PETER GRIMES
(Benjamin Britten)
Ópera em três Actos, um Prólogo e um Epílogo (Londres, Sadler’s
Wells, 1945)
Libreto de Montagu Slater segundo o poema The Burrough, de George
Crabbs
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Direcção musical: Graeme Jenkins
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Encenação: David Alden
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Cenografia: Paul Steinberg
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Roupas: Brigitte Reiffenstuel
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Luz: Adam Silverman
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Coreografia: Maxine Braham
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Responsável pela reposição: Ian Rutherford
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Peter Grimes: John Graham-Hall
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Ellen Orford: Emily Newton
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Balstrode : Jonathan Summers
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Auntie: Rebecca de Pont Davies
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Primeira Sobrinha: Bárbara Barradas
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Segunda Sobrinha: Mariana Castello-Branco
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Bob Boles: James Kryshak
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Swallow: Graeme Danby
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Mrs. Sedley: Maria Luísa de Freitas
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Reverendo Horace Adams: Carlos Guilherme
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Ned Keene: João Merino
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Hobson: Nuno Dias
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Orquestra Sinfónica Portuguesa
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Coro do Teatro Nacional de São Carlos Dir:
Giovanni Andreoli
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Produção: English National Opera ENO (Londres 2013)
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Co-produção: Vlaamse Opera (Gand/Antuérpia); Ópera de
Oviedo; Deutsche Oper (Berlim).
A história de Peter Grimes é um exorcismo da opressão: mistura de ode ao
carácter opressivo da insularidade britânica cruzado com a natureza também
opressiva das pequenas comunidades em relação a tudo o que é diferente. O mar e
o álcool são portanto os ingredientes maiores desta tragédia em que tudo se
desenrola num contexto de marcada nostalgia cuja poesia intrínseca a música de
Britten tão generosamente expõe.
A esta realidade factual David Alden sobrepõe inteligentemente um segundo
nível de leitura, supostamente mais profundo. Nesse segundo nível as motivações
do inconsciente e os mecanismos ocultos dos personagens e seus contextos são
cruamente expostos no quadro conceptual de uma psicanálise de pacotilha.
Mas para o sucesso de uma proposta intelectualmente tão aliciante, aliás
atributo frequente do trabalho deste encenador, seria necessário que o trabalho
dramatúrgico se traduzisse na criação de um verdadeiro espaço teatral único,
que é muito mais do que o simples efeito da manutenção de uma cenografia
homogénea e coerente ao longo da obra.
E se é claro que aquela criação poderá ter sido a intenção do encenador, a
evidência que nos foi dada é que esta solução cenográfica, que deveria servir
para o aprofundamento da vivência dos conflitos e problemas que nos são
apresentados no libreto, não resulta sob tal perspectiva.
É certo que estivemos a ver uma produção que nos chega pela mão de Ian
Rutherford, e na qual portanto a participação directa do encenador não terá
existido. Mas se esta circunstância pode ajudar a justificar alguns problemas
menores, ela não chega para explicar o sucedido.
De facto, para a criação de um espaço teatral único seria necessário que
tivesse sido conseguida a fusão dos dois níveis de leitura, o realista
suportado nas palavras e nas notas da obra escrita, e o fantástico idealmente
decorrente da análise desses elementos, pelas opções dramatúrgicas e plásticas
da encenação.
Tal não sucedeu porém aqui, e o resultado deste exclusivo trabalho a nível
da cenografia fez aparecer no final o conjunto como uma proposta
esquizofrénica, em que alguns momentos de intenso realismo, como a cena
terminal, contrastam violentamente com outros de perfeito delírio surrealista,
sem que seja possível estabelecer entre ambos um nexo de associação ou de
causalidade que de algum modo os unifique e lhes confira alguma coerência.
Sinais desta duplicidade são por exemplo os momentos histriónicos do coro,
globalmente muito bem trabalhado na excelente coreografia de Maxine Braham, mas
deixado a nível individual ao bom critério dos coralistas, disso resultando
momentos contraditórios e mesmo ridículos, ou ainda a géstica marionetista das
duas sobrinhas nas cenas de realismo, resquícios do seu comportamento nos
momentos de desmando surreal.
