guiado pela sede de poder e, também, da culpa geradora de uma tremenda angústia que conduz à loucura. Trata-se de uma peça muito rica que foi adaptada com qualidade por Piave, muito embora sem a genialidade do libretista de Otelo e Falstaff — Arrigo Boito. Poderão ler uma sinopse e conjunto de textos interessantes, além do libreto com excelente tradução para português, no programa de sala do TNSC de 2007.


A encenação de Elena Barbalich já era conhecida de parte do público, uma vez que se trata de uma reposição da encenação de Macbeth de 2007. É uma encenação interessante e que permite, de forma extremamente eficaz, o desenrolar da acção atendendo aos pormenores do libreto.


Destaca-se uma circunferência em forma de íris e com 8 partes espelhadas que, ao longo da acção, toma diversos papéis: serve como uma espécie de olho que permite as revelações das bruxas; de mesa aquando do banquete; de caldeirão nas revelações do III acto; torna-se escura e opaca quando os 8 reis empunham, cada um, um espelho; de ligação permanente entre a realidade, a revelação, a loucura e uma metáfora de observação que, no fundo, olha também para nós, elementos do público.


O jogo de luzes entre o vermelho e o branco é interessante, nomeadamente quando Duncano é assassinado: o fundo branco torna-se vermelho e, mais tarde, quando Duncano surge coberto do seu sangue vermelho-vivo, o fundo torna-se branco em contraste. Também são interessantes os flashes de luz branca aquando das revelações, ou o jogo de projecções baças e mal definidas das alucinações.


O vestuário é de época e rico em detalhes. Peca pela direcção de actores no que diz respeito aos solistas. É demasiado estática e não promove o dramatismo.


É, pois, uma encenação bem interessante e agradável de acompanhar e que enriquece a ópera, não tentando ser pretensiosa ao atribuir novos significados à acção. Aliás, comparativamente à nova produção do MET de que aqui se deu conta, creio que esta encenação é muito mais interessante. Não posso concordar com quem ache que se trata de uma encenação destituída de interesse ou qualidade, ou, muito menos!, que se trate de uma encenação obsoleta, indigente ou carente de outros demais adjectivos negativos. Antes pelo contrário!

A Orquestra Sinfónica Portuguesa dirigida por Domenico Longo apresentou um nível bom. Foi intensa a espaços e conseguiu criar momentos de dramatismo elevado, com um tempo interessante e, globalmente, favorável aos cantores. Foi, sem atingir o brilhantismo, uma interpretação de qualidade.

A ópera tem, como personagens principais, Macbeth — homem ambicioso e manipulável, com pouco recursos para lidar com a ambivalência que lhe geram os seus desejos e os seu actos —, Lady Macbeth — mulher implacável, perturbada, sem escrúpulos e com uma sede de poder que deixaria Maquiavél envergonhado —, e as Bruxas — elemento central do desenrolar da acção e  que lhe introduz sentido mágico.


Macbeth foi interpretado pelo barítono Àngel Òdena. Dotado de uma voz bem timbrada e agradável e dono de bons recursos dramáticos, foi um Macbeth convincente. Terminou em plano muito elevado na sua ária Pietà, rispetto, amore. É verdade que, cenicamente, não foi extraordinário, mas creio que esteve algo diminuído pela direcção de actores que, inclusive, o obrigou a um exercício acrobático e algo perigoso, ao fazê-lo subir uma cadeira muito alta envolto no seu manto comprido. Foi, apesar disso e no meu entender, o melhor da noite e um Macbeth de elevado nível vocal.


Lady Macbeth foi Elisabete Matos. Dotada de uma voz poderosa, metálica e de ampla tessitura, esperava-se uma Lady Macbeth de nível muito elevado. Cenicamente apenas cumpriu, não conseguindo passar a imagem de mulher perturbadamente sedenta de poder a qualquer custo, talvez pela sua postura demasiado estática. Vocalmente, cumpriu sem deslumbrar, o que muito se deveu à forma estranha como finalizava as notas mais agudas, a tendência para a estridência e à dificuldade em imprimir lirismo ao seu fraseado. Assim, quer em Vieni! t’affretta e La luce langue esteve longe de brilhar e perto de desiludir. Na famosa ária da loucura Una macchia è qui tuttora estava em melhor plano (foi mesmo, globalmente, a sua melhor ária) até que falhou, por completo, o pianissimo final ao dizer Andiam, o que, infelizmente, foi a imagem que ficou. Disseram-me que estava doente, pelo que, se assim for, se desculpa e se agradece o esforço.

