(Review in English below)
A
ópera Parsifal (WWV 111) de Richard Wagner — a sua última ópera —
foi inicialmente pensada em 1857, mas concluída e estreada apenas em 1882.
Wagner não a considerava uma ópera, mas antes uma buhnenweihfestspiel,
isto é, um festival cénico sagrado. Foi baseada parcialmente na obra Parzival
de Wolfram von Eschenbach.
A
ópera trata, em suma, da decadência do Mundo e dos Homens, da perda de valores,
da dor em forma de culpa, do confronto do desejo contra o dever do dever (passe
a redundância), da religião e do paganismo ou do divino e do mundano, da
procura de redenção e do superior. É a via
sacra de Wagner. A mensagem (controvérsias à parte) é poderosa. E a música...
Ah! Essa é inigualável em beleza, em intensidade, em dramatismo, em suspensão
do tempo, em transporte para outra realidade, em embalar o nosso imaginário. É
o génio libertado em fuga constante na procura do sublime. Inalcançável?
A transmissão da Royal Opera House
Live Cinema é de excelente qualidade: até melhor do que a do MET Live in HD. Tem entrevistas já
gravadas com o encenador, maestro e cantores, apresenta um resumo da história e
tem entrevistas ao intervalo a uma pessoa ligada ao ramo operático. A qualidade
de imagem não é tão boa quanto a do MET, o mesmo se aplicando ao som, mas isso
poderá ter que ver mais com as condições da sala do que com a transmissão em si. Mas não houve nenhuma falha
técnica e as legendas em português do Brasil estavam muito bem feitas e
cuidadas.
A nova produção de Parsifal
para a ROH esteve a cargo de Stephen Langridge. A abertura começa com uma imagem projectada no pano do
palco da boca de Kundry numa espécie de grito desesperado pela sua dor eterna.
Essa imagem recorre em máscaras que são por vezes usadas pelos elementos do
coro e que representam o grito de Kundry.
No final da abertura, sobe o pano onde
se destaca, como elemento central do cenário, uma caixa cúbica com um painel de
vidro fosco. Lá dentro está Amfortas deitado numa cama de hospital. Geme a sua
dor enquanto 6 escudeiros vestidos de enfermeiros o guardam e observam.
Toda a
acção gira em torno desta caixa que é omnipresente nesta produção. É lá que são
contadas — sob forma de analepse — as diversas histórias do ferimento/pecado de
Amfortas, do passado de Parsifal, da castração de Klingsor, etc. Também é lá
que está o Graal.
Essa é uma das inovações: o Graal do primeiro acto é uma
criança a quem Amfortas inflige, num ritual purgativo, uma ferida incisa no
flanco esquerdo, local onde Klingsor lhe tinha feito a sua ferida com a lança
sagrada que roubara. São as dores física e psicológica ao mesmo tempo e uma exposição tremenda e
dolorosa da criança quase despida. Em volta, troncos de árvore erguidos criam um
ambiente bucólico contrastante. O cenário transforma-se pouco para o 2.º acto,
mas no terceiro surge mais decadente: as cadeiras partidas, troncos caídos.
A direcção de actores é um pouco amorfa no 1.º acto, mas no segundo há
uma transformação: a partir daí é mais dinâmica, mais activa.
A cena com as
donzelas-flores do reino de Klingsor foi bem conseguida. Na 2.ª cena do 2.º
acto, Kundry, ao não ver satisfeito o seu pedido, inflige um castigo a Parsifal,
cravando-lhe as mãos na face e deixando-o cego.
O terceiro acto, já num cenário
decadente a espelhar a perdição do Mundo e dos Homens, é uma Kundry já
envelhecida que em Montsalvat contempla a chegada de um tacteante Parsifal de
olhos vendados, cegos e em ferida.
Depois, Amfortas surge a levantar-se da cama
e percorre o palco de andarilho para ser mal tratado pelos escudeiros que lhe
exigem nova exibição do Graal. Este recusa e depois surge um corpo enfaixado.
Ao descobrir-lhe a face, surge o cadáver de Titurel, pai e maior herói de
Amfortas, o que aumenta a sua dor e desejo de morte. Parsifal surge depois, já
com a visão recuperada, de lança redentora empunhada. Cura Amfortas,
redimindo-o da dor excruciante que é o sentimento de culpa do pecado. Este dá
depois a mão a Kundry já liberta da eternidade terrena. O casal junta-se aos cavaleiros do Graal, enquanto Parsifal, o novo Rei, desaparece ao fundo.
Em suma, a encenação é muito eficaz, segue muito bem o libreto e, sem
deixar lugares a grandes interpretações, é permanentemente interessante em termos visuais.
Antonio Pappano e a Orquestra da ROH estiveram em óptimo plano. Pappano é um maestro
extraordinário e de enorme sensibilidade, tendo tido uma interpretação muito
luminosa, viva e com intensidade trágico-religiosa. Fez aquilo que Wagner
queria com esta música: dar relevo ao espaço, bloquear o tempo — “aqui tempo e
espaço são a mesma coisa”, diz Gurnemanz.
