domingo, 24 de novembro de 2013

O NARIZ de SHOSTAKOVICH / THE NOSE — MetLive in HD, Culturgest, 23.11.2013

(Review in English below)


O Nariz é uma ópera russa escrita por um dos mais influentes compositores do século XX, o génio russo Dmitri Dmitriiyevich Shostakovich (1906-1975).


Completou-a em 1928 com apenas 22 anos de idade, um feito alcançado por muito poucos, sobretudo pela enorme novidade e riqueza criativa que atingiu e que usou como base da sua importante obra musical como, por exemplo, nas suas sinfonias.


O libreto foi elaborado por Yevgeny Zamyatin (escritor russo na linha gogoliana), Georgi Ionin, Alexander Preis e pelo próprio Dmitri Shostakovich. Mas foi este último quem, de facto, mais se lhe dedicou. O libreto é a adaptação do conto satírico O Nariz (1836) de Nikolai Gógol (1809-1852), genial autor russo de uma sagacidade, intrepidez e sensibilidade de análise social assinaláveis, autor de Almas Mortas e pai de uma geração literária com nomes onde pontificam Tólstoi e Dostoiévski.
A adaptação é, podemos afirmá-lo, perfeita: não faltam cenas, não faltam os comentários mordazes do autor, não falta o ambiente de loucura absurda e surrealista, ou a agitação de uma São Pertersburgo azafamada, quase caótica. Houve uma atenção ao detalhe imensa ao ponto de quase se poder “dispensar” a leitura do conto original, o que, todavia, não aconselhamos.


A história poderá ser lida com mais detalhe no site do Metropolitan, mas fica aqui um resumo:

Acto I: Num sonho ou na realidade, o barbeiro Ivan Yakovlevich faz o seu trabalho num estado inebriado. Ao acordar, quer comer o pão com cebola que a mulher prepara. Mas quando o parte, encontra, estupefacto, um nariz (“Hoc!”, exclama). Atrapalhado, o barbeiro sai de casa para se desfazer do nariz, mas depara-se sempre com algo que o impede. Entretanto, o assessor de colégio, ou antes, o major Kovaliov acorda e, olhando-se ao espelho, verifica que o seu nariz desaparecera. Perplexo, parte à sua procura. Na Catedral de Kazan encontra um cavalheiro com farda de Conselheiro de Estado que é, nem mais, nem menos, que o seu próprio nariz. Tenta chegar-lhe à fala, mas da conversa nada resulta.

Acto II: O atrapalhado Kovaliov vai à polícia dar parte do desaparecimento do seu nariz e queixar-se de que o seu nariz se faz passar por conselheiro de estado e se anda a passear pela cidade. O polícia recebe-o com maus modos e não lhe dá importância. Kovaliov segue para o jornal. Quer colocar um anúncio sobre o desaparecimento do seu nariz, mas no jornal recusam-lhe a publicação do anúncio. Kovaliov regressa a casa desesperado.

Acto III: O chefe da polícia ordena a captura do homem-Nariz. Correm imensas e contraditórias notícias pela cidade de que um homem na forma de nariz se anda a passear pela cidade. A população mobiliza-se para os diversos locais onde tem havido relatos dessa presença invulgar. Entretanto, o inspector da polícia vai a casa de Kovaliov entregar-lhe o nariz que tinha sido encontrado. Kovaliov tenta em vão colar o nariz. Na sua impossibilidade, chama um médico que lhe diz que, apesar de o poder fazer, não o faz porque o resultado seria pior. Kovaliov, muito aborrecido, envia uma carta a Podtochina acusando-a de lhe ter lançado um feitiço (ela queria casá-lo com a sua filha, mas Kovaliov só queria o flirt). Esta responde-lhe e Kovaliov conclui que ela está inocente. O povo reúne-se e discute este estranho caso quando, entretanto, aparece Kovaliov, satisfeito, já com o nariz de novo no lugar. "Digam o que disserem, acontecem coisas destas no mundo - raramente, mas acontecem."


