domingo, 16 de outubro de 2016

CARMEN, Teatro Nacional de São Carlos, Lisboa, 12/10/2016


CARMEN      (Georges Bizet)

Ópera em três Actos  (1875)

Libreto de Ludovic Halévy e Henri Meilhac, baseado na novela homónima de Prosper Mérimée.

Direcção musical: Rory Macdonald
Encenação:  Calixto Bieito

Responsável pela reposição: Joan Anton Rechi
Cenografía: Alfons Flores
Luzes: Bruno Poet
Roupas: Mercè Paloma

Carmen: Justina Gringyte
Micaela: Sarah-Jane Brandon
Don José: Lukhanyo Moyake
Frasquita: Joana Seara
Mercédès: Carla Simões
Escamillo: Nicholas Brownlee
Le Dancaïre: Tiago Matos
El Remendado: Carlos Guilherme
Zúñiga: Keel Watson
Morales: Diogo Oliveira

Orquestra Sinfónica Portuguesa
Coro do Teatro Nacional de São Carlos   Dir: Giovanni Andreoli
Coro Juvenil de Lisboa   Dir: Nuno Margarido Lopes

Produção: Versão inicial Festival Castell de Peralada (1999). Liceu (Barcelona 2010), English National Opera (Londres 2012), Teatro Regio (Torino 2012), Den Norske Opera & Ballett (Oslo 2014)

Calixto Bieito é um vulgar agitador, e se dúvidas houvesse a esse respeito o espectáculo agora apresentado no São Carlos expõe à evidência a natureza vulgar e provocatória da sua intervenção cénica.

Para nossa desgraça maior o encenador não esteve certamente presente nos trabalhos de preparação desta reposição. Esses trabalhos foram assim entregues a Joan Anton Rechi.

Esta circunstância impede-nos portanto de apurar com segurança quem é o principal responsável pela tonalidade geral que impregna todo o espectáculo. Expliquemo-nos.

A Carmen de Mérimée é uma provocadora, e os libretistas de Bizet não quiseram felizmente retirar à personagem da ópera essa característica nuclear. Ela é aliás uma das razões para o sucesso global da personagem, na ópera ou nos múltiplos outros suportes de difusão que se conhecem.

Sendo assim, o aparecimento de uma proposta cénica operática em que, por uma vez, esperamos ver uma Carmen não convencional, vivendo a sua natureza provocatória em contextos não convencionais, estranhos à pacata moralidade burguesa que nas propostas mais comuns informa a generalidade da acção, seria um motivo de benévola expectativa.

Um encenador conhecido pela sua apetência pela provocação e pela originalidade das suas propostas pareceria portanto uma boa escolha para este espectáculo.

Porém uma provocação por si só não tem qualquer valor intrínseco. Ela apenas se transforma numa mais-valia quando a transgressão se fundamenta numa análise inteligente da realidade sobre a qual opera.

Nessa circunstância a transgressão funciona como revelador violento de algo sobre essa realidade, sendo então a violência da revelação o fundamento da provocação. As consequências deste tipo de intervenção são em geral devastadoras, e o provocador sabe disso e está preparado para as sofrer.

Voltemos agora ao palco do teatro.

Na ópera, tal como na novela de Mérimée, a provocadora Carmen morre. Porém a provocação multiforme proposta por este encenador não conduzirá nunca à sua morte, mesmo figurada: de facto não decorre do espectáculo qualquer risco real para ele, porque não existe por detrás do que nos mostra qualquer vestígio de proposta inteligente perceptível.

Pelo contrário. A suposta provocação transforma-se aqui numa exibição gratuita de quadros aparentemente em conflito com o imaginário mais comum, quadros susceptíveis de acolher pela sua forma propósitos de transgressão, mas infelizmente desprovidos de qualquer conteúdo susceptível de ser percebido com fundamento na história.

E portanto os personagens são bonecos vazios que debitam de forma mais ou menos competente as suas partes, encontrando-se os espectadores reduzidos pelo encenador à condição de frágeis consciências prontas a ser passivamente submetidas à exibição daqueles quadros.

