(Review in English below)
A ópera Boris Godunov de Modest
Mussorgsky é, sem sombra de dúvidas, uma das óperas mais originais escritas
à sua época, não só pelo próprio argumento — focado nas questões políticas do
poder e na qual o povo assume um papel-personagem fundamental —, como pelo
desenrolar cénico e forma musical.
(fotos do próprio e da internet)
Mussorgsky não era um compositor profissional
— foi um militar que aprendeu música de forma auto-didacta. Esse “amadorismo”
terá levado Rimsky-Korsakov (notável maestro) a considerar as falhas da
partitura original e a mudar mais de 3000 dos 4 mil e tal compassos da obra,
oferecendo-nos uma versão muito harmoniosa e de uma beleza extraordinária. Quem
não a transporta na sua cabeça através de gravações, por exemplo, como a de
Karajan com o sublime Boris interpretado pela voz verdadeiramente única de
Nicolai Ghiaurov? Todavia, a partir de 1975, voltou a privilegiar-se a versão original
de Mussorgsky com toda a sua inegável força dramática e escrita dotada de
enorme modernidade.
Esta ópera conheceu duas versões. A
primeira data de 1869 e sete cenas centradas no drama psicológico de Boris
Godunov. Foi prontamente rejeitada pelo Teatro Mariinsky por não se conformar na
habitual configuração da grande ópera dramática: onde estava o grande amor
arrebatador? E o que fazer ao soprano já contratado e aqui sem papel? Iria
ficar a assistir? Não!
Não derrotado, mas entusiasmado,
Mussorgsky entregou-se à segunda versão que apresenta definitivamente em 1872
com novas cenas. Apesar de conforme as regras, só foi estreada 2 anos depois a 27
de Janeiro de 1874 no Teatro Mariinsky. A crítica disse “o compositor está
louco”, enquanto o público aplaudiu entusiasticamente, obrigando o compositor a
vir 20 vezes ao palco.
Boris Godunov é um drama baseado na obra
homónima de Alexander Pushkin (1826) e no livro histórico “História do Império
Russo” (1829) de Nikolai Karamazín. Foi-nos apresentada no Teatro Real de forma
completíssima: com 10 cenas, incorporando a cena da Catedral de São Basílio
presente na versão de 1869, mas suprimida na de 1872.
A nova produção do Teatro Real ficou a
cargo de Johan Simons. Não trouxe
novidades de maior. O cenário omnipresente é um edifício soviético de 3 andares
muito degradado e, por sinal e carcateristicamente, muito feio. Aí se desenrola
toda a acção, havendo um ou outro plano elevatório e várias janelas que não
foram aproveitadas da melhor maneira. O guarda-roupa era actual e nada trouxe à
ópera apresentada. A direcção de actores também não foi magnífica, por pouco
dramática. A novidade foi a invocação do grupo russo Pussy Riot, tão famoso
pela figura contestatária sem rosto ao regime de Putin que aqui foi invocada
nalguns elementos, nomeadamente entre o coro. A utilização de uma camera de
filmar com projecção no cenário de uma cena filmada em grande plano não foi
mais do que um elemento vistoso. O Idiota ou O Iluminado (parece que esta é a
tradução mais correcta) transportava um globo de luz: ele trazia a clareza, o
esclarecimento, a sabedoria. Em suma, foi uma encenação que serviu o drama, mas
cuja modernização nada acrescentou à obra.
A direcção musical de Hartmut Haenchen não tocou o sublime. Foi regular, mas faltou
intensidade dramática e, no meu entender, sobretudo na cena da morte de Boris,
foi demasiado rápido. Acresce o facto — negativo — de os sinos terem tocado,
mas através de colunas de som que reproduziram o seu som previamente gravado...
Ainda assim, a obra é magnífica e a qualidade foi muito razoável.
O Coro
do Teatro Real ofereceu-nos os melhores momentos da récita: estiveram muito
bem nos coros monumentais que esta ópera nos oferece e que são, sem dúvida, um
dos seus pontos de maior interesse e destaque.