O Amfortas do barítono inglês Gerald
Finley foi de enorme qualidade. Foi extremamente credível em todos os
momentos, conseguindo passar muito bem a dor extrema da culpa do pecador, a dor
física da chaga, o desespero da morte que não chega como redenção: tudo através
do olhar desesperado pela dor excruciante que sentia. Foi humano, realista. Em
termos cénicos, apenas o último acto — a cena do andarilho — não foi tão bem
conseguida, mas por culpa do encenador, uma vez que pareceu mais desenvolto do
que no 1.º acto. Vocalmente esteve muito bem: sempre bem audível, com o seu
timbre que é bonito e um fraseado elegante.
Gurnemanz foi o baixo alemão René
Pape. Não acho que tenha sido brilhante. Não nos transmitiu a sabedoria do
cavaleiro do Graal mais antigo, conhecedor de todos os segredos e dotado de uma
visão de ideal do Mundo. O parkinsonismo do seu último acto para mostrar o peso
da passagem dos anos deixou algo a desejar. Vocalmente nunca o achei
espectacular, mas no terceiro acto ficou constantemente atrás da orquestra, o
que inicialmente me deu a sensação de que seria da transmissão, uma vez que,
nalguns agudos, soava bem e claramente por cima dela.
Simon O'Neill, neo-zelandês, foi o tenor escolhido para o papel do
tolo inocente Parsifal. Foi muito mais ao meu gosto do que o Parsifal de Jonas Kaufmann
na produção do MET. É mais heldentenor,
logo mais wagneriano (pelo menos para a minha concepção de tenor wagneriano). O
timbre é mais frio, mas tem uns agudos mais “pontudos”, pecando apenas por uma
relativa falta de corpo na voz. Interpretativamente esteve muito bem e foi um
bom actor: o terceiro acto como cego (ou quase) foi muito convincente.
A Kundry do soprano alemão Angela
Denoke foi sensacional. Teve um 2.º acto brilhante! Apenas duas falhas a
arrancar dois agudos: um deles quando diz que se riu de Jesus na cruz. Mas nada
que manche a sua interpretação vocal de qualidade superior: excelentes agudos,
muito equilibrada no registo grave, com um timbre belíssimo e sem nunca gritar
num papel tão exigente para a voz pela extensão e pela amplitude da tessitura.
Cenicamente foi muito credível, mostrando excelentes capacidades
interpretativas. A melhor da noite.
Klingsor foi o baixo americano Willard
White. Gostei bastante da sua prestação. Surge vestido de negro com um
casaco de cabedal comprido. A caracterização é fria e dura e ele passou essa
sensação de negritude, maldade e vingança para o público. Vocalmente esteve
muito bem, com um registo muito equilibrado entre agudos e graves, embora sem
espantar.
O baixo inglês Robert Lloyd
foi um Titurel eficaz com um grave muito profundo. Os dois cavaleiros e os
quatro escudeiros estiveram em bom plano, embora um dos escudeiros tivesse algumas
dificuldades de projecção. Já as seis dozenlas-flores apresentaram um óptimo nível com a
voz da primeira (Celine Byrne) a
merecer destaque pela beleza tímbrica e facilidade com que projectou a voz no
registo agudo.
Foi, portanto, uma excelente récita do festival sacro de Wagner. Uma
maneira de lhe prestar homenagem e de nos transportar para um mundo onde a
problematização dos valores humanos tem, ainda, um lugar entre os homens.
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(Review in English)
Richard
Wagner’s Parsifal (WWV 111) — his
last opera — was initially imagined in 1857 but only completed and premiered in
1882. Wagner did not consider it an opera, but a buhnenweihfestspiel, i.e. a sacred scenic festival. It was
partially based on the Wolfram von
Eschenbach’s Parzival.
The opera is about, in short, the decay of the World and
Men, loss of values, the pain in the form of guilt, the clash of desire against
the duty of duty, religion and paganism or the divine and the mundane, the
demand for redemption and higher. It is Wagner’s via sacra. The message (controversy
aside) is powerful. And the music... Ah! This is unparalleled in beauty, in
intensity, in drama, in suspension of time, in transport us to another reality,
in packing our imagination to the wonder. It is the genius released in constant
flight in search of the sublime. Unreachable?
You can read a extensive synopsis in English, for
example, on Wikipedia.
Royal Opera
House Live Cinema broadcast is excellent: even better than MET Live in HD. It has already recorded
interviews with the director, conductor and singers, presents a summary of the plot
and has interviews at the break with somebody related to the operatic field.
The image quality is not as good as MET’s, the same applies to sound, but it
may be due to hall conditions and not to the transmission per se. But there was no technical failures and have subtitles.