A música que Shostakovich compôs para esta ópera é notável. Recuando ao ano de 1928, a sua música é extremamente ousada e inovadora, predominando a dissonância. São mais de 500 páginas de música para 30 instrumentos (1 por cada naipe mais percussão, domra e balalaica — instrumentos de cordas russos). Os instrumentos são virtualmente usados como leitmotif: o Nariz é uma flauta alto, Kovaliov é uma corneta e um xilofone, Ivan é uma balalaica.


A Orquestra do Metropolitan esteve em elevadíssimo nível dirigida pelo maestro Pavel Smelkov.


O barítono brasileiro Paulo Szot foi um Kovaliov estupendo. A sua voz tem um timbre muito bonito e pareceu sempre muito confortável na ultrapassagem dos muitos e difíceis desafios que a partitura lhe exigiu. As suas capacidades como actor já foram premiadas pelas suas interpretações em musicais e Szot fez jus aos prémios: foi um Kovaliov a todos os níveis irrepreensível, muito convincente. Mostrou-se cómico, sedutor, atrapalhado e desesperado sempre que se exigia.  A sua cena no jornal, só para dar um exemplo, com todo aquele desespero chorado foi extraordinária. Foi uma actuação digna de um Oscar.


O tenor russo Andrey Popov como Inspector da polícia esteve, também, em muito bom nível. Os seus agudos nunca saíram gritados, foi sempre muito equilibrado e o timbre é muito agradável. Aliou à prestação vocal, uma interpretação cénica de bom nível.

Podíamos falar de muitos outros cantores, mas são tantos... Tiveram todos desempenhos de elevada qualidade e acabamos por destacar o papel de enorme comicidade do médico (o baixo Gennady Bezzubenkov), a beleza tímbrica da soprano Ying Fang (filha de Podtochina e voz feminina na Catedral), o racional funcionário do jornal (o barítono James Courtney),  ou o atrapalhado barbeiro Iakovlevitch (o baixo Vladimir Ognovenko).


O melhor fica para o fim. A encenação do artista plástico sul-africano William Kentridge é absolutamente genial. A observação ao vivo desta encenação deve ser um espectáculo memorável. Conseguiu transportar-nos para o ambiente da Rússia dos anos 20, com todo aquele rebuliço revolucionário: com colagens, incontáveis recortes de jornais, frases em russo e em inglês projectadas, inúmeras projecções em vídeo do compositor, de cavalos projectados usados para “puxar” os cenários das diversas cenas, até de Estaline, do nariz omnipresente... Só visto.


Fica um vídeo com uma entrevista a Kentridge e vários outros do ensaio geral que poderão ajudar a ter uma ideia da dimensão artística notável desta criativíssima encenação.





E não resisto a deixar-vos, também, o link para o vídeo desta produção apresentada anteriormente no Festival d'Aux en Provence com a Opera de Lyon.


Se o magnífico desta ópera fosse só a música moderna de ritmicidade espectacular de Shostakovich, já tinha valido a pena. Se o magnífico desta ópera fosse só a adaptação exemplar do conto de Gógol, já tinha valido a pena. Se o magnífico desta ópera fosse só a encenação hipercriativa de Kentrigde, já tinha valido a pena. A conjugação destes três elementos, aliados às excelentes interpretações com um Szot estelar, tornam esta produção um marco inesquecível.

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(Review in English)

The Nose is a Russian opera written by one of the most influential composers of the twentieth century, the Russian genius Dmitri Dmitriyevich Shostakovich (1906-1975). He completed it in 1928 with only 22 years of age, a feat achieved by very few, especially because of its huge novelty and creative richness that he used as the basis of his later major musical works, for example, in his symphonies.