Gunther Groissbock
foi Boris Godunov. Tem uma presença física espantosa e muito adequada ao papel e
uma voz que sabe projectar com clareza. Todavia, a sua interpretação de Boris
foi algo tensa, pouco dramática e, no meu entender, não suficientemente
convincente. Creio que poderá vir a ser um bom Boris, mas ainda não o é.
Fiódor, o filho de Boris, foi interpretado
por Alexandra Kadurina. Cumpriu bem
o seu pequeno papel. Xenia, a filha de Boris, foi Alina Yarovaya: tem uma bela presença e também se apresentou vocalmente
bem.
O príncipe Chuiski foi Stefen Margita que esteve em bom plano,
quer vocal, quer cenicamente. A sua voz fez-se ouvir com clareza e tem um
timbre adequado.
O tenor Michael Konig foi Grigori, o falso Dmitri. Creio que não tem uma
voz cheia e ampla, e os agudos não são o seu forte. Cenicamente não foi
perfeito. No seu todo, a sua prestação foi regular e esteve longe de encantar.
Dmitry Ulyanov foi o monge Pimen. Tem uma voz de baixo com enorme amplitude, potência e beleza. Interpretou o seu papel de forma exemplar e foi o melhor da noite!
Marina Mnishek, a princesa polaca, foi o
mezzo-soprano Julia Gertseva. Tem
uma voz com um bom timbre e controla bem as notas mais agudas. Desempenhou bem
o seu papel e foi uma das melhores da noite.
Yuri Nechaev foi
Andrei Chelkalov e esteve bem, o mesmo se podendo dizer da dupla Rangoni (Evgeny Nikitin) e Varlaam (Anatoli Kotscherga). Este último,
conceituado Boris, já estará longe daquilo de que foi capaz. A taberneira foi a
mezzo-soprano Pilar Vázquez que nos
foi apresentada com uma indumentária medonha, o que realçava a sua imagem
corporal de enorme porte e nos distraía de uma voz pouco capaz. Já o Idiota foi
o tenor Andrey Popov, que tinha uma
voz adequada ao papel e cumpriu com destreza cenicamente.
Em suma, foi uma récita que, no seu todo,
foi homogénea e interessante de seguir, mas com uma encenação que nada
acrescentou (apesar de ser moderna...) e da qual não levamos nenhuma
interpretação na memória.
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(Review in English)
The opera Boris Godunov by Modest
Mussorgsky is, without a doubt, one of the most original operas of time,
not only by the argument - focused on issues of power and politics in which the
people plays a vital role as a major character - as by scenic development and
musical form.
Mussorgsky was not a professional
composer – he was a military man who learned music by himself. His
"amateurism" has led Rimsky-Korsakov (notable conductor) to consider
the flaws of the original score and change over 3000 of the more than 4000 bars
of the score, giving us a very harmonious and extraordinarily beautiful revised
version. Who does not carry it in your head through recordings, for example,
like Karajan’s with the sublime Boris interpreted by the truly unique voice of
Nicolai Ghiaurov? However, since 1975, there has been a return Mussorgsky's
original version with all its undeniable dramatic power and writing endowed
with enormous modernity.
This opera met two versions. The
first date of 1869 and seven scenes focused on psychological drama of Boris
Godunov. The Mariinsky Theatre promptly rejected it by not settling in the
usual setting of great dramatic opera: where was the great love duet? And what
do the soprano already hired here and paperless? Would get just to watch? Definitely,
no!
Not defeated, but enthusiastic,
Mussorgsky delivered to the second version that definitely shows in 1872 with
new scenes. Although according to the rules, it was just premiered two years
after on January 27, 1874 at the Mariinsky Theatre. The critics said, "The
composer is crazy," while the audience applauded enthusiastically, forcing
the composer to come to the stage 20 times.
Boris Godunov is a drama based on
the homonymous work of Alexander Pushkin (1826) and historical book
"History of the Russian Empire" (1829) by Nikolai Karamazín. It was
presented to us at the Teatro Real in a very complete way: with 10 scenes,
incorporating the 1869 version scene of St. Basil's Cathedral, but abolished in
1872.
