(Review
in English below)
O Nariz é uma ópera russa escrita por um dos mais
influentes compositores do século XX, o génio russo Dmitri Dmitriiyevich Shostakovich (1906-1975).
Completou-a em 1928
com apenas 22 anos de idade, um feito alcançado por muito poucos, sobretudo
pela enorme novidade e riqueza criativa que atingiu e que usou como base da sua
importante obra musical como, por exemplo, nas suas sinfonias.
O libreto foi
elaborado por Yevgeny Zamyatin (escritor
russo na linha gogoliana), Georgi Ionin,
Alexander Preis e pelo próprio Dmitri Shostakovich. Mas foi este último quem, de facto, mais se lhe
dedicou. O libreto é a adaptação do conto satírico O Nariz (1836) de Nikolai Gógol (1809-1852), genial autor
russo de uma sagacidade, intrepidez e sensibilidade de análise social assinaláveis,
autor de Almas Mortas e pai de uma geração literária com nomes onde pontificam
Tólstoi e Dostoiévski.
A adaptação é,
podemos afirmá-lo, perfeita: não faltam cenas, não faltam os comentários
mordazes do autor, não falta o ambiente de loucura absurda e surrealista, ou a
agitação de uma São Pertersburgo azafamada, quase caótica. Houve uma atenção ao
detalhe imensa ao ponto de quase se poder “dispensar” a leitura do conto
original, o que, todavia, não aconselhamos.
A história poderá ser
lida com mais detalhe no site do Metropolitan, mas fica aqui um resumo:
Acto I: Num sonho ou na realidade, o barbeiro Ivan
Yakovlevich faz o seu trabalho num estado inebriado. Ao acordar, quer comer o
pão com cebola que a mulher prepara. Mas quando o parte, encontra, estupefacto,
um nariz (“Hoc!”, exclama). Atrapalhado, o barbeiro sai de casa para se
desfazer do nariz, mas depara-se sempre com algo que o impede. Entretanto, o
assessor de colégio, ou antes, o major Kovaliov acorda e, olhando-se ao
espelho, verifica que o seu nariz desaparecera. Perplexo, parte à sua procura.
Na Catedral de Kazan encontra um cavalheiro com farda de Conselheiro de Estado
que é, nem mais, nem menos, que o seu próprio nariz. Tenta chegar-lhe à fala,
mas da conversa nada resulta.
Acto II: O atrapalhado Kovaliov vai à polícia dar parte
do desaparecimento do seu nariz e queixar-se de que o seu nariz se faz passar
por conselheiro de estado e se anda a passear pela cidade. O polícia recebe-o
com maus modos e não lhe dá importância. Kovaliov segue para o jornal. Quer
colocar um anúncio sobre o desaparecimento do seu nariz, mas no jornal recusam-lhe
a publicação do anúncio. Kovaliov regressa a casa desesperado.
Acto III: O chefe da polícia ordena a captura do
homem-Nariz. Correm imensas e contraditórias notícias pela cidade de que um
homem na forma de nariz se anda a passear pela cidade. A população mobiliza-se
para os diversos locais onde tem havido relatos dessa presença invulgar. Entretanto,
o inspector da polícia vai a casa de Kovaliov entregar-lhe o nariz que tinha
sido encontrado. Kovaliov tenta em vão colar o nariz. Na sua impossibilidade,
chama um médico que lhe diz que, apesar de o poder fazer, não o faz porque o
resultado seria pior. Kovaliov, muito aborrecido, envia uma carta a Podtochina
acusando-a de lhe ter lançado um feitiço (ela queria casá-lo com a sua filha,
mas Kovaliov só queria o flirt). Esta
responde-lhe e Kovaliov conclui que ela está inocente. O povo reúne-se e discute
este estranho caso quando, entretanto, aparece Kovaliov, satisfeito, já com o
nariz de novo no lugar. "Digam o que disserem, acontecem coisas destas no mundo - raramente, mas acontecem."