The libretto was written by Yevgeny Zamyatin (Russian writer in gogolian way) , Georgi Ionin, Alexander Preis and Dmitri Shostakovich himself. But it was the latter who, in fact, was the most dedicated to it. The libretto is an adaptation of the satirical short story The Nose (1836) by Nikolai Gogol (1809-1852), Russian writer of a brilliant social analysis sagacity, intrepidity and sensitivity, author of Dead Souls and father of a literary generation with names where Tolstoy and Dostoevsky pontificate.
The Nose short story adaptation is, we can state it, perfect: there are no missing scenes, the author’s biting comments are all them present, the ambiance of absurd and surreal madness, or the excitement of a bustling and almost chaotic San Petersburg are touchable by our senses. There was an immense attention to detail to the point of almost being able to "waive" the reading of the original tale, which, however, we don’t recommend.

The story can be read in more detail in the Metropolitan website.

The music that Shostakovich composed for this opera is remarkable. Retreating to the year 1928, his music is extremely bold and innovative, predominantly dissonant. Featuring over 500 pages of music for 30 instruments (1 for each section plus percussion, domra and balalaika - Russian stringed instruments). The instruments are virtually used as leitmotif: Nose is an alto flute, Kovalyov is a cornet and a xylophone, Ivan is a balalaika.
The Metropolitan Orchestra was at very high level directed by Pavel Smelkov .

The Brazilian baritone Paulo Szot was a remarkable Kovalyov. His voice has a beautiful tone and he always seemed very comfortable in overcoming many difficult challenges the score required. His skills as an actor have been already awarded for his performances in musicals and Szot showed us why: He was one impeccable and very convincing Kovalyov at all levels. Whenever required, he was humorous, seductive, fumbling and desperate. His scene at the newspaper, just to give an example, with all that crying and despair was extraordinary. It was a performance worthy of an Oscar.

The Russian tenor Andrey Popov as Police inspector and he was also in a very good level. He never came out screaming, his performance was always very balanced with a very pleasant timbre. Allied to vocal performance, he offered us a high level scenic interpretation.

We could mention many other singers, but they were so many ... All had high quality performances and we end by highlighting the role of the physician  comic role (bass Gennady Bezzubenkov) , the timbre beauty of the soprano Ying Fang (as Podtchina’s daughter and female voice in the Kazan’s Cathedral scene), the cerebral newspaper official (baritone James Courtney), or jmbled barber Iakovlevitch (bass Vladimir Ognovenko).

The best is to end. The staging of the South African artist William Kentridge is absolutely brilliant. This production viewed live muts be a memorable show. It is able to transport us to the environment of Russia of the 20s, with all that revolutionary turmoil: with collages, countless newspaper clippings, projected phrases in Russian and English, countless video projections on the composer, the projected horses used to "pull" scenarios of various scenes, even Stalin was there, and, of course, the ubiquitous nose... Only seen. Here is a video with an interview with Kentridge and various other from the final rehearsal that may help you to have an idea of the scale of this remarkable artistic and plenty of creativeness imagination production.

If this opera was just magnificent by Shostakovich’s modern music of spectacular rhythmicity, it had been worthwhile. If this opera was magnificent just due to it’s exemplary adaptation of Gogol's tale, it had been worthwhile. If this opera was magnificent only by hyper-creative Kentdrige’s staging, it had been worthwhile. The combination of these three elements plus with excellent performances with a stellar Szot makes this production a memorable milestone.


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

CARMEN, Teatro Ademir Rosa, CIC - Florianópolis, SC


De Lucas Andrade de Florianópolis  (https://www.facebook.com/lucasandradesilva) recebemos o presente texto sobre a Carmen. Em nome dos "Fanáticos da Ópera" o nosso agradecimento a mais um amante de ópera que se junta aos autores deste espaço.

A Cia Ópera de Santa Catarina e a Camerata Florianópolis trouxeram ao palco do Teatro Ademir Rosa na capital catarinense sua mais nova montagem, desta vez da popular e querida Carmen de Georges Bizet. A Cia Ópera vem trazendo bravamente versões completas de diversas peças, já tendo no currículo A Flauta Mágica, Rigoletto, La Traviata, Elixir do Amor e Barbeiro de Sevilha.

