sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

La Bohème, Theatro Municipal de São Paulo

LA BOHÈME COM POLUIÇÃO SONORA E INSPIRAÇÃO EM BALÉ. CRÍTICA DE ALI HASSAN AYACHE NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.





Capa do programa distribuído no TMSP

O Theatro Municipal de São Paulo apresentou sua última ópera da temporada 2013, La Bohème é um dos títulos mais populares de Puccini, melodias sentimentais e uma história amorosa fazem a mulherada cair nas lágrimas e transmitem uma emoção a cada nota. Quem não se apaixona pelos personagens Mimi e Rodolfo. Que ouvidos não se sensibilizam com os temas dos amantes ou dos boêmios. Muitas óperas já fazem parte do passado, La Bohème tem lugar no futuro e está entre as óperas mais representadas e queridas do público.

Comecemos pelos solistas, Atalla Ayan foi o tenor escalado para a apresentação do dia 10 de Dezembro. Voz magistral, tá difícil encontrar adjetivos para descrevê-la. Sedutora e com agudos cristalinos, limpos e boa projeção. Interpretação cênica equilibrada, um Rodolfo apaixonado e sofrido que mostra sentimentos e emoções reais a cada cena. Alexia Voulgaridou tem um timbre maravilhoso, uma técnica impressionante e sustenta muito bem as notas. Sua voz é de soprano lírico-spinto, escura e densa e se mostra pesada para a personagem Mimi, principalmente no primeiro ato. Vence isso com uma interpretação cênica convincente.


 Cena de La Bohème, TMSP, foto Internet

A Musetta de Michaela Marcu mostrou uma voz sólida, consistente nos graves e interessante nos agudos. Interpretação segura vocal e cenicamente. Conseguiu ser marcante na sua principal ária, desfilou sensualidade e beleza. Os amigões do protagonista fizeram bonito: Simone Piazzolla ( Marcello), Matia Olivieri (Schaunard) e Felipe Bou (Coline) mostraram belas vozes e interpretações adequadas. No Brasil temos cantores aos montes que poderiam fazer esses personagens, não vejo porque trazer gente de fora.

A Orquestra Sinfônica Municipal regida por John Neschling mostrou boa musicalidade e apresentou muitas vezes desequilíbrios entre os naipes. Sonoridade pesada em diversas passagens e lírica em outros. Correta na cena final onde realçou o drama da cena.

A direção cênica, cenografia e desenho de luz de Arnaud Bernard (o homem faz tudo) segue a tendência minimalista. Enclausura a ação em um pequeno espaço no centro palco no primeiro e quarto ato. Seus cenários são realistas e se mostram adequados a obra. O diretor se "inspirou" no balé Cravos de 2005 de Pina Bausch ao colocar flores em todo o solo do palco no último ato, fotos não mentem. Sua luz corresponde e amplia a ação, conversa com ela de forma harmônica. Movimentação dos personagens moderna, no segundo ato utiliza todo o espaço cênica e consegue boas soluções. Figurinos de Carla Ricotti se adequam a obra e fazem o espectador viajar no tempo.


Cravos de Pina Bausch,foto Internet

O problema dele é a poluição sonora, em todas as cenas o nobre diretor faz questão de querer ser mais que Puccini. Coloca na partitura imaginada por ele sons desnecessários. Personagens fecham a porta com força, massas corais fazem uma barulheira com os pés totalmente desnecessária e sempre aqui ou acolá aparece um ruído que sai da cabeça do diretor e vai para o nada. Isso até um geográfo ouve caro John.

Antes que eu me esqueça: O programa distribúido ao público é de excelente qualidade com informações importantes como a tradução na íntegra do libreto, mas a capa, que feiúra é essa! Quando estreia ópera no Theatro Municipal de São Paulo alguém da Revista Concerto sempre aparece, por que será?

sábado, 21 de dezembro de 2013

PARSIFAL de RICHARD WAGNER – Royal Opera House Live Cinema, 18.12.2013

(Review in English below)


A ópera Parsifal (WWV 111) de Richard Wagner — a sua última ópera — foi inicialmente pensada em 1857, mas concluída e estreada apenas em 1882. Wagner não a considerava uma ópera, mas antes uma buhnenweihfestspiel, isto é, um festival cénico sagrado. Foi baseada parcialmente na obra Parzival de Wolfram von Eschenbach.

