O dia 4 de Julho de 2010 acolheu, porventura, o momento mais alto de todo o Festival de Ópera de Munique: Roberto Devereux com a presença da Primadonna Assoluta Edita Gruberova.
A extraordinária cantora, que detem o título de Kammersängerin (KS) da Bayerische Staatsoper, desempenhou nessa noite um dos mais difíceis papéis da história do Belcanto: Elisabetta em Roberto Devereux. Na apresentação do espectáculo, a Direcção Artística da Bayerische Staatsoper escreve:
London, 1601: love, lust and a death sentence at the English royal court - that's just the mix for great Italian opera. Roberto Devereux - an opera for a sovereign, a work for Edita Gruberová! The prima donna assoluta of bel canto triumphs in this drama. Either an opera house can acquire the services of "la Gruberová" - or they can forget putting on this opera.
Com efeito, depois de vermos Edita neste papel, temos a clara convicção de que, actualmente, mais ninguém conseguirá desempenhar de forma tão impressionante este dificílimo papel.
Ao final da tarde do dia 4 de Julho de 2010, muitas pessoas afluem à escadaria que conduz à imponente fachada da Ópera de Munique. Algumas ostentam pequenos letreiros onde se lê: Suche karte für Edita Gruberova (procuro bilhete para Edita Gruberova). Outras perguntam a quem chega se tem algum bilhete a mais para ver Edita Gruberova. Ninguém pede bilhetes para Roberto Devereux, mas sim para Edita Gruberova. Regateiam-se preços, algumas pessoas vendem bilhetes, outras compram... Nos corredores da ópera o público troca impressões entre si e, com frequência, ouve-se pronunciar o nome de Gruberova. Estava, pois, claro o motivo que tinha trazido todo aquele público até ali: ver e ouvir Edita Gruberova.
Nesta produção, que foi especialmente concebida para Edita Gruberova por Christof Loy, a acção é transportada para a actualidade. Todos os cantores utilizam trajes actuais e os cenários retratam espaços contemporâneos.
A Bayerisches Staatsorchester foi magnificamente dirigida pelo exímio maestro austríaco Friedrich Haider. Foi impressionante a energia com que levou a orquestra a executar a fantástica abertura de Roberto Devereux.
A acção tem início. Pouco depois, surge Edita Gruberova, com uma energia impressionante! Uma verdadeira Raínha tanto na personagem, como no canto. Logo nos primeiros momentos da ópera, Donizetti colocou passagens de extrema exigência para a Raínha Elisabetta, como é o caso da dificílima ária "L'amor suo me fe' beata", seguida da espectacular cabaletta "Nunzio son del Parlamento", onde Edita revelou duma forma exímia os seus dotes de coloratura milagrosa. Seguiu-se uma fortíssima e prolongada ovação em cena, na qual o público exclamava repetidamente: "Brava! Brava!".
O drama segue, e a Gruberova foi exímia no desempenho da personagem: a expressão facial, a gestualidade, a postura, os movimentos em palco. Tudo foi perfeito. Edita transmitiu, duma forma absolutamente inefável, todo o drama psicológico da personagem que, por um lado, se confronta com a dor e o ódio que lhe provoca a traição de Roberto e, por outro, o enorme amor e ternura que continua a sentir por ele.
De salientar que o papel é extremamente exigente não só sob o ponto de vista vocal e psicológico, mas também sob o ponto de vista físico, já que a cantora, que conta já com 63 anos de idade, tem de cair várias vezes no chão, ajoelhar-se, levantar-se, rastejar e cantar em posições difíceis.
O dramatismo da acção cresce progressivamente ao longo da ópera, atingindo o seu máximo no último acto. Aqui, Edita consegue arrepiar o público com toda a carga emocional que transmite à personagem. É absolutamente inacreditável a forma como desempenha as cenas finais, após a morte de Roberto: a dor que carrega em si, a revolta contra Sara, o sentimento de perda. Quando profere "Non più regno! Non più vivo!", parece que as próprias tábuas do chão estremecem. Impressionante!
Mas o que se segue é ainda mais marcante: Gruberova inicia a ária final - "Quel sangue versato al cielo" - num pianissimo milagroso, para depois seguir em todo um crescendo de intensidade sonora e dramática. A cantora consegue, aqui, algo de extremamente difícil: produz frases longas, arrastadas, parecendo nunca respirar, graças a uma técnica prodigiosa. Com efeito, Edita consegue produzir estas grandes e arrastadas frases, respirando apenas a intervalos muito grandes e duma forma quase imperceptível, muito bem engrenada na sonoridade da música, praticamente sem causar interrupção nas frases. Consegue, assim, intensificar o dramatismo desta passagem, com frases longas, arrastadas, magoadas, como se estivesse a chorar enquanto canta. A sua expressão facial e a sua emissão vocal configuram um imenso pranto e uma enorme revolta.
E é nesta cena final que sucede algo de muito peculiar: todos os outros cantores e coralistas presentes em palco, deixam de ser elementos do espectáculo, para se tornarem eles próprios espectadores. Todos olham para Edita verdadeiramente emocionados, impressionados perante aquele desempenho inacreditável. No fosso da orquestra, alguns músicos que não estavam a tocar, afastam-se o mais possível do palco e olham para cima, tentando ver Edita no seu desempenho fantástico. Verdadeiramente impressionante! Edita Gruberova termina esta dificílima cena final com um poderoso e prolongado sobreagudo, com os braços erguidos e, por fim, tomba desfalecida no chão. O pano cai e, imediatamente, o público clama: "Brava! Brava!".
O pano volta a subir e, no centro do palco, está Edita Gruberova de pé. O público aplaude em verdadeiro delírio. Os restantes cantores olham para Edita emocionados. É a apoteose total!
Sem dúvida que Edita Gruberova foi o centro, o âmago, o milagre de toda esta récita. Contudo, os restantes cantores foram uns dignos acompanhantes da Primadonna Assoluta do Belcanto. Paolo Gavanelli fez um Duque de Nottingham formidável. Detentor duma poderosa voz de baixo, teve um desempenho excelente. Sona Ganassi foi uma Sara convincente, intensa, apesar de se notar, nesta récita, um ligeiro cansaço. Finalmente, José Bros, fez um Roberto digno. Na verdade, o papel de Roberto não se presta a grandes brilhantismos. O momento em que o tenor tem mais possiblidade de brilhar é apenas na ária final, que executou bastante bem.
Mas os aplausos não paravam e duraram seguramente mais de 20 minutos! O público não parava de gritar "Brava! Brava!". Alguns elementos do público desenrolaram, sobre o fosso da orquestra, um cartaz de louvor a Edita Gruberova. Os cantores, visivelmente felizes, regressavam uma e outra vez ao palco. Mas o público estava ali, de pé, para louvar Edita Gruberova. Começaram então os chamamentos: "Edita! Edita!". E Edita, perante os gritos do público pelo seu nome, surge novamente. E é assim uma e outra e outra vez. Por fim, os aplausos cessam e o público converge para os corredores da Bayerische Staatsoper, para se acumular numa longa fila de espera para uma sessão de autógrafos com a Primadonna Assoluta.
Edita Gruberova, depois de todo o seu magnífico desempenho, depois de toda a sua entrega, ainda teve forças para atender o imenso público que a aguardava. E, para cada um, teve uma palavra amável, um sorriso. Na sua enorme grandiosidade, Edita Gruberova é alguém simples, humilde, afável, natural, duma enorme doçura no contacto pessoal. Edita Gruberova, detentora da aura dum imenso talento, tem a humildade que é natural em todos aqueles que são, de facto, grandes! Bravissima!!!