De tal exibição resultará forçosamente algum escândalo, elemento importante para o sucesso comercial do evento, mas nada de mais grave. Para o encenador o reforço da sua aura de provocador e algum proveito mais, para algum público um motivo de consolidação e reforço das suas convicções mais arreigadas, afinal e de forma paradoxal o oposto ao resultado esperado de uma real provocação.

Mas a Carmen é também, não esqueçamos, um exotismo. Ela é um florão requintado de algumas características meridionais que ainda hoje continuam a ser um motivo de admiração beata para alguma intelectualidade artística de além Pirenéus.

Ora esse efeito de deslocalização, que é o substrato do exotismo, encontra-se neste caso grandemente atenuado pela transposição da acção para um período da actualidade recente. Não é seguro se estamos no período final do franquismo ou no reinício da monarquia espanhola (ao contrário da utilizada no São Carlos, a bandeira usada na versão original é a do primeiro destes períodos), em todo o caso estamos certamente na segunda metade do século XX, portanto num ambiente que nos é ainda bastante familiar.

Neste contexto para obter o mesmo efeito torna-se necessário compensar tal familiaridade pela utilização de um registo dramático menos comum. Terá sido essa a razão para a escolha de um ambiente geral retirado do imaginário sado-masoquista no desenho dos personagens?

É que, sem motivo aparente dedutível da história original, tudo na opção dramatúrgica escolhida aponta nesse sentido, desde o pingalim usado na cena inicial para o “tratamento” de Micaela por Morales até à violenta cuspidela de Micaela sobre uma Carmen prostrada no chão na patética cena final do seu reencontro com Don José.

E todos os estereótipos de tal imaginário percorrem regularmente o espectáculo, onde as correias de couro, os sapatos de tacão alto pontiagudo, as poses agressivas, os gestos codificados impregnam todas as interacções entre os personagens, numa fúria expositiva que por momentos quase roça o obsceno quando introduz em cena sugestões de pedofilia ou de exibicionismo e voyeurismo.

Não nos é possível saber se esta opção dramatúrgica totalmente gratuita é propósito da encenação original ou se resulta de uma perspectiva específica desta reposição. Certo é que ela evidencia a natureza vulgar da provocação tornando-a portanto demasiado evidente e… inócua.

Como sempre acontece nestes casos, muitos fumos e alguma nudez, cambalhotas acrobáticas e luzes violentas nos olhos do espectador, múltiplos adereços e artefactos de vária natureza e bastas incoerências ou incongruências lógicas são alguns dos recursos utilizados pelo encenador para iludir a realidade: um espectáculo plasticamente feio e conceptualmente vazio. A verdadeira Carmen não passou por aqui.

O comentário sobre a forma como foi operacionalizado este vazio será portanto necessariamente breve.

A direcção musical foi paupérrima, evidenciando total incapacidade para controlar executantes e cantores, com muitos momentos de total desacerto sobretudo no que respeita às prestações da protagonista titular.

A orquestra soou em geral como uma banda filarmónica acompanhando uma procissão de rua, sem cordas, sem outra dinâmica para além da regular marcação do passo ao som de tambores e sopros, estes frequentemente infelizes.

Quanto aos cantores principais, para além de uma geral inexistência dramática, deve realçar-se a frequente desafinação de Escamillo, ultrapassando o suportável num teatro profissional.

Os frequentes e violentos ruídos criados por imposição da encenação em longas sobreposições à belíssima música de Bizet, com o seu auge na cena da desmontagem do emblemático touro no início do terceiro acto, se por um lado ajudam a esquecer e disfarçam a pobreza da execução musical apresentada, constituem por outro lado um verdadeiro retrato e a síntese do espectáculo: para esquecer.


José António Miranda    13/10/2016

2 comentários:

  1. Excelente! Gostei muita da sua análise.

    E revolta-me que Micaela seja assim mal tratada - sempre simpatisei com a personagem ;)

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  2. Excelente texto!
    É bom rever esse blog.
    Um abraço do Brasil

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