Stephen
Langridge directed the new production of Parsifal for ROH. The opening starts
with Kundry’s mouth projected in the stage in a kind of desperate cry of her eternal
pain. This image is sometimes reused by members of the choir, which have masks representing
Kundry’s cry. At the end of the opening, the curtain rises which stands out, as
a central element of the scenario, a cubic box with a pane of frosted glass. There
is Amfortas lying in a hospital bed. Moaning his pain as 6 squires dressed of
nurses keep and observe him. All the action revolves around this box that is
omnipresent in this production. There are are told — in the form of analepsis —
the various stories of the injured/sinner Amfortas, Parsifal's past history,
the Klingsor’s castration, etc. It is also there that Grail is. This is one of
the production innovations: the Grail of the first act is a child Amfortas
inflicts, in a purgative ritual, one incised wound on the left flank, the same
local where Klingsor had made his own wound with the sacred spear. The physical
and psychological pain at the same time and a tremendous and painful exposure
of an almost naked child. Around, lifted tree trunks create a contrasting
bucolic setting. The scenario is almost the same for the 2nd act, but on the
third, it arises most decadent: chairs are damaged, the trunks are fallen on
the ground.
The actor’s direction is somewhat amorphous in the 1st
act, but in the second there is a transformation. Thereafter it is more dynamic,
more active. The scene with the seductive women in Klingsor’s kingdom was well
achieved. In 2nd act’s second scene, Kundry, not seeing satisfied her
request, inflicts a curse on Parsifal, digging her hands in his face and
leaving him blind. The third act, already a decadent setting to mirror the
destruction and the World and Men, there is a Kundry, now aged, which
contemplates the arrival of a Parsifal groping blindfolded, blind and sore.
Then Amfortas appears to rise out of bed and runs to the stage of a wanderer,
being badly treated by squires that require him a new view of the Grail. He
refuses and then comes a bandaged body. Discovering his face, the corpse of
Titurel, Amfortas’ father and his greatest hero, Amfortas is crying of pain and
death wishes. Parsifal comes later, now with vision recovered, wielding a
redemptive sacred spear. Amfortas is healed, redeeming him from the
excruciating pain that is his guilt of sin. He then gives a hand to Kundry now
freed from earthly eternity. The couple joins the chorus, while Parsifal, the
new King, disappears on background.
In short, the staging is very effective, flows well
the libretto and is constantly visually interesting.
Antonio
Pappano and the ROH Orchestra have
been in great plan. Pappano is an extraordinary conductor of enormous sensitivity
and had a very bright, vivid and of tragic-religious intensity interpretation. He
did what Wagner wanted with this music: to emphasize the space, and to block time
block — "Here time and space are the same thing" as Gurnemanz said.
The English baritone Gerald Finley was an Amfortas of great quality. He was extremely
credible all the time, getting through very well the extreme pain of the
sinner's guilt, the physical pain of the wound, the despair of death that does
not come as redemption: all through a desperate look by the excruciating pain
he is feeling. He was human, realistic. In scenic terms, only the last act — the
scene of the wanderer — was not as well done, but the by director’s fault, as
it seemed more perky than in the 1st act. Vocally he did very well: always
audibly, with his beautiful timbre and elegant phrasing.
Gurnemanz was the German bass René Pape. I think he was not brilliant. He did not transmitted us
the oldest Grail Knight greatest wisdom, knower of all secrets and endowed with
a vision of the ideal to the World. His parkinsonism in the last act to show
the weight of the years was not convincing. Vocally he never was spectacular,
but in the third act he was constantly behind the orchestra, which initially
gave me the feeling that it would be some broadcast technical problem, due to
some treble that sounded good and clearly above it.
Simon
O'Neill, New Zealander, was the chosen tenor for the role of the innocent fool
Parsifal. He was much more to my liking than Jonas Kaufmann’s in the production
of MET. He is a bright heldentenor, so
more Wagnerian (at least for my conception of what is a wagnerian tenor). The
tone is cooler, but he has an acute more "pointy", sinning only by a
relative lack of body in the his voice. Interpretively, he did very well and
was a good actor: the third act as blind (or nearly so) was very convincing .
The German soprano Angela Denoke’s Kundry was phenomenal. She did a wonderful and
brilliant 2nd act! Only two failures to boot two acute: one when she says that
laughed at Jesus on the cross. But nothing that stain her superior vocal
performance: very balanced on bass registry, with a gorgeous acute, she never
screamed in such a demanding role for the voice by the role extention and range
of the tessiture. Scenically she was very credible, showing excellent
interpretive skills. The best of the evening.
Klingsor was the American bass Willard White. I really liked his performance. Black dress he comes
with a long leather coat. The characterization is cold and hard and he passed to
the audience that sense of blackness, malice and revenge. Vocally he was in
very good plan, very balanced between treble and bass, but not with a never forgettable
performance.
The English bass Robert
Lloyd was an effective Titurel with a very deep bass one. The two knights
and four squires were in good plan, although one of the squires had some
difficulties projecting his voice. The six flowers showed an optimum level with
the voice of the first one (Celine Byrne)
to be highlighted by tonal beauty and the ease of voice projection in the treble
registery.
It was therefore an excellent recitation of Wagner’s
sacred festival of Wagner. One way to pay him a tribute and to transport us to
a world where the questioning of human values have still has a place among men.