A ópera Evgeni
Onegin de Tchaikovsky é uma das
minhas preferidas e Valery Gergiev
não a poderia ter descrito melhor: "it is lyrical,
truthful, not sentimental and beautiful". É das óperas mais melodramáticas jamais escritas,
dá espaço à interpretação, à entrega total dos cantores e músicos, e tem uma
música arrebatadora. É mais um daqueles exemplos da ópera como arte total. Quem
a ouvir não lhe poderá ficar indiferente.
A produção é a que esteve no MET para a
abertura da nova temporada e que o Fanático Um teve a oportunidade de assistir
ao vivo, como deu nota aqui.
O libreto é do próprio Tchaikovsky e de Konstantin Shilovsky baseados no romance homónimo de Alexander Pushkin. Pode ler-se uma
sinopse aqui.
A interpretação musical de Gergiev com a Orquestra do MET foi sublime. É notoriamente um conhecedor profundo
do texto de Pushkin que lhe deu origem (na entrevista foi interessante o
saudosismo que ele revelou acerca do ensino da extinta URSS) e isso
transmitiu-se para a música: a orquestra soou magnífica, expressou todas os
matizes e coloridos e deu espaço amplo ao canto. Destaque também para o Coro do MET muito bem dirigido e a soar
como costuma.
A encenação é de Deborah Warner. Convencional, mas de uma beleza profunda. A grande
novidade é a postura que atribui ao par amoroso e que, no meu ver, vai mais de
encontro ao texto original. E há ainda dois beijos e um abraço significativos.
Vejamos.
De Tatiana espera-se uma jovem tímida,
sonhadora e melancólica que se torna uma mulher de posição social elevada que é
segura e, sobretudo, adstrita a uma moral férrea onde prevalece a honra. Até
aqui não há novidade. A novidade aqui foi Anna
Netrebko: sempre foi um dos papéis que mais ardentemente lhe desejei ouvir.
E ela foi FABULOSA! Para mim a melhor Tatiana de sempre. A voz não tem igual:
tem um timbre belíssimo, é cheia, viva, colorida, trágica, romântica, madura,
brilhante. Tem uma técnica exemplar que lhe permite fazer o que quer, chegar a
todos os agudos com uma facilidade ofensiva, fazer pianissimi mais audíveis do
que muitas sopranos a dar tudo o que têm… Querem que continue? (Gergiev falava
que é muito trabalhadora dentro e fora do palco: nota-se!). E que dizer das
suas capacidades interpretativas? A própria Anna disse que era toda o contrário
da Tatiana. Transfigurou-se. Fez uma Tatiana soberba. No primeiro acto foi
introspectiva, de uma timidez tocante, de uma melancolia expressa na voz, no
rosto, na expressão corporal. A encenadora arranjou-lhe um beijo de Onegin no
fim do sermão que a deixou completamente na dúvida, desfeita.
E o último acto?
Transforma-se numa mulher madura e dotada de uma moral sólida que resiste à
paixão: a forma como lida com Onegin mostrando-lhe frieza, confrontando-o, foi
perfeita. E no fim, novo beijo. Mas por iniciativa de Tatiana: mais ardente,
mais humano. Uma libertação e uma despedida em forma de desejo sem promessa
futura.
Netrebko disse que ainda não tinha cantado
este papel porque não estava preparada: valeu a pena esperar. E fê-lo tão bem
porque, nas suas palavras, "I'm in love". Ainda bem e que continue!
Onegin não foi o vilão habitual e, no meu
ver, bem. Sempre achei que Onegin desejava a Tatiana que conheceu num ambiente rural
pouco dado a futilidades extravagantes. E sempre achei que foi sincero no
sermão que lhe dá. Foi duro, isso é verdade. Mas não tem necessariamente de ser
um vil, rude e arrogante fanfarrão. No fundo, como ele diz, não estava
preparado para assumir o papel de marido e seguir uma moral de fidelidade com
tão só 24 anos. Não era esse o seu destino imediato. Ainda assim, a encenadora
pô-lo a beijar Tatiana no final dessa cena — um beijo terno. Por um lado
revela, como disse Kwiecien, "que ele é um cão com as mulheres" e que
não a podia deixar escapar, por outro expressa um sentimento que ele não queria
assumir. Ele próprio diz a Tatiana que “Amo-a com um amor de irmão ou talvez
mais./ Talvez, talvez mais do que isso!”. Está, de facto, ambivalente. O beijo
deixa-o claro.