Johan Simons
handled the new Teatro Real production but he does not brought great new ideas.
The scenario is a ubiquitous and very degraded Soviet building of 3 floors and,
by the way, very ugly. Then all the action unfolds, with one plan or another elevated,
and there were several windows that were not utilized in the best way. The costumes
were modern but they brought nothing to the opera. The actors’ direction was
not magnificent, by the fact that it was poorly dramatic. The novelty was the
invocation of the Russian group Pussy Riot, famous for faceless contestation of
President Putin’s regime that has been invoked in some elements, notably
between the choir. Using a camera for filming one of the scenes and projecting
it in close-up way was not more than a fashionable element. The Idiot or the
The Lighted (seems that this is the most correct translation) carried a globe
of light: he was the one who brought clarity, enlightenment, and wisdom. In
short, it was a performance that served the drama, but whose modernization added
nothing to the work.
The musical direction of Hartmut Haenchen did not touched the
sublime. It was regular, but lacked dramatic intensity and, in my opinion,
especially in Boris's death scene was too fast. Moreover, the fact – negative -
that the bells have rung, but through speakers that reproduce its sound
previously recorded... Still, the work is beautiful and the quality was very
reasonable.
The Choir of the Teatro Real has offered us the best moments of the recital:
the choirs of this monumental opera offer us marvellous momentous and are
undoubtedly one of its major points of interest and focus.
Gunther Groissbock was Boris Godunov. He has an amazing physical presence well suited to
the role and a voice he projects clearly. However, his interpretation of Boris
was somewhat tense, and dramatic but, in my opinion, not sufficiently
convincing. I think he could be a good Boris, but still he is not.
Feodor, Boris' son, was Alexandra Kadurina. She served well her
small role. Xenia, Boris’ daughter, was Alina
Yarovaya: she has a nice presence and also performed well vocally.
The prince Chuiski was Stefen Margita who was in good plan,
either vocal or scenically. His voice was heard with clarity and has a proper
timbre.
The tenor Michael Konig was Grigori, the false Dmitri. He does not have a
voice full and wide, and high-pitched notes are not his best. Scenically he was
not perfect. Overall, his performance was regular and was far from delighted.
Dmitry Ulyanov was the monk Pimen. He has a bass voice with great range, power and beauty. He played his part in an exemplary manner and was the best performer of the recitation!
Mnishek Marina, the Polish princess,
was mezzo-soprano Julia Gertseva.
She has a voice with good tone and she controls well the higher notes. She
played her role well and was one of the best of the night.
Yuri Nechaev
was Andrei Chelkalov and he did well, the same can be said of the Rangoni (Evgeny Nikitin) and Varlaam (Anatoli Kotscherga). The latter, well
known as Boris, is already far from what he was capable of. The Innkeeper was a
mezzo-soprano Pilar Vázquez
presented to us with a hideous outfit, which emphasized her heavy body image
and distracted us of her little voice capacities. Idiot was the tenor Andrey Popov, who had a voice
appropriate to the role and fulfilled skilfully scenically.
In short, it was a performance that,
as a whole, was homogeneous and interesting to follow, but with a staging that
added nothing (despite being modernity...) and which does not take into memory
any singer interpretation.
It is a shame the production was less than stellar, but it sounds very interesting. I have not come across this opera in my studies, but I will investigate. Thank you.
ResponderEliminarCaro camo_opera,
ResponderEliminarEsta é uma ópera que muito aprecio e, confesso, gostaria de ter visto a produção que aqui relata. A sua descrição aguçou-me a curiosidade, sobretudo em relação è encenação. Talvez, no futuro, volte à cena e haja oportunidade de ver. Obrigado pelo relato pormenorizado e interessante.
Não é uma ópera que me atraia muito mas devemos sempre procurar abrir novos horizontes e o seu relato é um excelente aperitivo para tal.
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