A Carmen foi apresentada em versão sem diálogos nos dias 14, 15, 16 e 17 de novembro. Nos dias pares tivemos Richard Bauer no papel de Don José, Adriana Clis como Carmen e Masami Ganev como Micaëla. Por sua vez, nos dias 15 e 17, Fernando Portari foi Don José, Luciana Bueno personificou Carmen e Claudia Ondrusek interpretou Micaëla. Sebastião Teixeira foi Escamillo nas quatro noites. Assisti à apresentação do dia 17 e o ensaio geral e final na íntegra na quarta-feira, dia 13, com a equipe Portari/Bueno/Ondrusek, portanto meus comentários serão em relação a este último dia.

Antes de partir para as considerações da encenação, no entanto, gostaria de salientar como é importante a montagem de um espetáculo operístico deste porte em uma cidade que não tem esta tradição. Todos os cantores, músicos e membros da equipe são verdadeiros heróis e promoveram um espetáculo belíssimo, com muita atenção aos detalhes e qualidade e para um “fanático da ópera” como eu, a emoção de poder apreciar sua mais amada forma de arte ao vivo, novamente, tem a tendência de nos tornar extramente positivos!


O casal principal esteve excepcional. Fernando Portari foi vocalmente impecável, com agudos potentes e seguros. Destaque também para seu pianíssimo na frase “Et j'étais une chose à toi” no final da ária La Fleur Que Tu M'avais Jetée. Cenicamente foi muito focado e envolvido. Sua explosão de ciúmes no final do Ato III foi de trancar o fôlego de tão visceral! Sem dúvida, um dos grandes tenores mundiais! Se me permitem um breve momento tiete, que alegria poder vê-lo ao vivo!

Luciana Bueno foi uma Carmen de bons graves e boa postura cênica e expressões faciais muito ricas. Até gostaria que ousasse um pouco mais no palco, pois tem corpo, rosto, voz, beleza e sensualidade para tal. No balaço final, uma Carmen memorável, sem dúvidas.

A Micaëlla de Claudia Ondrusek, natural de Florianópolis, foi uma candura, muito meiga e com mais segurança na região alta do que nas notas mais graves que perderam um pouco do brilho na acústica desfavorável do teatro.

Sebastião Teixeira foi um Escamillo de muita potência vocal e agudos tranquilos. Melhor ainda quando dividia o palco com Portari.

Os demais membros do elenco foram muito sólidos, principalmente o simpático bando de contrabandistas, proporcionando excelentes cenas de conjunto. Outro destaque muito positivo, vocalmente e cenicamente, para o coro, formado por vários cantores jovens e o coro infantil, que conquistou os corações de todos na plateia até os momentos finais com a cortina já se fechando e as pequenas mãozinhas nos dando tchau!

A regência do maestro Jeferson Della Roca, verdadeiro embaixador da música clássica no estado de Santa Catarina, foi muito equilibrada, com sonoridades muito agradáveis, menção especial para as madeiras, e com uso de tempos que permitiram o fluxo normal do espetáculo. Particularmente nos intermezzos, a Camerata soou superior!

Vale a congratulação ainda para os figurinos de José Alfredo Beirão.



Florianópolis quer se firmar como um polo operístico nacional e esta Carmen, com suas quatro noites de casa cheia, veio mostrar que o público existe. E um espetáculo desta qualidade é mais passo definitivo nesta jornada.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Fanáticos da Ópera – 4.º Aniversário / Opera Fanatics – 4th Anniversary



O blogue Fanáticos da Ópera/Opera Fanatics faz hoje 4 anos!

Quando o blog foi criado há 4 anos, o objectivo fundamental era partilhar as nossas vivências do mundo da ópera e ficarmos com um registo das nossas memórias. Tudo isto motivados pela aquela que é uma das nossas paixões: a arte total que é a ópera.

A música tem, de facto, um poder incrível. E encontramos na ópera uma das formas mais sublimes de expressar os sentimentos humanos: podemos vê-los, ouvi-los, tocá-los. E fazê-lo através dos seus intervenientes: músicos, maestros, encenadores, compositores e — claro e acima de tudo! — os cantores!