A ópera trata, em suma, da decadência do Mundo e dos Homens, da perda de valores, da dor em forma de culpa, do confronto do desejo contra o dever do dever (passe a redundância), da religião e do paganismo ou do divino e do mundano, da procura de redenção e do superior. É a via sacra de Wagner. A mensagem (controvérsias à parte) é poderosa. E a música... Ah! Essa é inigualável em beleza, em intensidade, em dramatismo, em suspensão do tempo, em transporte para outra realidade, em embalar o nosso imaginário. É o génio libertado em fuga constante na procura do sublime. Inalcançável?

Poderão ler uma extensa sinopse em língua portuguesa, bem como o libreto traduzido, neste link que afortunadamente encontrei nas minhas pesquisas e que tem outros links para óperas de Wagner. A explorar.

A transmissão da Royal Opera House Live Cinema é de excelente qualidade: até melhor do que a do MET Live in HD. Tem entrevistas já gravadas com o encenador, maestro e cantores, apresenta um resumo da história e tem entrevistas ao intervalo a uma pessoa ligada ao ramo operático. A qualidade de imagem não é tão boa quanto a do MET, o mesmo se aplicando ao som, mas isso poderá ter que ver mais com as condições da sala do que com a transmissão em si. Mas não houve nenhuma falha técnica e as legendas em português do Brasil estavam muito bem feitas e cuidadas.


A nova produção de Parsifal para a ROH esteve a cargo de Stephen Langridge. A abertura começa com uma imagem projectada no pano do palco da boca de Kundry numa espécie de grito desesperado pela sua dor eterna. Essa imagem recorre em máscaras que são por vezes usadas pelos elementos do coro e que representam o grito de Kundry.


No final da abertura, sobe o pano onde se destaca, como elemento central do cenário, uma caixa cúbica com um painel de vidro fosco. Lá dentro está Amfortas deitado numa cama de hospital. Geme a sua dor enquanto 6 escudeiros vestidos de enfermeiros o guardam e observam.


Toda a acção gira em torno desta caixa que é omnipresente nesta produção. É lá que são contadas — sob forma de analepse — as diversas histórias do ferimento/pecado de Amfortas, do passado de Parsifal, da castração de Klingsor, etc. Também é lá que está o Graal.


Essa é uma das inovações: o Graal do primeiro acto é uma criança a quem Amfortas inflige, num ritual purgativo, uma ferida incisa no flanco esquerdo, local onde Klingsor lhe tinha feito a sua ferida com a lança sagrada que roubara. São as dores física e psicológica ao mesmo tempo e uma exposição tremenda e dolorosa da criança quase despida. Em volta, troncos de árvore erguidos criam um ambiente bucólico contrastante. O cenário transforma-se pouco para o 2.º acto, mas no terceiro surge mais decadente: as cadeiras partidas, troncos caídos.
A direcção de actores é um pouco amorfa no 1.º acto, mas no segundo há uma transformação: a partir daí é mais dinâmica, mais activa.


A cena com as donzelas-flores do reino de Klingsor foi bem conseguida. Na 2.ª cena do 2.º acto, Kundry, ao não ver satisfeito o seu pedido, inflige um castigo a Parsifal, cravando-lhe as mãos na face e deixando-o cego.



O terceiro acto, já num cenário decadente a espelhar a perdição do Mundo e dos Homens, é uma Kundry já envelhecida que em Montsalvat contempla a chegada de um tacteante Parsifal de olhos vendados, cegos e em ferida. 