Mas não deixa de ser infantil na provocação
que se revela fatal a Lensky. Percebe-se a vontade que tem de voltar atrás e
mostra-se arrependido. Mas não consegue deixar o orgulho de parte e avança para
o duelo que Lenski, na sua cegueira arrebatada, lhe propôs. Antes do início do
duelo, cumprimentam-se com um aperto de mão e Onegin abraça Lenski como que a
pedir-lhe perdão e numa tentativa de deixar o orgulho cair por terra: quem cai
é Lenski que não o perdoa e a quem já se auto-dedicara um poema fúnebre no seu
“Aonde, aonde haveis ido, dourados dias da minha juventude?” (“Kuda, kuda, kuda
vi udalilis, vesni moyei zlatiye dni?”).
Mas volta mais maduro, já com 26 anos, a uma
São Petersburgo onde, ao ver Tatiana, se apaixona pela mulher em que esta se
tornara. E fica desesperado, mas não num desespero de posse, agressivo e
dominador como muitas vezes se vê. O seu desespero é o de um jovem apaixonado
afogado na culpa do que perdera, do que lhe era agora inalcançável, do
prolongamento do vazio em que ficara após a morte do seu amigo Lenski e a que
se vê irrevogavelmente votado. Isso nota-se, também, quando Onegin repete
textualmente frases da carta que esta lhe escreva dois anos antes e que ainda
recordava, como, por exemplo, “Toda a tua vida foi uma promessa da nossa
união!” (“Vsya zhizn tvoya bila zalogom/ Soyedinyeniya so mnoi!”). O beijo
final de Tatiana é para ele o equivalente ao tiro que deu a Lenski. É a sua
morte viva: “Ignomínia! Dor! Oh, destino lamentável!” (“Pozor!... Toska!... O
zhalki, zhrebi moi!”).
A interpretação de Kwiecien foi de muita qualidade, quer vocal, quer cenicamente. Tem
uma voz com um timbre belíssimo, é muito melódico e tem agudos fáceis e um
fraseado muito correcto. Cenicamente foi extremamente convincente. Como foi uma
transmissão, não sei se se terão sentido as dificuldades que o Fanático Um
experimentou quando o ouviu ao vivo no MET. Em todo o caso, uma das melhores
interpretações de Onegin que ouvi.
Lenski tem a postura convencional do jovem
poeta: lírico e com uma paixão quase pueril. A interpretação vocal do tenor Beczala mostrou, uma vez mais, porque é
um dos melhores tenores da actualidade. Tem uns agudos estratosféricos, com uma
voz de invulgar beleza e muito viva. Cenicamente é também muito convincente. Óptimo!
A Olga é-nos apresentada ligeiramente menos
acriançada. Vê-se a sua preocupação em tentar confortar Lenski e demovê-lo do
duelo, mas não consegue. Essa postura foi notada por Gergiev que disse que ela,
nesta encenação, “não era tão cabeça oca”. A interpretação de Oskana Volkova foi de elevada qualidade.
Gremin foi Alexei Tanovitsky. Confirma-se o que dissera o Fanático Um. Foi uma
sombra do que se ouviu há uns anos da tribuna do TNSC. Os agudos foram ásperos,
em esforço e, apesar de captado por microfones, na transmissão deu a ideia de
não ter muita potência e de estar desconfortável. Que pena, até porque tem a
figura ideal para Gremin.
Elena
Zaremba foi Madame Larina e
Larissa Diadkova foi Filippyevna. Ambas cumpriram bem os seus papéis.
Espero que o DVD saia o quanto antes, porque
é daqueles que quererei comprar para ouvir, guardar na estante e retirá-lo de
lá muitas vezes!
A ópera tem um final trágico, é certo. Mas a
felicidade com que saí da sala foi mais uma revelação de como a música tem um
lugar especial entre as artes. E, afinal de contas, esse sentimento é o melhor
dos finais!
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(Review in English)
Evgeni Onegin by Tchaikovsky is one of my
favorite operas and Valery Gergiev
couldn’t describe it better: “it is lyrical, truthful, not sentimental and
beautiful”. It is one of the most melodramatic music pieces ever written, gives
space to scenic interpretations and total delivery by singers and musicians.
Its music is breathtaking. It is one more example of opera as total art. The
one who hear it cannot be indifferent.
The production was chosen for
MET 2013-14 season opening. Fanatico Um had the opportunity to see it live, as
he noted here.
Libretto was written by Tchaikovsky himself and Konstantin Shilovsky based on
homonymous romance by Alexander Pushkin.
You could read a synopsis here.
Gergiev’s
musical interpretation along with MET
orchestra was sublime. He notoriously knows profoundly Pushkin romance (the
nostalgia he revealed in the interview about the USSR education system was
interesting) and that was transmitted to music: the orchestra sounded
magnificent and expressed all the music nuances and colors and gave ample space
to singers. MET chorus sounded as
they normally do: very well.