Com o vosso estímulo, temos vindo a entusiasmarmo-nos cada vez mais e é, confessamo-lo, com algum orgulho que vemos o blog a crescer: já recebemos 321 500 visualizações, cerca de 11500 visitas mensais, e somos visitados por utilizadores espalhados um pouco por todo o mundo (no top 5: Portugal, Estados Unidos, Brasil, Alemanha e Espanha). No último ano publicamos 108 entradas no blogue.

Tem sido com enorme prazer que o temos feito e é com esse gosto que pretendemos continuar. Contamos com a vossa presença e agradecemo-vos pela forma como com as vossas visitas e muitos comentários nos têm ajudado a partilhar esta paixão que é a ópera.

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Fanáticos da Ópera / Opera Fanatics is blogging for 4 years!

When the blog was created 4 years ago, the main objective was to share our experiences of the opera world and get to have a record of our memories. All this motivated by what is one of our biggest passions: total art that opera is.

In fact, music has an incredible power. And we find at the opera one of the most sublime forms of expressing human feelings: we see them, hear them, touch them. And do it through their interpreters: musicians, conductors, directors, composers, and - of course and foremost! - singers!

With your encouragement, we have been getting more and more enthusiastic. We have some pride – we confess it! - that the blog has grown across this 4 years. We already received 321,500 views, about 11,500 visits per month, and we are visited by users spread one all over the world (in the top 5: Portugal, United States, Brazil, Germany and Spain). In the last year we published 108 blog posts.

It has been with great pleasure that we have done it and it is with this love for opera that we intend to continue. We count on your presence and we thank you for the ways your visits and many comments have helped us share this passion. Thanks to you all!

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Eugene Onegin - MET Live in HD, Culturgest, 10.11.2013

(Review in English below)



A ópera Evgeni Onegin de Tchaikovsky é uma das minhas preferidas e Valery Gergiev não a poderia ter descrito melhor: "it is lyrical, truthful, not sentimental and beautiful". É das óperas mais melodramáticas jamais escritas, dá espaço à interpretação, à entrega total dos cantores e músicos, e tem uma música arrebatadora. É mais um daqueles exemplos da ópera como arte total. Quem a ouvir não lhe poderá ficar indiferente.

A produção é a que esteve no MET para a abertura da nova temporada e que o Fanático Um teve a oportunidade de assistir ao vivo, como deu nota aqui.
O libreto é do próprio Tchaikovsky e de Konstantin Shilovsky baseados no romance homónimo de Alexander Pushkin. Pode ler-se uma sinopse aqui.


A interpretação musical de Gergiev com a Orquestra do MET foi sublime. É notoriamente um conhecedor profundo do texto de Pushkin que lhe deu origem (na entrevista foi interessante o saudosismo que ele revelou acerca do ensino da extinta URSS) e isso transmitiu-se para a música: a orquestra soou magnífica, expressou todas os matizes e coloridos e deu espaço amplo ao canto. Destaque também para o Coro do MET muito bem dirigido e a soar como costuma.


A encenação é de Deborah Warner. Convencional, mas de uma beleza profunda. A grande novidade é a postura que atribui ao par amoroso e que, no meu ver, vai mais de encontro ao texto original. E há ainda dois beijos e um abraço significativos. Vejamos.