Depois, Amfortas surge a levantar-se da cama e percorre o palco de andarilho para ser mal tratado pelos escudeiros que lhe exigem nova exibição do Graal. Este recusa e depois surge um corpo enfaixado. Ao descobrir-lhe a face, surge o cadáver de Titurel, pai e maior herói de Amfortas, o que aumenta a sua dor e desejo de morte. Parsifal surge depois, já com a visão recuperada, de lança redentora empunhada. Cura Amfortas, redimindo-o da dor excruciante que é o sentimento de culpa do pecado. Este dá depois a mão a Kundry já liberta da eternidade terrena. O casal junta-se aos cavaleiros do Graal, enquanto Parsifal, o novo Rei, desaparece ao fundo.


Em suma, a encenação é muito eficaz, segue muito bem o libreto e, sem deixar lugares a grandes interpretações, é permanentemente interessante em termos visuais.


Antonio Pappano e a Orquestra da ROH estiveram em óptimo plano. Pappano é um maestro extraordinário e de enorme sensibilidade, tendo tido uma interpretação muito luminosa, viva e com intensidade trágico-religiosa. Fez aquilo que Wagner queria com esta música: dar relevo ao espaço, bloquear o tempo — “aqui tempo e espaço são a mesma coisa”, diz Gurnemanz.


O Amfortas do barítono inglês Gerald Finley foi de enorme qualidade. Foi extremamente credível em todos os momentos, conseguindo passar muito bem a dor extrema da culpa do pecador, a dor física da chaga, o desespero da morte que não chega como redenção: tudo através do olhar desesperado pela dor excruciante que sentia. Foi humano, realista. Em termos cénicos, apenas o último acto — a cena do andarilho — não foi tão bem conseguida, mas por culpa do encenador, uma vez que pareceu mais desenvolto do que no 1.º acto. Vocalmente esteve muito bem: sempre bem audível, com o seu timbre que é bonito e um fraseado elegante.


Gurnemanz foi o baixo alemão René Pape. Não acho que tenha sido brilhante. Não nos transmitiu a sabedoria do cavaleiro do Graal mais antigo, conhecedor de todos os segredos e dotado de uma visão de ideal do Mundo. O parkinsonismo do seu último acto para mostrar o peso da passagem dos anos deixou algo a desejar. Vocalmente nunca o achei espectacular, mas no terceiro acto ficou constantemente atrás da orquestra, o que inicialmente me deu a sensação de que seria da transmissão, uma vez que, nalguns agudos, soava bem e claramente por cima dela.


Simon O'Neill, neo-zelandês, foi o tenor escolhido para o papel do tolo inocente Parsifal. Foi muito mais ao meu gosto do que o Parsifal de Jonas Kaufmann na produção do MET. É mais heldentenor, logo mais wagneriano (pelo menos para a minha concepção de tenor wagneriano). O timbre é mais frio, mas tem uns agudos mais “pontudos”, pecando apenas por uma relativa falta de corpo na voz. Interpretativamente esteve muito bem e foi um bom actor: o terceiro acto como cego (ou quase) foi muito convincente.


A Kundry do soprano alemão Angela Denoke foi sensacional. Teve um 2.º acto brilhante! Apenas duas falhas a arrancar dois agudos: um deles quando diz que se riu de Jesus na cruz. Mas nada que manche a sua interpretação vocal de qualidade superior: excelentes agudos, muito equilibrada no registo grave, com um timbre belíssimo e sem nunca gritar num papel tão exigente para a voz pela extensão e pela amplitude da tessitura. Cenicamente foi muito credível, mostrando excelentes capacidades interpretativas. A melhor da noite.


Klingsor foi o baixo americano Willard White. Gostei bastante da sua prestação. Surge vestido de negro com um casaco de cabedal comprido. A caracterização é fria e dura e ele passou essa sensação de negritude, maldade e vingança para o público. Vocalmente esteve muito bem, com um registo muito equilibrado entre agudos e graves, embora sem espantar.


