(review in English below)
A última ópera de Verdi foi composta em grande secretismo: Verdi tinha receio de que as agruras da sua idade avançada não lhe permitissem terminar o projecto. Foi congeminada juntamente com Arrigo Boito, o seu libretista de Otello, homem que desafiara Verdi para um último esforço e que tão bem lhe escreveu um texto em torno da personagem shakespeariana Sir John Falstaff, presente nas As Alegres Comadres de Windsor e nas partes I e II de Henrique IV.
A história gira em torno do enorme Falstaff, aristocrata decaído, muito obeso e que vivia dos prazeres da comida e das mulheres. Ele tenta seduzir as damas finas de Windsor e fia-se no seu charme e sebenta posição. Estas, muito alegres e sabidas, aproveitam para o ridicularizar.
A ópera, nem sempre devidamente apreciada por ser um Verdi diferente daquele a que habituara o seu público, é de uma enorme genialidade musical, impactando pelo seu todo. Lá está: o todo não é igual à soma das partes.
Foto: Matthias Baus
A encenação do realizador de cinema italiano Mario Martone é muito interessante. Passa-se num bairro degradado cheio de graffitis onde Falstaff está sentado nuns bancos num pátio à entrada de um estabelecimento de divertimento noturno — «Panorama Bar» — onde umas profissionais do sexo se exibem à janela. Ao fundo, um portão ao meio do pátio parece revelar uma rua. É neste ambiente escuro e sombrio, que decorre toda a primeira cena. Falstaff está vestido de calças de ganga e t-shirt preta e, a bem da verdade, falta-lhe a gordura imensa. Pistola e Bardolfo vestem-se de forma andrajosa e têm bastante mau aspecto. Aqui há, ao fundo, uns figurantes que com latas de tinta de spray desenham as frases «Welcome refugees» e «No War» em panos brancos colocados no chão: duvido que da plateia fossem legíveis e nunca chegam a ser exibidos, pelo que não se compreende o propósito.
Foto: Matthias Baus
A segunda cena passa-se num elegante jardim com piscina e casa de apoio. Aí, as alegres comadres, vestidas de modo mais requintado, ou apenas de fato de banho ou biquíni e enroladas num robe, congeminam toda a trama contra Falstaff. Fenton namora Nannetta que se exibe em biquíni e o provoca, atirando-o para a piscina.
Na terceira cena, voltamos ao primeiro cenário. Mrs. Quickly aparece de vermelho e de moto retro. Ao despedir-se, sai de moto, ouvindo-se o roncar do motor da moto que é verdadeira.
A quarta cena, retoma o segundo cenário. E os pormenores estão lá todos. Falstaff, vestido de camisa rosa brilhante e de motivos florais e umas botas de cowboy, tenta seduzir Alice, chegando a mostrar-lhe uma tatuagem de muito mau gosto estampado no peito largo que descobrea. Acaba por ser atirado para trás do muro do jardim, ouvindo-se um enorme splash.
Foto: Matthias Baus
A quinta cena decorre no primeiro cenário, com um Falstaff muito andrajoso e a pedir vinho a um pouco amigável dono do bar. Logo de seguida, passa-se para a última cena: parece um edifício abandonado com escadas nas laterais e um torre no centro com varandas. Muitos figurantes surgem, naquele que é um pormenor distrator e pouco contextualizável no todo da encenação, vestidos de negro e com máscara, simulando atos sexuais, enquanto as personagens expõem ao ridículo Falstaff.
A encenação modernizada foi um dos pontos fortes da récita: é muito dinâmica, facilita a comédia, acompanha muito bem a música e a acção, e é ainda visualmente interessante.
A Staatskapellle Berlin foi muito bem dirigida por Daniel Barenboim.
Os solistas apresentaram uma qualidade global muito homogénea.
Michael Volle foi um Sir John Falstaff imponente na desenvoltura cénica e pela enorme voz que tem. Faltou-lhe a interpretação burlesca que a personagem necessita para ser verdadeiramente cómica, ou o fraseado típico italiano que teriam dado outro colorido a uma, ainda assim, excelente prestação. Destaco a interpretação de Mondo ladro, mondo rubaldo do terceiro acto.
Ford foi o barítono Alfredo Daza que, tendo uma voz bonita e sempre audível, compôs uma personagem credível e cantou bem o seu È sogno o realtà?
Fenton foi o tenor Francesco Demuro que tem uma voz bonita, mas a que me pareceu faltarem os agudos fáceis que se pedem no seu curto papel. Cenicamente foi muito convincente.
O Dr Cajus de Jurgen Sacher, Bardolfo de Stephan Rugamer e Pistola de Jan Martiník estiveram em bom plano, destacando a prestação vocal de Martiník.
Alice Ford foi Barbara Fritolli que compôs uma personagem credível e cenicamente irrepreensível. Vocalmente apresentou-se em bom nível, mas já não tem os agudos cristalinos de outros tempos.
Nadine Sierra como Nannetta foi a melhor das senhoras. A voz é muito bonita e tem os agudos cristalinos que tornam os seus Anzi rinnova come fa la luna perfeitos e elegantes. A sua jovialidade em palco e bonita figura ajudaram a torná-la uma Nannetta perfeita.
Daniella Barcellona, com a sua voz cheia e escura, foi uma excelente Mrs. Quickly, tendo-lhe faltado alguma comicidade para catapultar a sua interpretação para a excelência.