A música que
Shostakovich compôs para esta ópera é notável. Recuando ao ano de 1928, a sua
música é extremamente ousada e inovadora, predominando a dissonância. São mais
de 500 páginas de música para 30 instrumentos (1 por cada naipe mais percussão,
domra e balalaica — instrumentos de cordas russos). Os instrumentos são
virtualmente usados como leitmotif: o
Nariz é uma flauta alto, Kovaliov é uma corneta e um xilofone, Ivan é uma
balalaica.
A Orquestra do Metropolitan esteve em
elevadíssimo nível dirigida pelo maestro Pavel
Smelkov.
O barítono brasileiro
Paulo Szot foi um Kovaliov estupendo.
A sua voz tem um timbre muito bonito e pareceu sempre muito confortável na
ultrapassagem dos muitos e difíceis desafios que a partitura lhe exigiu. As
suas capacidades como actor já foram premiadas pelas suas interpretações em
musicais e Szot fez jus aos prémios: foi um Kovaliov a todos os níveis
irrepreensível, muito convincente. Mostrou-se cómico, sedutor, atrapalhado e
desesperado sempre que se exigia. A sua
cena no jornal, só para dar um exemplo, com todo aquele desespero chorado foi
extraordinária. Foi uma actuação digna de um Oscar.
O tenor russo Andrey Popov como Inspector da polícia
esteve, também, em muito bom nível. Os seus agudos nunca saíram gritados, foi
sempre muito equilibrado e o timbre é muito agradável. Aliou à prestação vocal,
uma interpretação cénica de bom nível.
Podíamos falar de
muitos outros cantores, mas são tantos... Tiveram todos desempenhos de elevada
qualidade e acabamos por destacar o papel de enorme comicidade do médico (o
baixo Gennady Bezzubenkov), a beleza
tímbrica da soprano Ying Fang (filha
de Podtochina e voz feminina na Catedral), o racional funcionário do jornal (o
barítono James Courtney), ou o atrapalhado barbeiro Iakovlevitch (o
baixo Vladimir Ognovenko).
O melhor fica para o
fim. A encenação do artista plástico sul-africano William Kentridge é absolutamente genial. A observação ao vivo
desta encenação deve ser um espectáculo memorável. Conseguiu transportar-nos
para o ambiente da Rússia dos anos 20, com todo aquele rebuliço revolucionário:
com colagens, incontáveis recortes de jornais, frases em russo e em inglês
projectadas, inúmeras projecções em vídeo do compositor, de cavalos projectados
usados para “puxar” os cenários das diversas cenas, até de Estaline, do nariz
omnipresente... Só visto.
Fica um vídeo com uma entrevista a Kentridge e vários
outros do ensaio geral que poderão ajudar a ter uma ideia da dimensão artística
notável desta criativíssima encenação.
E não resisto a deixar-vos, também, o link para o vídeo desta produção apresentada anteriormente no Festival d'Aux en Provence com a Opera de Lyon.
Se o magnífico desta
ópera fosse só a música moderna de ritmicidade espectacular de Shostakovich, já
tinha valido a pena. Se o magnífico desta ópera fosse só a adaptação exemplar
do conto de Gógol, já tinha valido a pena. Se o magnífico desta ópera fosse só
a encenação hipercriativa de Kentrigde, já tinha valido a pena. A conjugação
destes três elementos, aliados às excelentes interpretações com um Szot
estelar, tornam esta produção um marco inesquecível.
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(Review
in English)
The Nose is a Russian opera
written by one of the most influential composers of the twentieth century, the
Russian genius Dmitri Dmitriyevich
Shostakovich (1906-1975). He completed it in 1928 with only 22 years of age,
a feat achieved by very few, especially because of its huge novelty and
creative richness that he used as the basis of his later major musical works,
for example, in his symphonies.
The
libretto was written by Yevgeny Zamyatin
(Russian writer in gogolian way) , Georgi
Ionin, Alexander Preis and Dmitri Shostakovich himself. But it was
the latter who, in fact, was the most dedicated to it. The libretto is an
adaptation of the satirical short story The
Nose (1836) by Nikolai Gogol
(1809-1852), Russian writer of a brilliant social analysis sagacity, intrepidity
and sensitivity, author of Dead Souls and father of a literary generation with
names where Tolstoy and Dostoevsky pontificate.