O baixo inglês Robert Lloyd foi um Titurel eficaz com um grave muito profundo. Os dois cavaleiros e os quatro escudeiros estiveram em bom plano, embora um dos escudeiros tivesse algumas dificuldades de projecção. Já as seis dozenlas-flores apresentaram um óptimo nível com a voz da primeira (Celine Byrne) a merecer destaque pela beleza tímbrica e facilidade com que projectou a voz no registo agudo.


Foi, portanto, uma excelente récita do festival sacro de Wagner. Uma maneira de lhe prestar homenagem e de nos transportar para um mundo onde a problematização dos valores humanos tem, ainda, um lugar entre os homens.

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(Review in English)

Richard Wagner’s Parsifal (WWV 111) — his last opera — was initially imagined in 1857 but only completed and premiered in 1882. Wagner did not consider it an opera, but a buhnenweihfestspiel, i.e. a sacred scenic festival. It was partially based on the Wolfram von Eschenbach’s Parzival.

The opera is about, in short, the decay of the World and Men, loss of values, the pain in the form of guilt, the clash of desire against the duty of duty, religion and paganism or the divine and the mundane, the demand for redemption and higher. It is Wagner’s via sacra. The message (controversy aside) is powerful. And the music... Ah! This is unparalleled in beauty, in intensity, in drama, in suspension of time, in transport us to another reality, in packing our imagination to the wonder. It is the genius released in constant flight in search of the sublime. Unreachable?

You can read a extensive synopsis in English, for example, on Wikipedia.

Royal Opera House Live Cinema broadcast is excellent: even better than MET Live in HD. It has already recorded interviews with the director, conductor and singers, presents a summary of the plot and has interviews at the break with somebody related to the operatic field. The image quality is not as good as MET’s, the same applies to sound, but it may be due to hall conditions and not to the transmission per se. But there was no technical failures and have subtitles.

Stephen Langridge directed the new production of Parsifal for ROH. The opening starts with Kundry’s mouth projected in the stage in a kind of desperate cry of her eternal pain. This image is sometimes reused by members of the choir, which have masks representing Kundry’s cry. At the end of the opening, the curtain rises which stands out, as a central element of the scenario, a cubic box with a pane of frosted glass. There is Amfortas lying in a hospital bed. Moaning his pain as 6 squires dressed of nurses keep and observe him. All the action revolves around this box that is omnipresent in this production. There are are told — in the form of analepsis — the various stories of the injured/sinner Amfortas, Parsifal's past history, the Klingsor’s castration, etc. It is also there that Grail is. This is one of the production innovations: the Grail of the first act is a child Amfortas inflicts, in a purgative ritual, one incised wound on the left flank, the same local where Klingsor had made his own wound with the sacred spear. The physical and psychological pain at the same time and a tremendous and painful exposure of an almost naked child. Around, lifted tree trunks create a contrasting bucolic setting. The scenario is almost the same for the 2nd act, but on the third, it arises most decadent: chairs are damaged, the trunks are fallen on the ground.
The actor’s direction is somewhat amorphous in the 1st act, but in the second there is a transformation. Thereafter it is more dynamic, more active. The scene with the seductive women in Klingsor’s kingdom was well achieved. In 2nd act’s   second scene, Kundry, not seeing satisfied her request, inflicts a curse on Parsifal, digging her hands in his face and leaving him blind. The third act, already a decadent setting to mirror the destruction and the World and Men, there is a Kundry, now aged, which contemplates the arrival of a Parsifal groping blindfolded, blind and sore. Then Amfortas appears to rise out of bed and runs to the stage of a wanderer, being badly treated by squires that require him a new view of the Grail. He refuses and then comes a bandaged body. Discovering his face, the corpse of Titurel, Amfortas’ father and his greatest hero, Amfortas is crying of pain and death wishes. Parsifal comes later, now with vision recovered, wielding a redemptive sacred spear. Amfortas is healed, redeeming him from the excruciating pain that is his guilt of sin. He then gives a hand to Kundry now freed from earthly eternity. The couple joins the chorus, while Parsifal, the new King, disappears on background.
In short, the staging is very effective, flows well the libretto and is constantly visually interesting.

