segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Simon Boccanegra, Festival Verdi, Teatro Regio di Parma, Setembro 2022


(Review in English below)

Assisti à ópera Simão Boccanegra numa encenação de Valentina Carrasco, sob a direcção musical de Riccardo Frizza.

Não sendo uma daquelas noitonas operáticas, foi especial e interessante. Em parte e ilusoriamente, senti-me como que a assistir à estreia de uma nova ópera de Verdi. O que foi levado a palco neste Festival foi a versão original de 1857 e não a que Verdi reviu em 1881 e que é a que hoje em dia conhecemos e que vai a cena em todo o lado. Os 2º e 3º actos foram pouco alterados em 1881 e, tirando algumas variações das linhas melódicas, e pareceu-me que também do texto, é quase tudo igual. No prólogo e no 1º acto é que as coisas são mais contrastantes. A “abertura” é diferente mas com alguns motivos “conhecidos” e que depois aparecem durante a ópera, ária de Fiesco é muito parecida, a da Amélia só no início, o dueto entre Simão e Amélia diria 1/4 igual, a cena do Concílio não existe e aqui é mudada para uma festa do povo. A sensação que dá a quem ouve isto pela primeira vez como me aconteceu é que esta versão de 1857 é dramática e melodicamente mais fraca que a de 1881 e esta ideia não é só porque já tenho entranhada a de 1881, mas sim porque realmente as opções melódicas não são por vezes tão felizes, harmoniosas e unificadoras da acção.

A encenação, na minha opinião, foi muito bem conseguida. A encenadora transpôs a acção para o século XX (talvez anos 50) para o Porto de Génova, com o povo a ser os trabalhadores desse mesmo porto, principalmente no negócio das carnes. Paolo (Devid Cecconi) é caracterizado como pseudo-chefe de armazém, mafioso-like, (e aqui o cantor tem o físico excelente para o efeito) 

ajudado por um Pietro (Adriano Gramigni) mais franzino mas com aspecto similar. 

No final do prólogo aparecem fotos projectadas de uma espécie de movimento revolucionário de trabalhadores, com aqueles cartazes de mão, em pau de madeira, quando na obra se exulta Simão a Doge. Aqui neste tempo, a sensação que dá é que o contexto da encenação é mais restrito, mais familiar, e que seria mais para uma espécie de líder sindical do que propriamente para uma figura de relevo político mais abrangente. A Amélia é uma florista, Gabriele Adorno talvez um dos trabalhadores (roupa pouco indicadora). A cena do Concílio não existe e é, na versão de 1857, uma festa popular. Aqui foi feita a encenação de um arraial, tipo Santos Populares, com bandeirinhas triangulares, bancas, assadores e tudo. Achei coerente. O 2º acto e 3º actos passam-se não no palácio do Doge da versão de 1881, mas sim dentro de um matadouro no Porto de Génova. Triste ver as pessoas do publico logo com “boos” antes da música começar porque vêm umas metades de vacas penduradas em cabides e trabalhadores nesses preparos. Na bancada, antes da música começar, Paolo dava ordens a uns dos trabalhadores que punham em cima da bancada um corpo humano tapado que depois sai de cena - acho que aqui uma alusão ao carácter mafioso de Paolo. Todo o 2º e 3º actos lidam com a morte (envenenamento e morte de Simão) ou desejo de morte (tentativa de assassinato de Simão por Gabriele Adorno) e por isso, no ambiente geral escolhido pela encenadora, fazer esta acção num matadouro parece-me extremamente coerente. A cena final entre Fiesco e Simão, com ambos a passarem por entre as carcaças das vacas, é genial porque, como sabe, Simão pensa que Fiesco está morto e chega a dizer “Fia ver? Risorgon dalle tombe i morti?” e Fiesco diz, seguindo a ideia, “Simone, i morti ti salutano”. Ali estão eles, no matadouro, no meio da morte. Por isso, só posso dizer que o “boo” fácil desta malta que vem para aqui passear vestidos e manias, sem perceberem nada da ópera ou de encenações, é tão triste que até dói na alma, tanta é a estupidez e a iliteracia…

No final, com tudo o que antecede a morte de Simão, os ganchos com as carcaças sobem do palco até desaparecerem e surge no fundo do mesmo, uma foto de um céu em crepúsculo, com uns holofotes colocados a meia luz simbolizando, a meu ver, as duas possibilidades de crepúsculo - um nascer de um novo dia, uma nova vida, para Amelia e Gabriele Adorno porque se acabaram de casar (aparecem ambos vestidos de branco, roupa muito simples) ao mesmo tempo que cresce no chão trigo, sinal também de vida, de alimento, de força; e um final de dia, final de vida, para Simão que agora morre. O corpo de Simão é coberto por espigas de trigo, colocadas por homens e mulheres vestidas de branco, simbolizando possivelmente a ascensão ao céu de Simão tal como o dia da espiga o é para os cristãos na ascensão de Jesus; e uma dessas mulheres com uma ovelha/cordeiro vivo ao colo, penso que também aqui com uma alusão ao seu simbolismo católico transposto para esta cena final.

Do ponto de vista dos principais cantores estiveram todos num grande momento. Piero Pretti, que ouvi ao vivo pela primeira vez, esteve fenomenal, bastante expressivo, muito emotivo, a voz muito bonita e perfeita para o papel. 


A sua interacção/química com Roberta Mantegna foi muito natural tendo esta também cantado com grande segurança e dramatismo. 