Como acontece com frequência uma ideia brilhante acaba aqui por ser
desbaratada na sua operacionalização devido à ausência de uma unidade
conceptual estilística. Trata-se portanto de um problema que é intrínseco a
esta proposta global de David Alden, sendo aliás recorrente no percurso
profissional deste encenador.
Curiosamente a orquestra demonstrou idêntico comportamento esquizofrénico,
desta vez não por culpa da direcção de Graeme Jenkins, muitíssimo empenhada,
mas sim como claro resultado da sua impreparação para a tarefa expressiva,
consequência da sua inexistência virtual enquanto agrupamento sinfónico.
Não há milagres, e todos sabemos que um conjunto de instrumentistas, mesmo
recheado de óptimos executantes, não é sinónimo de uma orquestra. A música de
Britten surgiu assim como um puzzle mal montado, em que as várias peças foram
justapostas mas sem o cuidado necessário para que as junções se tornem
invisíveis ao primeiro olhar: a ondulação do mar, omnipresente no tecido
sonoro, esteve ausente.
Se este desempenho não foi problemático na sucessão da diversidade
estilística da ópera, e se os momentos de tempestade ou furor puderam soar
apesar de tudo aceitáveis, foi deplorável ver como os esforços do director nos
momentos de mais intenso lirismo não conseguiram qualquer tradução a nível do
som.
Em aparente contraste com este problema, o desempenho global no que
respeita às vozes foi um dos pontos positivos do espectáculo.
O coro, quiçá como resultado colateral do trabalho coreográfico que lhe foi
exigido, emergiu da rotina funcionária em que tem estado mergulhado e
ofereceu-nos alguns momentos de grande qualidade. Quanto aos cantores, deve
realçar-se a grande segurança e à vontade de Bárbara Barradas, muito melhor
tecnicamente do que em prestações anteriores, e em vias de se tornar uma das
principais intérpretes líricas nacionais.
Já no respeitante ao desempenho dramático não poderá dizer-se o mesmo: os
gestos estiveram todos lá, mas tudo soou dramaticamente como um postiço, sem
profundidade, revelando um trabalho de actores inexistente ou insuficiente.
Em todo o caso porém, e sobretudo por servir para nos revelar de uma forma
menos convencional uma obra pouco conhecida entre nós, o espectáculo pode
considerar-se como uma pedra positiva no percurso final do desolador jardim da
temporada que agora termina.
JAM 06/06/2017
Também assisti a uma récita. Confesso que não é uma das minhas óperas favoritas.
ResponderEliminarTenho sentimentos ambivalentes em relação à encenação. Nas partes mais realistas gostei, mas as outras foram autênticos delírios sem nexo.
Quanto aos cantores houve uma qualidade muito aceitável e homogénea, o que é de assinalar e louvar porque é raro acontecer no nosso teatro de ópera.
O coro esteve muito melhor do que nos ofereceu em obras anteriores.
De entre os solistas salientaria John Graham-Hall que fez um Peter Grimes muito bom tanto vocal como cenicamente; Emily Newton também esteve bem como Ellen Orford, embora no registo agudo tivesse alguma tendência para a estridência; Jonatham Summers foi um Balstrode de qualidade. De entre os portugueses, sem dúvida que a melhor foi a Bárbara Barradas. Concordo que tem todas as condições para ser uma das nossas grandes intérpretes nos próximos tempos.
Caro Fanático_Um, terá certamente compreendido que também eu tive esses sentimentos de ambivalência em relação ao espectáculo.
EliminarE somos nós que temos razão, e não o encenador, que não conseguiu resolver bem a fractura introduzida pela sua opção dramatúrgica. A utilização de um cenário homogéneo não chega para conseguir a unidade necessária para nos fazer, enquanto espectadores, aceitar sem sobressaltos aquela opção.
E na ausência dessa proeza, o resultado é o que se viu. Outras propostas de David Alden revelam também esta característica: trata-se de um encenador inteligente, capaz de nos lançar desafios intelectuais estimulantes, mas depois na concretização aparecem frequentemente falhas que tornam esses desafios causas perdidas.
E é pena, pois escasseiam os encenadores dignos desse nome na cena operática actual.
JAM