Antonio Pappano and the ROH Orchestra have been in great plan. Pappano is an extraordinary conductor of enormous sensitivity and had a very bright, vivid and of tragic-religious intensity interpretation. He did what Wagner wanted with this music: to emphasize the space, and to block time block — "Here time and space are the same thing" as Gurnemanz said.

The English baritone Gerald Finley was an Amfortas of great quality. He was extremely credible all the time, getting through very well the extreme pain of the sinner's guilt, the physical pain of the wound, the despair of death that does not come as redemption: all through a desperate look by the excruciating pain he is feeling. He was human, realistic. In scenic terms, only the last act — the scene of the wanderer — was not as well done, but the by director’s fault, as it seemed more perky than in the 1st act. Vocally he did very well: always audibly, with his beautiful timbre and elegant phrasing.

Gurnemanz was the German bass René Pape. I think he was not brilliant. He did not transmitted us the oldest Grail Knight greatest wisdom, knower of all secrets and endowed with a vision of the ideal to the World. His parkinsonism in the last act to show the weight of the years was not convincing. Vocally he never was spectacular, but in the third act he was constantly behind the orchestra, which initially gave me the feeling that it would be some broadcast technical problem, due to some treble that sounded good and clearly above it.


Simon O'Neill, New Zealander, was the chosen tenor for the role of the innocent fool Parsifal. He was much more to my liking than Jonas Kaufmann’s in the production of MET. He is a bright heldentenor, so more Wagnerian (at least for my conception of what is a wagnerian tenor). The tone is cooler, but he has an acute more "pointy", sinning only by a relative lack of body in the his voice. Interpretively, he did very well and was a good actor: the third act as blind (or nearly so) was very convincing .

The German soprano Angela Denoke’s Kundry was phenomenal. She did a wonderful and brilliant 2nd act! Only two failures to boot two acute: one when she says that laughed at Jesus on the cross. But nothing that stain her superior vocal performance: very balanced on bass registry, with a gorgeous acute, she never screamed in such a demanding role for the voice by the role extention and range of the tessiture. Scenically she was very credible, showing excellent interpretive skills. The best of the evening.

Klingsor was the American bass Willard White. I really liked his performance. Black dress he comes with a long leather coat. The characterization is cold and hard and he passed to the audience that sense of blackness, malice and revenge. Vocally he was in very good plan, very balanced between treble and bass, but not with a never forgettable performance.

The English bass Robert Lloyd was an effective Titurel with a very deep bass one. The two knights and four squires were in good plan, although one of the squires had some difficulties projecting his voice. The six flowers showed an optimum level with the voice of the first one (Celine Byrne) to be highlighted by tonal beauty and the ease of voice projection in the treble registery.


It was therefore an excellent recitation of Wagner’s sacred festival of Wagner. One way to pay him a tribute and to transport us to a world where the questioning of human values have still has a place among men.

domingo, 15 de dezembro de 2013

FALSTAFF de G. Verdi — Met Live in HD, Culturgest, 15.12.2013

(Review in English below)


Giuseppe Verdi tinha 80 anos quando estreou a sua última ópera — Falstaff. Cidadão italiano distinto, dado o seu percurso artístico e político, a estreia de Falstaff em 1893 no Scala gerou uma enorme expectativa entre os críticos e amantes da ópera, não só por ser Verdi, mas pela sua ousadia. Seria Verdi capaz de escrever uma ópera cómica? Em 1853, Un giorgno de regno — a única ópera cómica que Verdi escreveu pouco depois da morte de dois filhos e da esposa — foi um massivo fracasso. Desde aí, Verdi dedicou-se à transposição musical do sentir e ser-se humano e da sua tragédia, transformando-as em arte tangível, vivencial, credível e a puxar ao sublime. Oiçamos, como exemplos acabados dessa arte, Otello, Don Carlo ou La Traviata.