A Meg Page de Katharina Kammerloher esteve em bom nível no seu curto papel.
Assim, globalmente assistimos a uma excelente récita, com destaque para uma encenação de muita qualidade e com nota muito positiva para um conjunto de cantores de qualidade elevada a quem ficou apenas a faltar um pouco mais de capacidade para a comédia.
—————-
(Review in English)
Verdi's last opera was composed in great secrecy: Verdi was afraid that the hardships of his old age would not allow him to finish the project. He worked with Arrigo Boito, his librettist of Otello, a man who had challenged Verdi for one last effort, and who so well wrote a text to him about the Shakespearean character Sir John Falstaff, present in the Merry Wives of Windsor and parts I and II of Henry IV.
The story revolves around the huge Falstaff, a fallen aristocrat, very obese and living off the pleasures of food and women. He tries to seduce high-rank ladies of Windsor being confident that with his beauty and social position will grant him success. The joyful and wise ladies will expose him to ridiculousness.
The opera, not always properly appreciated for being not a typical Verdi opera, is of a great musical genius, impacting for his beauty and when heard as a whole. There it is: the whole is not equal to the sum of the parts.
The staging of the Italian film director Mario Martone is very interesting. The action is set in a dilapidated neighbourhood full of graffitied walls where Falstaff sits on benches in a courtyard at the entrance to a nightlife establishment - Panorama Bar - where sex workers hang out at the window. In the background, a gate in the middle of the courtyard seems to reveal a street. It is in this dark and gloomy environment that the entire first scene takes place. Falstaff is dressed in jeans and black t-shirt and, to be honest, he lacks immense fat. Pistol and Bardolfo dress in a ragged form and look quite bad guys. Here, in the background, there are figurines with cans of spray paint drawing the phrases "Welcome refugees" and "No War" in white cloths placed on the floor: I doubt that the audience would be able to read the statements or even see them, so that I think that it is not understandable.
The second scene takes place in an elegant garden with a swimming pool and house. There, the merry wives, dressed in a fashionable way, or just in bikini and wrapped in a robe, plot against Falstaff. Fenton dates Nannetta who shows up in a bikini and provokes him by throwing him into the pool.
In the third scene, we return to the first scenario. Mrs. Quickly appears in red and retro motorcycle. When they say goodbye, she leaves in her motorcycle, and we listened to the snoring of the real motorcycle she is in.
The fourth scene, resumes the second scenario. And the details are all there. Falstaff, dressed in bright pink shirt with floral motifs and cowboy boots, tries to seduce Alice, even showing him a bad taste tattoo stamped on the wide chest he reveals. At the end, he is thrown behind the garden wall as we listen to a huge splash.
The fifth scene takes place on the first scenario, with a very tattered Falstaff who is asking for wine to a somewhat not so friendly bar owner. Soon afterwards, we are transported to the last scene: it looks like an abandoned building with stairs on the sides and a tower with balconies in the centre. Many characters appear, in a distracting detail of the staging, dressed in black and masked, simulating sexual acts, while the characters expose Falstaff to ridiculous.
The modernized staging was one of the highlights of the recital: it is very dynamic, easily following the music and the action. And it is visually interesting.
The Staatskapellle Berlin was very well directed by Daniel Barenboim.
The soloists singers presented a very homogeneous overall quality.
Michael Volle was an imposing Sir John Falstaff, either scenically an vocally. He failed only on the burlesque aspect of his interpretation to be truly comical, and the typical Italian phrasing. If he managed it better he would have given us a more rich and coloured performance. I emphasize the interpretation of Mondo ladro, mondo rubaldo of the third act.
Ford was the baritone Alfredo Daza who, having a beautiful and always audible voice, composed a credible character and sang well his È sogno o realtà?
Fenton was the tenor Francesco Demuro who has a beautiful voice, but which seemed to lack the easy treble that are asked in his short paper. Cenically he was very convincing.
Jurgen Sacher’s Dr Cajus, Stephan Rugamer’s Bardolfo and Jan Martiník’s Pistol were all in good plan, highlighting the vocal performance of Martiník.
Alice Ford was Barbara Fritolli who composed a credible and radically irreproachable character. Vocally she has presented herself in good level, but she no longer has the crystalline highs of other times.
Nadine Sierra as Nannetta was the best of the ladies. Her voice is very beautiful and has the crystalline trebles that make hers Anzi rinnova come fa la luna perfect and elegant. Her playfulness on stage and beautiful figure helped make her a perfect Nannetta.
Daniella Barcellona, in her full, dark voice, was an excellent Mrs. Quickly, having lacked some comedy abilities to catapult her interpretation into excellence.
Despite her short role, Katharina Kammerloher performed well as Meg Page.
Thus, globally we have seen an excellent performance, with emphasis on a very high quality Martone’s staging and with a very positive note for a group of singers of high quality who just lacked a little more capacity to do comedy.
Já percebi que foi ver o Parsifal no dia 2. Se calhar passámos um pelo outro mas não nos conhecemos! Se foi o caso, fico à espera da sua crítica àquele que foi, para mim, um dos espectáculos mais marcantes da minha vida.
ResponderEliminarCaro Plácido: sim, é bem provável que nos tenhamos cruzado. O Parsifal não foi para mim tão fantástico, mas gostei. O texto - entretanto publicado - não é meu, mas tenho lá o meu comentário. Saudações
Eliminar