De Tatiana espera-se uma jovem tímida, sonhadora e melancólica que se torna uma mulher de posição social elevada que é segura e, sobretudo, adstrita a uma moral férrea onde prevalece a honra. Até aqui não há novidade. A novidade aqui foi Anna Netrebko: sempre foi um dos papéis que mais ardentemente lhe desejei ouvir. E ela foi FABULOSA! Para mim a melhor Tatiana de sempre. A voz não tem igual: tem um timbre belíssimo, é cheia, viva, colorida, trágica, romântica, madura, brilhante. Tem uma técnica exemplar que lhe permite fazer o que quer, chegar a todos os agudos com uma facilidade ofensiva, fazer pianissimi mais audíveis do que muitas sopranos a dar tudo o que têm… Querem que continue? (Gergiev falava que é muito trabalhadora dentro e fora do palco: nota-se!). E que dizer das suas capacidades interpretativas? A própria Anna disse que era toda o contrário da Tatiana. Transfigurou-se. Fez uma Tatiana soberba. No primeiro acto foi introspectiva, de uma timidez tocante, de uma melancolia expressa na voz, no rosto, na expressão corporal. A encenadora arranjou-lhe um beijo de Onegin no fim do sermão que a deixou completamente na dúvida, desfeita.


E o último acto? Transforma-se numa mulher madura e dotada de uma moral sólida que resiste à paixão: a forma como lida com Onegin mostrando-lhe frieza, confrontando-o, foi perfeita. E no fim, novo beijo. Mas por iniciativa de Tatiana: mais ardente, mais humano. Uma libertação e uma despedida em forma de desejo sem promessa futura.
Netrebko disse que ainda não tinha cantado este papel porque não estava preparada: valeu a pena esperar. E fê-lo tão bem porque, nas suas palavras, "I'm in love". Ainda bem e que continue!


Onegin não foi o vilão habitual e, no meu ver, bem. Sempre achei que Onegin desejava a Tatiana que conheceu num ambiente rural pouco dado a futilidades extravagantes. E sempre achei que foi sincero no sermão que lhe dá. Foi duro, isso é verdade. Mas não tem necessariamente de ser um vil, rude e arrogante fanfarrão. No fundo, como ele diz, não estava preparado para assumir o papel de marido e seguir uma moral de fidelidade com tão só 24 anos. Não era esse o seu destino imediato. Ainda assim, a encenadora pô-lo a beijar Tatiana no final dessa cena — um beijo terno. Por um lado revela, como disse Kwiecien, "que ele é um cão com as mulheres" e que não a podia deixar escapar, por outro expressa um sentimento que ele não queria assumir. Ele próprio diz a Tatiana que “Amo-a com um amor de irmão ou talvez mais./ Talvez, talvez mais do que isso!”. Está, de facto, ambivalente. O beijo deixa-o claro.


Mas não deixa de ser infantil na provocação que se revela fatal a Lensky. Percebe-se a vontade que tem de voltar atrás e mostra-se arrependido. Mas não consegue deixar o orgulho de parte e avança para o duelo que Lenski, na sua cegueira arrebatada, lhe propôs. Antes do início do duelo, cumprimentam-se com um aperto de mão e Onegin abraça Lenski como que a pedir-lhe perdão e numa tentativa de deixar o orgulho cair por terra: quem cai é Lenski que não o perdoa e a quem já se auto-dedicara um poema fúnebre no seu “Aonde, aonde haveis ido, dourados dias da minha juventude?” (“Kuda, kuda, kuda vi udalilis, vesni moyei zlatiye dni?”).


Mas volta mais maduro, já com 26 anos, a uma São Petersburgo onde, ao ver Tatiana, se apaixona pela mulher em que esta se tornara. E fica desesperado, mas não num desespero de posse, agressivo e dominador como muitas vezes se vê. O seu desespero é o de um jovem apaixonado afogado na culpa do que perdera, do que lhe era agora inalcançável, do prolongamento do vazio em que ficara após a morte do seu amigo Lenski e a que se vê irrevogavelmente votado. Isso nota-se, também, quando Onegin repete textualmente frases da carta que esta lhe escreva dois anos antes e que ainda recordava, como, por exemplo, “Toda a tua vida foi uma promessa da nossa união!” (“Vsya zhizn tvoya bila zalogom/ Soyedinyeniya so mnoi!”). O beijo final de Tatiana é para ele o equivalente ao tiro que deu a Lenski. É a sua morte viva: “Ignomínia! Dor! Oh, destino lamentável!” (“Pozor!... Toska!... O zhalki, zhrebi moi!”).
A interpretação de Kwiecien foi de muita qualidade, quer vocal, quer cenicamente. Tem uma voz com um timbre belíssimo, é muito melódico e tem agudos fáceis e um fraseado muito correcto. Cenicamente foi extremamente convincente. Como foi uma transmissão, não sei se se terão sentido as dificuldades que o Fanático Um experimentou quando o ouviu ao vivo no MET. Em todo o caso, uma das melhores interpretações de Onegin que ouvi.


