THE RAKE'S PROGRESS - A Carreira do Libertino, Ópera em três Actos (1951)
de Igor Stravinsky. Libreto W.H. Auden e Chester Kalman, inspirado em A Carreira do Libertino, conjunto de
oito pinturas e gravuras, de William Hogarth.
Direcção musical: Joana Carneiro.
Encenação: Rui Horta. Cenografia: Rui Horta. Luz: Rui Horta. Roupas: Pepe
Corzo.
Tom Rakewell: Tuomas Katajala
Anne Truelove: Ambur Braid
Nick Shadow: Luís Rodrigues
Baba, a turca: Maria Luísa de
Freitas
Truelove, pai de Anne: Nuno Dias
Sellem, o leiloeiro: Carlos
Guilherme
Mother Goose: Catia Moreso
Guardião do Hospício: João Oliveira
Orquestra Sinfónica Portuguesa
Coro do Teatro Nacional de São
Carlos (Dir:
Giovanni Andreoli)
Contínuo: Joana David (cravo)
Produção: TNSC (2015)
Afinal parece que é ainda possível ver no São Carlos uma nova produção de
autores nacionais perfeitamente aceitável, e de qualidade mesmo muito superior
à de algumas produções importadas, e de má memória, com que fomos brindados nos
últimos tempos.
O facto de a equipa responsável por tal programação não estar já em
actividade no teatro (em rodapé de uma das páginas iniciais, e num corpo
minúsculo, a administração da OPART ""agradece a Paolo Pinamonti o contributo criativo para este espetáculo"), não impediu o espectáculo de encerrar do melhor modo a presente temporada
Aquele facto no entanto deixa-nos todavia mais apreensivos em relação ao
próximo futuro do nosso teatro de ópera, provavelmente o único de uma capital
europeia do qual ainda se desconhece totalmente a programação para a próxima
temporada. Mas isso é outra conversa.
Quanto ao espectáculo em si serviria, se tal fosse necessário, para fazer a
demonstração de que é possível conceber uma produção operática de qualidade sem
grandes recursos.
Através da utilização de uma cenografia singela mas plena de
potencialidades expressivas (um estrado em cunha, truncado, permitindo
múltiplas configurações e usos, uma mesa e duas cadeiras minimalistas e
polivalentes, duas árvores, um tapete, algumas grades e pouco mais) o encenador
Rui Horta consegue conduzir-nos com prazer pelos variados ambientes nos quais
decorre a acção.
Para tal, e para além de algumas projecções de imagens no fundo do palco,
indicativas de local ou de ambiente, usa inteligentemente dois recursos: a luz
e a coreografia.
No respeitante ao primeiro, o desenho da iluminação, importa referir que
marca um progresso notável em relação ao que é habitual ver neste palco.
Percebe-se que o encenador quis usar este recurso como ferramenta expressiva,
ao contrário do que estamos habituados a ver ali, onde a luz é frequentemente
usada apenas para nos permitir ver (e muitas vezes mal) o que se passa em
palco.
Esta determinação de integrar a luz no leque de recursos expressivos disponíveis é tanto mais necessária quanto maior o minimalismo cenográfico adoptado.
De facto a opção minimalista comporta o risco de deixar as situações
encenadas apenas em esboço, como apontamentos visuais sem profundidade nem
consistência. E a luz é então um dos principais recursos ao dispor do encenador
inteligente para ultrapassar este problema.
Percebe-se e louva-se portanto que Rui Horta tenha querido usá-la
adequadamente, mas também se compreende que, não tendo ao seu dispor um verdadeiro
técnico de iluminação e não o sendo ele próprio, o resultado não seja perfeito
e revele ainda alguma imaturidade e inabilidade.
Fotografia de Carmo Sousa / TNSC
Apesar dessa inabilidade, particularmente evidente no modo como foram feitas algumas transições entre quadros, e de alguns desacertos reveladores de deficiente concepção da funcionalidade expressiva, como na cena final do terceiro acto, pudemos presenciar alguns momentos de grande beleza plástica e densidade dramática.
Apesar dessa inabilidade, particularmente evidente no modo como foram feitas algumas transições entre quadros, e de alguns desacertos reveladores de deficiente concepção da funcionalidade expressiva, como na cena final do terceiro acto, pudemos presenciar alguns momentos de grande beleza plástica e densidade dramática.
Quanto à coreografia a situação é diversa. Rui Horta é acima de tudo um
coreógrafo, e isso foi evidente em todos os momentos do espectáculo.
Com grande mestria conceptual e técnica o encenador faz evoluir no palco (e
não só, pois o coro é colocado por momentos fora dele) todos os personagens,
desde o protagonista principal até ao último elemento do coro, e mesmo os
movimentos dos assistentes de palco na mudança e deslocação de adereços são
coreografados.
Embora esta última opção possa parecer desadequada, ela introduz de facto
no conjunto do espectáculo um carácter cerimonial que não é incompatível com o
facto de este ser constituído pela exposição de um conjunto de quadros.
A ópera é de facto o retrato em cena de um conjunto de gravuras que
serviram de inspiração para os seus autores. Imprimindo à exposição cénica
dessas imagens alguma solenidade cerimonial, o encenador coloca-nos assim em
sintonia com a natureza formal da partitura, um permanente piscar de olho ao
classicismo, ao mesmo tempo assimilado e distorcido.
O movimento dos assistentes de palco pode assim ser lido como metáfora
imagética dessa opção do compositor: os criados também dançam de algum modo
neste teatro clássico da vida moderna.
Quanto aos restantes protagonistas, a exploração sistemática do espaço é
feita com grande poder expressivo, atingindo-se mesmo por vezes momentos de
grande beleza plástica e poética, como na sublime viagem de Anne ao encontro de
Adónis na mesa transformada em gôndola sob o comando tranquilo de Truelove.
Já no que se refere ao terceiro recurso fundamental num contexto de
encenação como este, o trabalho com os actores, a situação não foi tão
positiva.
Tudo se passa como se não tivesse sido feito com os cantores qualquer
trabalho de definição do registo expressivo adequado ao contexto cénico
desenhado. E portanto, como é normal, eles terão feito consciente ou
inconscientemente a sua opção subjectiva.
Se no caso de Luís Rodrigues essa opção é coerente conferindo ao personagem
de Shadow um peso e uma densidade dramática acima de todos os outros, de facto
o conjunto mostra uma inconsistência global que impede genericamente o
desenvolvimento de qualquer tipo de discurso organizado e coerente. Facto aliás
consistente como o modo como foi feita a direcção musical, num estrebuchar
alado de marcação de compassos, um estertor mecanicista que chegou ao extremo
de se manter nos recitativos, sem qualquer subtileza expressiva ou profundidade
narrativa.
Apesar destes problemas de unidade discursiva, de que a recepção do Epílogo
pelo público foi um mero indicador, o espectáculo constituiu sem dúvida um
marco francamente positivo na presente temporada do teatro lírico nacional.
José António Miranda 05/06/2015
Escrito em português. Acordo ortográfico não, por favor.
Tenho pena de não ter visto mas não tive mesmo possibilidade. Pelo que depreendo da leitura do seu texto e já suspeitava depois de ouvir a apresentação que o encenador fez ao espectáculo (via Facebook), tratou-se de uma abordagem épica no sentido brechtiano. Suponho que calhe muito bem neste género de ópera mas, como refere, estou convencido de que requer muita habilidade com a iluminação. Está também em linha com a utilização da tribuna que o FanaticoUm refere. Não é que me atraia doidamente mas deixa-me bem curioso! Talvez para o ano saibamos da próxima temporada! Ahah
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