The
Nose short story adaptation is, we can state it, perfect: there are no missing
scenes, the author’s biting comments are all them present, the ambiance of
absurd and surreal madness, or the excitement of a bustling and almost chaotic San
Petersburg are touchable by our senses. There was an immense attention to
detail to the point of almost being able to "waive" the reading of
the original tale, which, however, we don’t recommend.
The
story can be read in more detail in the Metropolitan website.
The
music that Shostakovich composed for
this opera is remarkable. Retreating to the year 1928, his music is extremely
bold and innovative, predominantly dissonant. Featuring over 500 pages of music
for 30 instruments (1 for each section plus percussion, domra and balalaika -
Russian stringed instruments). The instruments are virtually used as leitmotif:
Nose is an alto flute, Kovalyov is a cornet and a xylophone, Ivan is a
balalaika.
The Metropolitan Orchestra was at very high
level directed by Pavel Smelkov .
The
Brazilian baritone Paulo Szot was a
remarkable Kovalyov. His voice has a beautiful tone and he always seemed very
comfortable in overcoming many difficult challenges the score required. His
skills as an actor have been already awarded for his performances in musicals
and Szot showed us why: He was one impeccable and very convincing Kovalyov at
all levels. Whenever required, he was humorous, seductive, fumbling and
desperate. His scene at the newspaper, just to give an example, with all that
crying and despair was extraordinary. It was a performance worthy of an Oscar.
The
Russian tenor Andrey Popov as Police
inspector and he was also in a very good level. He never came out screaming,
his performance was always very balanced with a very pleasant timbre. Allied to
vocal performance, he offered us a high level scenic interpretation.
We
could mention many other singers, but they were so many ... All had high
quality performances and we end by highlighting the role of the physician comic role (bass Gennady Bezzubenkov) , the timbre beauty of the soprano Ying Fang (as Podtchina’s daughter and
female voice in the Kazan’s Cathedral scene), the cerebral newspaper official (baritone
James Courtney), or jmbled barber
Iakovlevitch (bass Vladimir Ognovenko).
The
best is to end. The staging of the South African artist William Kentridge is absolutely brilliant. This production viewed
live muts be a memorable show. It is able to transport us to the environment of
Russia of the 20s, with all that revolutionary turmoil: with collages,
countless newspaper clippings, projected phrases in Russian and English,
countless video projections on the composer, the projected horses used to
"pull" scenarios of various scenes, even Stalin was there, and, of
course, the ubiquitous nose... Only seen. Here is a video with an interview
with Kentridge and various other from the final rehearsal that may help you to
have an idea of the scale of this remarkable artistic and plenty of creativeness
imagination production.
If
this opera was just magnificent by Shostakovich’s modern music of spectacular
rhythmicity, it had been worthwhile. If this opera was magnificent just due to
it’s exemplary adaptation of Gogol's tale, it had been worthwhile. If this opera
was magnificent only by hyper-creative Kentdrige’s staging, it had been
worthwhile. The combination of these three elements plus with excellent
performances with a stellar Szot makes this production a memorable milestone.
Como sempre, a leitura dos textos do Autor deixa-me a sensação de perda por não ter tido oportunidade de assistir ao espectáculo e o desejo de não perder outras oportunidades. No caso a ópera “O Nariz”. Como sempre, o texto produzido está muito bem estruturado, escrito com arte literária (note-se, por exemplo, a conclusão) e ilustrado com propriedade e gosto.
ResponderEliminarFica o meu muito obrigado ao Autor . André de Fronteira
Realmente, também fiquei com pena por não ter ido porque o texto está muito emotivo. Espero encontrar em DVD porque esse filme de Lyon não tem legendas e o que eu sei de russo é zero. Cumprimentos ao Fanáticos!
EliminarDepois de ler a crítica, também fiquei com a mesma sensação dos demais comentadores. Não consegui bilhete para esta transmissão e agora confirmo que perdi uma excelente récita.
ResponderEliminarNão conheço esta ópera, mas a apresentação que vi durante a transmissão do Eugene Onegin suscitou-se imenso interesse na sua exploração. Talvez quando sair o DVD.
Cumprimentos,
J. Baptista