Mas a resposta à pergunta que colocámos é: SIM! E fê-lo com o contributo de Arrigo Boito, libretista com quem já colaborara em Otello e em Un Ballo in Maschera. Este baseou-se na comédia As Alegres Comadres de Windsor de William Shakespeare.

A recepção entusiástica de Falstaff desde a sua estreia espelha o génio levado ao extremo de Verdi. Falstaff é uma simbiose: a perfeita ligação da palavra com a música. Se há quem considere Falstaff a mais genial ópera de Verdi, outros há também quem não a apreciam de tal forma. O que é legítimo, pois nem tudo o que é genial nos toca a alma. Mas quem oiça esta ópera, mesmo que num dia de humor mais sombrio, não deixará de esboçar um sorriso. Para isso, basta existir. É que Falstaff é um pouco do que há em todos nós de desejo, da mera busca do sensório e do prazer, que deixa para trás a honra (“Può l'onore riempirvi la pancia? 
No./ (…)/ Che é dunque? Una parola. 
Che c'é in questa parola? C'é dell'aria che vola”) para sobreviver e poder dizer, por entre sorrisos, que “tutto nel mondo è burla. Ma ride ben chi ride la risata final”.
A história da ópera é conhecida dos amantes da ópera, ou de Shakespeare, pelo que vos deixamos o link para o programa de sala desta transmissão, e outro para um excelente texto de contextualização de FranciscoSasseti.


A produção de Robert Carsen é magnífica. Coloca a acção nos anos 50. O pano abre com o “imenso Falstaff” numa condizente imensa cama. A segunda cena foi inteligentemente transportada para um luxuoso restaurante onde, em mesas distintas, as comadres engendram um plano para tramar Falstaff e Ford procura vingança.


A terceira cena é alojada num distinto bar britânico com alusões à caça e nem o perfume das luvas é esquecido depois de Falstaff ir Vado a farmi bello (o pai de Shakespeare era um fabricante de luvas).

A quarta cena, passada numa cozinha, é hilariante e termina com Ford encharcado, tal foi a quantidade de água do Tamisa que se elevou com a queda desse meteorito que era o cavaleiro inglês. A quinta cena, às portas da hospedaria, é um estábulo onde um imundo Falstaff canta para um cavalo que riempia la pancia.

À última cena, nos jardins de Windsor, não faltam enormes cornos ou a mesa comprida (elemento recorrente em Carsen) onde Falstaff desfila as suas desculpas e pede que lhe salvem o abdómen (“Ahi! Ahi! mi pento!” e “Ma salvagli l'addomine”). O guarda roupa, os cenários e a direcção de actores é estupenda. Esta encenação coloca a música num patamar ainda mais elevado e fica na memória como geradora de excelentes momentos de comicidade. Uma boa encenação é... é isto!


Este foi também o regresso à internacionalidade do carismático maestro James Levine. Admirador profundo desta ópera, a sua alegria foi bem notória no brilhantismo com que fez soar a “sua” orquestra. Buon auguri, Maestro!


Sir John Falstaff “é” o barítono italiano Ambrogio Maestri. Foi cénica e interpretativamente muito convincente, tendo cumprido as exigências cómicas da sua personagem até pela sua figura física que é perfeitamente compatível com a descrição de Falstaff: é enorme e, se as Alegres Comadres conseguissem aprovar o imposto sobre a gordura de que falam na ópera para castigar Falstaff, não temos dúvidas de que não lhe conseguiria fugir. Tem uma voz com um timbre lindíssimo, fresco e jovial, onde se desenvolvem uns agudos estratosféricos e brilhantes de uma clareza e dicção raras. O seu “L’Onore” foi perfeito e a sua entrevista a Renée Flemming no intervalo foi hilariante!

Sir Ford foi o barítono italiano Franco Vassallo. Tem uma voz com um timbre bonito e adequado ao papel, sem que todavia seja transcendente. Ofereceu-nos uma boa interpretação do “È sogno, o realtà?” e foi cenicamente convincente.