Lenski tem a postura convencional do jovem poeta: lírico e com uma paixão quase pueril. A interpretação vocal do tenor Beczala mostrou, uma vez mais, porque é um dos melhores tenores da actualidade. Tem uns agudos estratosféricos, com uma voz de invulgar beleza e muito viva. Cenicamente é também muito convincente. Óptimo!


A Olga é-nos apresentada ligeiramente menos acriançada. Vê-se a sua preocupação em tentar confortar Lenski e demovê-lo do duelo, mas não consegue. Essa postura foi notada por Gergiev que disse que ela, nesta encenação, “não era tão cabeça oca”. A interpretação de Oskana Volkova foi de elevada qualidade.


Gremin foi Alexei Tanovitsky. Confirma-se o que dissera o Fanático Um. Foi uma sombra do que se ouviu há uns anos da tribuna do TNSC. Os agudos foram ásperos, em esforço e, apesar de captado por microfones, na transmissão deu a ideia de não ter muita potência e de estar desconfortável. Que pena, até porque tem a figura ideal para Gremin.


Elena Zaremba foi Madame Larina e Larissa Diadkova foi Filippyevna. Ambas cumpriram bem os seus papéis.

Espero que o DVD saia o quanto antes, porque é daqueles que quererei comprar para ouvir, guardar na estante e retirá-lo de lá muitas vezes!
A ópera tem um final trágico, é certo. Mas a felicidade com que saí da sala foi mais uma revelação de como a música tem um lugar especial entre as artes. E, afinal de contas, esse sentimento é o melhor dos finais!

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(Review in English)

Evgeni Onegin by Tchaikovsky is one of my favorite operas and Valery Gergiev couldn’t describe it better: “it is lyrical, truthful, not sentimental and beautiful”. It is one of the most melodramatic music pieces ever written, gives space to scenic interpretations and total delivery by singers and musicians. Its music is breathtaking. It is one more example of opera as total art. The one who hear it cannot be indifferent.

The production was chosen for MET 2013-14 season opening. Fanatico Um had the opportunity to see it live, as he noted here.
Libretto was written by Tchaikovsky himself and Konstantin Shilovsky based on homonymous romance by Alexander Pushkin. You could read a synopsis here.

Gergiev’s musical interpretation along with MET orchestra was sublime. He notoriously knows profoundly Pushkin romance (the nostalgia he revealed in the interview about the USSR education system was interesting) and that was transmitted to music: the orchestra sounded magnificent and expressed all the music nuances and colors and gave ample space to singers. MET chorus sounded as they normally do: very well.

Staging was in charge of Deborah Warner. It is conventional, but profoundly beautiful. The greatest novelty was the attitude she gave to the romantic duo that, in my view, is much more in harmony with the libretto. And there were two significant kisses and a hug.