Staging was in charge of Deborah Warner. It is conventional, but
profoundly beautiful. The greatest novelty was the attitude she gave to the romantic
duo that, in my view, is much more in harmony with the libretto. And there were
two significant kisses and a hug.
Of Tatiana we could expect a
shy, dreamful, and melancholic young woman that latter becomes a woman of high
social position and that is self-assured and, above all, owner of a ferric
moral in which honor prevails. To this point there is no news. The novelty here
was Anna Netrebko. Tatiana was
always one of soprano title roles that I most desired hear Anna to sing. And
she was FABULOUS! Best Tatiana ever, in my opinion. Her voice has no rival: it
has the most beautiful timbre; it is plenty, vivid, colorful, tragic, romantic,
mature and brilliant. Se has an exemplar technic which gives her the
possibility to do whatever she wants, reach every high note with offensive
ease, do more audible piannisimi than a lot of sopranos giving all they have…
Do you want me to continue? (Gergiev said that she is an extreme hard worker on
and off the stage) And what about her interpretative capacities? Anna herself
said that she is totally Tatiana’s opposite. She transfigured herself. And was
a superb Tatiana. At the first act she was introspective, of a touching
shyness, of a melancholy expressed on her voice, face and corporal expression.
The stage director invented a kiss by Onegin at the final of his sermon. She
remains completely in doubt, disregard. And what about the last act? She
transformed herself in a mature woman, gifted with a solid moral that resists
to passion: the way Netrebko deal with Onegin with coldness, confronting him,
was perfect. At the final: another kiss. But it was of Tatiana initiative: more
ardent, more human. It was liberation and farewell in the shape of desire with
no future promises.
Netrebko said she had never
sung this role before because she was not yet prepared. It was worth to wait.
And she had done it so well because, in her words: “I’m in love!” So we all
want her to still in love!
Onegin was not the usual
villain and, in my opinion, it was well interpreted by Warner. I always consider
that Onegin wants the young Tatiana he met on the rural countryside far from
the extravagant futilities. And I always believe that he was sincere when he
gives Tatiana the sermon. It is true he was firm. But he has not to be
necessarily a vile, rude and arrogant boaster. Deep down he is, as he himself
said, not prepared to assume husband roles and to follow a fidelity moral with
only 24 years old. That was not yet his destiny. In spite of that, Onegin
kisses Tatiana at sermon’s end: one tender kiss. At one hand, it reveals, as
Kwiecien said, “that he is a dog with women” and that he cannot could left her
escape, but, at another hand, he expresses a sentiment that he cannot assume.
He himself says to Tatiana that: “I love you with a brother's love, a brother's
love or, perhaps, more than that! Perhaps, perhaps more than that!” He is,
indeed, ambivalent. The kiss makes it clear.
However, he remains to be
infantile on the finally lethal provocation he does to Lenski. We perceive his
desire to come back and his regret. Nevertheless, he cannot leave his pride
apart and goes on the Lenski proposal of a duel. Before it, they give a
handshake and Onegin tries to hug Lenski as he was telling Lenski to forgive
him and to give up of the duel. The latter refuses it. He cannot forgive Onegin
and dies after singing a finable poem he himself dedicated to him: Where, oh
where have you gone, golden days of my youth?
Onegin returns more mature
(he has now 26 years old) to St. Petersburg where he falls in love for the
woman who Tatiana had become. And he goes desperate. But not a possession,
aggressive and dominant despair. It is a the despair of a passionate young man
sunk on the guilt of what he lost, of what is now unreachable for him, of the
extension of the emptiness he had been after his friend death. That is noted,
too, by the Tatiana’s letter sentences he remembers and that said to her. For
example, “All your life has been a pledge of our union!” The final kiss by
Tatiana was for him the equivalent of his shot on Lenski: “Ignominy! ...
Anguish! ... Oh, my pitiable fate!”
Kwiecien interpretation was of high quality vocal and scenically. He has an
extremely beautiful timbre, and he is very melodic with easily reachable high
notes. One of the best Onegin interpretations I heard.
Lenski has his conventional
young poet attitude: lyrical and almost puerile passion. Beczala vocal interpretation confirmed why he is nowadays one of
the best tenors. He has stratospheric pitches! Scenically he is also very
convincing. Outstanding performance!
Olga is revealed to us in a
less childish manner. It is evident when she tries to comfort Lenski and to
dissuade him from his fatal duel. Her attitude was noted by Gergiev who said
“This Olga is less empty minded!” Oskana
Volkova performance was of quality.
Tanovitsky’s Gremin, as Fanatico Um had noted, was far from what we see and heard
at São Carlos years ago. His high notes were rough, with no so much vocal
potency. He seemed uncomfortable. It was a pity even because he has the ideal
figure to represent Gremin.