O tenor italiano Paolo Fanale foi Fenton. O papel é relativamente pequeno, mas muito lírico. O seu timbre é bonito e tem uma excelente presença em palco. Fez um bom par amoroso com Nannetta e vocalmente esteve em bom nível no seu arioso “Dal labbro il canto estasiato vola”. O meu único problema é que acho que Verdi “profetizou” a existência de Juan Diego Florez com este papel...

O tenor italiano Carlo Bosi foi Dr. Caius e esteve bem. O tenor americano Keith Jameson foi Bardolfo, enquanto que o baixo americano Christian Van Horn foi foi Pistola. Gostámos igualmente de ambos, tendo os dois funcionado muito bem cenicamente sendo as suas vozes de qualidade.


Alice Ford foi encarnada pelo soprano americano Angela Meade. Gostámos muito da sua prestação. Tem um papel central na ópera e conseguiu sê-lo efetivamente, quer ao nível da sua capacidade vocal, quer no campo da interpretação cénica.

O soprano cubano-americano Lisette Oropesa foi Nanneta. Tem um timbre muito bonito e agradável e esteve bem cenicamente. Projetou muito bem a voz, sempre com agudos muito bem sustentados e melódicos. A sua “ária” “Sul fil d’un soffio etesio” foi óptima. Uma voz a estar atento.

Stephanie Blythe, meio-soprano americano, foi Mrs. Quickly. Com o seu timbre grave, escuro e cheio, foi uma Mrs. Quickly de enorme qualidade com um carácter muito cómico. Contracenou muito bem com Falstaff quando surge na taberna para lhe dar conta do “interesse” de Alice e de Meg Page no amor que Falstaff lhes oferecera. “Reverenza!”...

Meg Page foi interpretada pelo meio-soprano americano Jennifer Johnson. O papel é praticamente irrelevante do ponto de vista vocal. Entre o quarteto de vozes feminino não tem qualquer destaque individual, ao contrário das outras três personagens. Ainda assim, esteve bem, conquanto não possamos fazer uma apreciação muito concreta da sua voz.


Em suma, foi uma récita de elevadíssima qualidade, o mais divertido momento do fim-de-semana e a melhor maneira de celebrar o fim do ano do bicentenário do nascimento desse mestre que foi e é Giuseppe Verdi.

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(Review in English)

Giuseppe Verdi was 80 years old when he debuted his last opera — Falstaff. Distinguished Italian citizen, given his artistic and political life, the premiere of Falstaff at La Scala in 1893 generated a huge expectation among critics and opera lovers, not only for being Verdi, but also by his audaciousness. Would be Verdi able to write a comic opera? In 1853, Un giorgno di regno — his only comic opera he wrote shortly after the death of two children and wife — was a massive failure. Since then, Verdi devoted himself to musical transposition of what is feeling and being human and its tragedy, turning them into tangible, experiential, credible and sublime art. Let us listen, as finished examples of this art, Otello, Don Carlo and La Traviata.

But the answer to the question we posed is: YES! And he did it with the help of Arrigo Boito, the librettist with whom he collaborated in Otello and Un Ballo in Maschera. This was based on the comedy The Merry Wives of Windsor by William Shakespeare.

The enthusiastic reception of Falstaff since its debut reflects Verdi’s genius taken to the extreme. Falstaff is a symbiosis: the perfect connection of the word with music. If some consider Falstaff the most brilliant of Verdi’s operas, there are also others who do not appreciate it as such. This is legitimate because not everything that is brilliant touches our soul. But who hears this opera, even in a more somber mood day, will not fail to smile. Simply because we exist. Falstaff is a bit of what are in ourselves of desire, of the mere pursuit of sensory and pleasure, of what of us leaves behind the honor (“Può l'onore riempirvi la pancia? 
No./ (…)/ Che é dunque? Una parola. 
Che c'é in questa parola? C'é dell'aria che vola”) to survive and be able to say, amid smiles, that “tutto nel mondo è burla. Ma ride ben chi ride la risata final”.