O Coro do TNSC esteve, nas suas várias intervenções, num plano razoável, tendo, sobretudo no coro inicial, apresentado alguns elementos desencontrados dos restantes e com recurso frequente à estridência.

O Banquo de Giacomo Prestia deslumbrou com a sua voz potente e bem colocada que, dada a curta extensão do papel, não o permitiu brilhar mais. Esteve muito bem na sua ária Studia il passo, o mio figlio!

Macduff foi o tenor Enzo Peroni que, com uma voz relativamente pequena, baça e sem brilho vivo, cumpriu sem encanto o seu curto papel, nomeadamente na ária O figli, o figli miei!

Destaco a interpretação de Bárbara Barradas que, apesar do curto papel, conseguiu brilhar nas suas intervenções, tendo estado particularmente bem nos coros finais do 1.º acto (nomeadamente no quarteto que canta a morte de Duncano) e 2.º acto com uns agudos que sobressaiam sobre a orquestra, bem como no 4.º acto. Concordo com a opinião de J.A. Miranda quando afirma que esta — e do que vi sobretudo na récita de 27 (na última esteve mais comedida) — parecia estar numa competição para demonstrar  estar preparada para ser, ela própria, a diva. Ainda assim, dada a qualidade que evidenciou, fiquei muito agradado. Aliás, Bárbara Barradas, pelas suas recentes excelentes interpretações no Il Viaggio a Reims e como Barbarina no Le Nozze di Figaro da FCG, está há muito a pedir papéis de maior relevo e destaque!

Os restantes elementos foram competentes e eficazes, nomeadamente o Malcolm de Marco Alves dos Santos.


Foram, no cômputo geral, duas récitas homogéneas e agradáveis no TNSC. Nesta temporada, apesar do baixo orçamento, o São Carlos tem revelado vontade de retomar alguma da qualidade de outros tempos. Não posso, pois, concordar com opiniões tendentes a que o TNSC tenha apresentado um espectáculo medíocre. Posso concordar, isso sim e infelizmente, que parece haver uma nuvem negra sobre o futuro deste teatro. Entra director, sai director. Não anuncia o substituto. Logo não anuncia temporada. Antes se prenuncia a falta dela. Mas, entretanto, só há vazio e a incerteza. E fica seguramente o descrédito das entidades ligadas à cultura (ou falta dela) que a gerem. Fica a inépcia do Secretaria de Estado da Cultura. A cultura — a maior riqueza de um povo e aquilo que o faz perdurar e unir-se — reduzida a uma secretaria de estado sem expressão é, desde logo, sintomático da avareza intelectual dos nossos "dirigentes"... Assim, lentamente e, como diria Eça, "num galopezinho muito a direito e muito seguro", assiste-se ao cortejo fúnebre e lento do TNSC, não sem que se vislumbrem raros laivos de vida, aliás como acontece nos estertores da morte... E isso é lamentável!

1 comentário:

  1. Assisti à última récita e fiquei deveras impressionado. Não conhecia a encenação e gostei bastante. Simples e eficaz. Pena a quase total ausência de direcção de actores.
    Quanto às interpretações também fiquei muito agradado. Para mim o melhor cantor foi, sem dúvida, Giacomo Prestia. Um Banquo de elevada qualidade em qualquer parte do mundo!
    Também Àngel Òdena ofereceu uma assinalável interpretação vocal do Macbeth.
    Elisabete Matos não esteve num dia feliz, mas foi muito boa em várias intervenções. Pena a ausência daquele ré final, que é a última nota que canta(ria) e, por isso, foi a impressão que ficou. Talvez a Lady Macbeth não seja, nesta fase, o melhor papel para a sua voz.
    O tenor Enzo Peroni, bem mais fraco que os outros, ainda assim foi digno.
    Quanto a Bárbara Barradas, já muito elogiada neste blogue, espero que continue numa trajectória ascendente. Tem uma voz bem audível mas, no registo mais agudo, tende para a estridência, o que prejudica a qualidade da interpretação.
    Se o São Carlos continuasse a oferecer (com a regularidade própria de um teatro de ópera de uma capital europeia) espectáculos de ópera de qualidade idêntica à deste Macbeth ou do Werther anterior (as únicas duas que vi), não teríamos razão de queixa!

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