Elena Zaremba as Madame Larina and Larissa
Diadkova as Filippyevna performances were of high quality.
I’m now waiting for the DVD
release because it will be one to heard and reheard a lot of times.
This opera has a tragic
finale, indeed. But the pervasive happiness I felt when I leave the hall was
one more revelation of why music has a special place among arts world. And, at
the end, this sentiment is the best of finales!
Obrigado pelo magnífico texto. Também estive na Culturgest e, como refere, tive o privilégio de assistir ao vivo a uma récita desta ópera (não a que foi transmitida em HD). O confronto das duas situações é muito interessante.
ResponderEliminarAspecto positivo - a possibilidade de ver, em grande pormenor, a postura e desempenho cénico dos cantores/actores. Se já tinha ficado deveras impressionado com a Netrebko mas, depois de ver a transmissão em HD, considero que a prestação foi, de facto, magnífica. Também eu digo que foi a melhor Tatiana que ouvi e vi até hoje. Os restantes solistas estiveram igualmente muito bem.
Aspectos negativos - perde-se a noção conjunta, dado que há, quase sempre, grandes planos de alguns protagonistas, esquecendo-se tudo o resto. A cena do duelo entre Onegin e Lenski é uma das que mais perde na transmissão HD, mas há várias outras.
A amplificação sonora torna todos os cantores igualmente (bem) audíveis o que ao vivo não foi, de todo, o caso. Se a Netrebko e o Beczala foram notáveis, o Kwiecien esteve um pouco aquém e, sobretudo, o Tanovitsky foi muito fraco (mesmo na transmissão HD foram evidentes dificuldades, mas ao vivo foram muito mais notórias).
Mas foi óptimo ter oportuniddade de rever esta excelente ópera que, como referi, faz justiça à abertura da temporada do Met.
I don't know this opera. As I am learning, I am trying to stick to the most famous ones first. However, this one does seem very interesting. I am getting used to the tragic finales. Thank you for your usual terrific review.
ResponderEliminarCaro Camo_opera,
ResponderEliminarApreciei muito o seu texto, com o qual concordo na quase totalidade.
Também assisti à transmissão na Culturgest, que aguardava com grande expectativa pois sou grande apreciador desta ópera (diz no seu texto – e eu concordo – que a música é arrebatadora e que quem a ouvir não lhe poderá ficar indiferente. Quando caiu o pano no final do acto I, vindo de uma das cadeiras de traz, ouvi o seguinte comentário: “os cenários são muito bonitos, mas a música não tem piada nenhuma!”).
Concordo com a sua apreciação dos cantores. Apreciei imenso a prestação da Netrebko, embora a cena da carta não me tenha convencido completamente. O Kwiecien esteve muito bem (realmente a amplificação mascara eventuais problemas detectáveis ao vivo) e o Beczala andará perto de ser um Nicolai Gedda dos tempos modernos.
Não apreciei particularmente a composição do M. Triquet, que mais parecia um boneco articulado, a cantar como tal. Também o Tanovitsky (que nunca tinha ouvido) mostrou evidência de problemas vocais, embora se perceba que é uma bela voz de baixo, profunda e escura.
Quanto à encenação, achei que transmitiu bem a atmosfera outonal e melancólica que perpassa na música. Apenas dois aspectos me pareceram claramente negativos.
O primeiro na cena da carta. Tal como escreveu Jorge Calado no Expresso, o cenário da cozinha transformada em quarto de dormir da Tatiana retira qualquer sentido de intimidade à cena. Tatiana está prisioneira da sua maneira de ser e do seu estatuto sócio-familiar e o quarto é um dos seus confinamentos. É na cena da carta que ela, pela primeira vez, ganha coragem e sente um impulso para se libertar e se projectar para fora da sua vida (do seu quarto). Colocar esta cena tão importante na cozinha transformada em quarto parece-me uma má opção.
O segundo é a cena do duelo. Achei mesmo ridículo que o Onegin chegue ao local acabando de comer uma bucha. Parece-me um apontamento ridículo e que não “casa” com o que se vai passar de seguida. Depois, um duelo com caçadeiras?? Nem num western!. Finalmente, achei incoerente colocar o Onegin e o Lenski a abraçarem-se antes do duelo, quando, no duplo monólogo que imediatamente antecede, se tinham questionado sobre como é que a sua amizade tinha chegado a um tal ponto e se não faria sentido separarem-se amigavelmente, concluindo resolutamente que não (Ne razoitis li polyubovno? / Nyet! Nyet! Nyet! Nyet!).
Mas tirando estes pormenores, um excelente espectáculo. Só foi pena não poder ser visto na Gulbenkian, onde os som é manifestamente melhor.
Cumprimentos,
João Baptista