The history of this opera is well known to lovers of opera or Shakespeare, so we leave you the link to the program of this broadcast, and another for an excellent contextualization text by Francisco Sasseti.

The production of Robert Carsen is magnificent. He placed the action in the 50s. The curtain opens with "immense Falstaff" befitting a huge bed. The second scene was cleverly transported to a luxurious restaurant where, in separate tables, the merry wifes engender a plan to plot Falstaff and Ford seeks revenge. The third scene is housed in a distinctive British pub with allusions to hunting and even the scent of the gloves isn’t forgotten after Falstaff go "Vado a farmi bello" (Shakespeare's father was a glove maker). The fourth scene, past a kitchen, is hilarious and ends with a soggy Ford, such was the amount of water of the Thames, which came with the fall of this meteorite that was the English knight. The fifth scene, at the doors of the inn, a filthy Falstaff sings to a horse that is “riempia la pancia”. In the last scene, in the gardens of Windsor, that are not lacking horns or a huge long table (recurring element in Carsen) where Falstaff parades his apologies and asks to save his abdomen ("Ahi ! Ahi ! Mi pento!" and "Ma salvagli l' addomine"). The wardrobe, the sets and direction of actors is stupendous. This production puts music to an even higher level and stays in memory as generating moments of great comedy. A good production is... is this!

This was also the return to the internationality of the charismatic conductor James Levine. Great admirer of this opera, his joy was evident with the brilliance "his" orchestra sounded. Buon auguri, Maestro!

Sir John Falstaff "is" Italian baritone Ambrogio Maestri. He was very scenic and interpretively compelling, having fulfilled the requirements of his comic character even because of his physical figure which is perfectly compatible with the description of Falstaff: he is huge, and if merry wifes could approve the tax on fat they are talking about in the opera to punish Falstaff, we have no doubt that he could not escape. He has a voice with a beautiful, fresh and youthful timbre, where he develops a stratospheric and bright treble with rare clarity and diction. His "L' Onore" was perfect and his interview with Renée Fleming was hilariouss!

Sir Ford was the Italian baritone Franco Vassallo. He has a voice with a beautiful and timbre suited to the role, without however transcendent. Offered us a good interpretation of "È sogno, o realtà?" and was theatrically convincing.

The Italian tenor Paolo Fanale was Fenton. The role is relatively small but very lyrical. His timbre is beautiful and he has a great stage presence. Making a good loving couple with Nannetta, he was vocally in good level in his arioso "Dal labbro il canto estasiato vola". My only problem is that I think Verdi "prophesied " the existence of Juan Diego Florez with this character...

The Italian tenor Carlo Bosi was Dr. Caius and he did well. The American tenor Keith Jameson was Bardolfo, while American bass Christian Van Horn was Pistola. We liked both equally, and the two worked very well theatrically and had quality voices.

Alice Ford was incarnate by the American soprano Angela Meade. We very much enjoyed her performance. She plays a central role in this opera and was so effectively, both in terms of her vocal ability, whether in the field of scenic interpretation.

The Cuban-American soprano Lisette Oropesa was Nanneta. She has a very beautiful and pleasant timbre and was well theatrically. Designed to fine voice, always very well supported and melodic treble. Her "aria" f” Sul fil d’un soffio etesio”. A voice to be aware.

Stephanie Blythe, American mezzo-soprano, was Mrs. Quickly. With her serious, dark and full timbre, Mrs. Quickly was one of great quality with a very comedic character. Opposite nicely with Falstaff when she arrives to the tavern to give account of the "interest" of Alice and Meg Page in Falstaff love. "Reverenza!"...

Meg Page was interpreted by American mezzo-soprano Jennifer Johnson. The role is practically irrelevant from the point of view voice. Among the quartet of female voices she does not have any prominent individual moment, unlike the other three characters. Still, she was good, although we cannot make a concrete assessment of her voice.


In short, it was a performance of very high quality, the most fun time of the weekend and the best way to celebrate the end of the year of the bicentenary of the birth of this master who was and is Giuseppe Verdi.