Of Tatiana we could expect a shy, dreamful, and melancholic young woman that latter becomes a woman of high social position and that is self-assured and, above all, owner of a ferric moral in which honor prevails. To this point there is no news. The novelty here was Anna Netrebko. Tatiana was always one of soprano title roles that I most desired hear Anna to sing. And she was FABULOUS! Best Tatiana ever, in my opinion. Her voice has no rival: it has the most beautiful timbre; it is plenty, vivid, colorful, tragic, romantic, mature and brilliant. Se has an exemplar technic which gives her the possibility to do whatever she wants, reach every high note with offensive ease, do more audible piannisimi than a lot of sopranos giving all they have… Do you want me to continue? (Gergiev said that she is an extreme hard worker on and off the stage) And what about her interpretative capacities? Anna herself said that she is totally Tatiana’s opposite. She transfigured herself. And was a superb Tatiana. At the first act she was introspective, of a touching shyness, of a melancholy expressed on her voice, face and corporal expression. The stage director invented a kiss by Onegin at the final of his sermon. She remains completely in doubt, disregard. And what about the last act? She transformed herself in a mature woman, gifted with a solid moral that resists to passion: the way Netrebko deal with Onegin with coldness, confronting him, was perfect. At the final: another kiss. But it was of Tatiana initiative: more ardent, more human. It was liberation and farewell in the shape of desire with no future promises.
Netrebko said she had never sung this role before because she was not yet prepared. It was worth to wait. And she had done it so well because, in her words: “I’m in love!” So we all want her to still in love!

Onegin was not the usual villain and, in my opinion, it was well interpreted by Warner. I always consider that Onegin wants the young Tatiana he met on the rural countryside far from the extravagant futilities. And I always believe that he was sincere when he gives Tatiana the sermon. It is true he was firm. But he has not to be necessarily a vile, rude and arrogant boaster. Deep down he is, as he himself said, not prepared to assume husband roles and to follow a fidelity moral with only 24 years old. That was not yet his destiny. In spite of that, Onegin kisses Tatiana at sermon’s end: one tender kiss. At one hand, it reveals, as Kwiecien said, “that he is a dog with women” and that he cannot could left her escape, but, at another hand, he expresses a sentiment that he cannot assume. He himself says to Tatiana that: “I love you with a brother's love, a brother's love or, perhaps, more than that! Perhaps, perhaps more than that!” He is, indeed, ambivalent. The kiss makes it clear.
However, he remains to be infantile on the finally lethal provocation he does to Lenski. We perceive his desire to come back and his regret. Nevertheless, he cannot leave his pride apart and goes on the Lenski proposal of a duel. Before it, they give a handshake and Onegin tries to hug Lenski as he was telling Lenski to forgive him and to give up of the duel. The latter refuses it. He cannot forgive Onegin and dies after singing a finable poem he himself dedicated to him: Where, oh where have you gone, golden days of my youth?
Onegin returns more mature (he has now 26 years old) to St. Petersburg where he falls in love for the woman who Tatiana had become. And he goes desperate. But not a possession, aggressive and dominant despair. It is a the despair of a passionate young man sunk on the guilt of what he lost, of what is now unreachable for him, of the extension of the emptiness he had been after his friend death. That is noted, too, by the Tatiana’s letter sentences he remembers and that said to her. For example, “All your life has been a pledge of our union!” The final kiss by Tatiana was for him the equivalent of his shot on Lenski: “Ignominy! ... Anguish! ... Oh, my pitiable fate!”
Kwiecien interpretation was of high quality vocal and scenically. He has an extremely beautiful timbre, and he is very melodic with easily reachable high notes. One of the best Onegin interpretations I heard.

Lenski has his conventional young poet attitude: lyrical and almost puerile passion. Beczala vocal interpretation confirmed why he is nowadays one of the best tenors. He has stratospheric pitches! Scenically he is also very convincing. Outstanding performance!

Olga is revealed to us in a less childish manner. It is evident when she tries to comfort Lenski and to dissuade him from his fatal duel. Her attitude was noted by Gergiev who said “This Olga is less empty minded!” Oskana Volkova performance was of quality.

Tanovitsky’s Gremin, as Fanatico Um had noted, was far from what we see and heard at São Carlos years ago. His high notes were rough, with no so much vocal potency. He seemed uncomfortable. It was a pity even because he has the ideal figure to represent Gremin.

Elena Zaremba as Madame Larina and Larissa Diadkova as Filippyevna performances were of high quality.

I’m now waiting for the DVD release because it will be one to heard and reheard a lot of times.

This opera has a tragic finale, indeed. But the pervasive happiness I felt when I leave the hall was one more revelation of why music has a special place among arts world. And, at the end, this sentiment is the best of finales!