Riccardo Zanellato foi um Fiesco colossal a todos os níveis. 


Vladimir Stoyanov, embora vocalmente bastante bem, por vezes faltou-lhe alguma credibilidade cénica. Contudo, arrasou completamente no final, do ponto de vista dramático.

Foi pena que os aplausos do público tivessem sido tão contidos. Vi alguma desilusão, por isso, na cara de Stoyanov e Pretti nos agradecimentos. Não se ouviu a melhor versão do Simão Boccanegra, é certo (a de 1881 bate a original em tudo) mas foi uma grande produção, com cantores, maestro, orquestra e encenadora que mereciam muito mais reconhecimento do público no final.



(Texto de Wagner_fanatic)


Simon Boccanegra, Festival Verdi, Teatro Regio di Parma, September 2022

I watched the opera Simon Boccanegra produced by Valentina Carrasco, under the musical direction of Riccardo Frizza.

Not being one of those operatic nights, it was special and interesting. In part and delusionally, I felt as if I were attending the premiere of a new Verdi opera. What was put on stage at this Festival was the original version from 1857 and not the one that Verdi revised in 1881 and which is the one we know today and which is on stage everywhere. The 2nd and 3rd acts were little changed in 1881 and, apart from some variations in the melodic lines it seems to me that the text is almost the same. In the prologue and in the 1st act, things are more contrasting. The “opening” is different but with some “known” motifs that later appear during the opera, Fiesco’s aria is very similar, Amélia’s only at the beginning, the duet between Simon and Amelia would say 1/4 the same, the scene of the Council does not exist and here it is changed to a people's party. The feeling it gives to those who hear this for the first time as it happened to me is that this 1857 version is dramatically and melodically weaker than the 1881 one and this idea is not just because I already have the 1881 version ingrained, but because really the melodic options are sometimes not so happy, harmonious and unifying of the action.

The staging, in my opinion, was very well done. The director transposed the action to the 20th century (perhaps the 50s) to the Port of Genoa, with the people being the workers of that same port, mainly in the meat business. Paolo (Devid Cecconi) is characterized as a mobster-like, pseudo-warehouse boss (and here the singer has the excellent physique for the purpose) helped by a thinner Pietro (Adriano Gragnini) with a similar appearance.

At the end of the prologue, there are projected photos of a kind of revolutionary movement of workers, with those hand-held posters, on wooden sticks, when Simon and the Doge are exulted in the work. Here at this time, the feeling it gives is that the context of the staging is more restricted, more familiar, and that it would be more for a kind of union leader than for a figure of broader political importance. Amelia is a florist, Gabriele Adorno perhaps one of the workers (clothing not very indicative). The Council scene does not exist and is, in the 1857 version, a popular festival. Here, a staging of a village was made with triangular flags, stalls, roasters and everything. I found it coherent. The 2nd and 3rd acts take place not in the Doge's palace of the 1881 version, but inside a slaughterhouse in the Port of Genoa. Sad to see people in the audience with “boos” right before the music starts because there are halves of cows hanging on hangers and workers in these preparations. On the bench, before the music started, Paolo would give orders to one of the workers who would place a covered human body on top of the bench that later leaves the scene - I think here an allusion to Paolo's mafia character. All the 2nd and 3rd acts deal with death (poisoning and death of Simon) or death wish (attempted murder of Simon by Gabriele Adorno) and therefore, in the general environment chosen by the director, doing this action in a slaughterhouse seems to me extremely coherent. The final scene between Fiesco and Simon, with both passing between the carcasses of the cows, is brilliant because Simon thinks Fiesco is dead and even says “Fia ver? Risorgon dalle tombe i morti?” and Fiesco says, following the idea, “Simone, i morti ti salutano”. There they are, in the slaughterhouse, in the midst of death. Therefore, I can only say that the easy “boo” of these people who come here to walk around dressed and quirky, without understanding anything about the opera or staging, is so sad that it even hurts the soul, so much is the stupidity and illiteracy...

In the end, with everything that precedes Simon's death, the hooks with the carcasses go up from the stage until they disappear and a photo of a twilight sky appears at the back of the stage, with spotlights placed in half light, symbolizing the two possibilities of twilight - a dawning of a new day, a new life, for Amelia and Gabriele Adorno because they have just got married (they are both dressed in white, very simple clothes) at the same time that wheat grows on the ground, a sign also of life, of strength; and an end of day, end of life, for Simon who is now dying. Simon's body is covered with ears of wheat, placed by men and women dressed in white, possibly symbolizing Simon's ascension to heaven as the day of the ear is for Christians in the ascension of Jesus; and one of those women with a live lamb on her lap, I think also here with an allusion to her Catholic symbolism transposed to this final scene.

From the point of view of the main singers, they were all of top quality. Piero Pretti, who I heard live for the first time, was phenomenal, very expressive, very emotional, his voice very beautiful and perfect for the role.His interaction / chemistry with Roberta Mantegna was very natural and she also sang with great confidence and drama. Riccardo Zanellato was a colossal Fiesco on every level. Vladimir Stoyanov, although vocally quite good, sometimes lacked some stage credibility. However, he completely rocked it in the end, from a dramatic point of view.

It was a pity that the audience's applause had been so restrained. I saw some disappointment on the faces of Stoyanov and Pretti. The best version of Simon Boccanegra was not heard, it is true (the 1881 version beats the original in everything) but it was a great production, with singers, conductor, orchestra and director that deserved much more recognition from the public at the end.

(Text by Wagner_fanatic)

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