Assisti, no dia 9, à primeira das duas récitas do “Tristan
und Isolde”, inseridas na temporada lírica de 2016/2017 do Teatro Nacional de
São Carlos.
A récita teve lugar no Centro Cultural de Belém e repete no
dia 12, pelas 15 horas.
As expectativas eram elevadas, por um conjunto de factores,
que enuncio sem preocupação de hierarquização.
Em primeiro lugar, por se tratar de uma das mais importantes
óperas de todos os tempos, cuja novidade musical e conceptual constituiu um
verdadeiro marco que serve de fronteira delimitadora do que veio antes e do que
veio depois.
Em segundo lugar, porquanto já não era ouvida no TNSC, em
versão encenada, desde Janeiro de 1985 (em 2003 foi apresentada em versão de
concerto, sob a batuta de Zoltán Peskó, segundo informação constante do programa
de sala), o que é um lapso temporal anormalmente longo para uma obra seminal na
história da arte lírica.
Em terceiro lugar, porque contava com a Isolde de Elisabete Matos, estrela maior do
panorama lírico português e internacional.
Em quarto lugar, porque é uma das óperas do meu top 5.
Embora com menor grau de importância, também tinha alguma
curiosidade em perceber como funcionaria uma ópera no CCB.
A encenação
Nesta produção, a encenação e cenografia estiveram a cargo
de Charles Edwards, com figurinos de Susan Willmington e desenho de luz de Giuseppe
Di Iorio.
Trata-se de uma nova produção do TNCS, em parceria com o
CCB, como informa o programa de sala.
Embora toda a cenografia e figurinos tendam para uma dimensão
abstracta, a encenação é bastante fiel à narrativa, não pretendendo apresentar
uma visão alternativa e muito menos subversiva do significado primário do
drama. Ao invés, toda ela assenta na oposição permanente entre a luz e a
escuridão, entre o dia e a noite, que constitui um dos elementos centrais do
discurso dos amantes, aqui corporizada em cenários onde as zonas brancas e as
zonas pretas se encontravam estritamente delimitadas, embora confinantes.
Contraste que se prolongou nas indumentárias de Isolde e Tristan:
ela sempre de negro e ele essencialmente de branco (excepto quando enverga o
casaco da marinha). A quebrar essa dicotomia, apenas um lenço verde de Isolde, suponho
que numa alusão às suas origens irlandesas.
No 1º acto vemos o interior do barco, num corte longitudinal.
Isolde e Brangäne no lado esquerdo, numa zona toda ela branca, pontuada pela
presença de inúmeras cadeiras encostadas às paredes e dispersas pelo espaço (o
que me fez lembrar o cenário do Café
Müller, de Pina Bausch). Na parede, uma escotilha permitindo ver o mar. No
centro do espaço, um esquife em madeira tosca, transmitindo, penso, a ideia de
um barco que conduz Isolde em direcção à sua morte. Separado por uma parede
transversal com uma porta, o lado direito do barco, todo em preto, o escritório
de Tristan, onde este, em mangas de camisa branca e numa postura algo
titubeante, aguarda sentado à frente de uma secretária coberta de papéis
soltos, simbolizando talvez a confusão e desordem em que os seus sentimentos se
encontram.
Em cima da linha divisória entre as zonas branca e preta, o
baú contendo os filtros, designadamente a poção da morte e a do amor. Poção
esta que irá desencadear a tensão entre esses dois mundos e que permitirá o seu
franqueamento pelos amantes.
No 2º acto, mantém-se a estrita demarcação entre as zonas
branca e preta, embora agora sem a parede divisória. Aparentemente, os amantes
já ultrapassaram uma das barreiras que os separavam, embora ainda subsista uma
zona de fronteira, a da não consumação do amor, representada por uma faixa de
luz branca e pura, engenhosamente desenhada pelo jogo de luzes.
Pela abertura redonda, que antes serviu de escotilha do
barco, vemos agora o negrume da noite. Durante o dueto de amor, por passam
Melot e o Rei Marke, ilustrando os avisos de Brangäne.
Aspecto que me pareceu menos bem conseguido foi a harpa
irlandesa que Tristan indolentemente dedilha enquanto Brangäne adverte os
amantes, que me pareceu não trazer nada de novo e não desempenhar qualquer
função útil.
Um outro aspecto me suscitou, durante a récita, alguma
perplexidade: o traçar de uma cruz na parede por Isolde, debaixo da qual os
amantes se juntam durante a parte final do dueto. A evidente referência cristã
pareceu-me algo deslocada na altura. Todavia, depois de ter reflectido um pouco
sobre o assunto e na sequência da leitura do interessantíssimo texto de Yvette
Centeno, constante do programa de sala, creio ter aí percebido a subtil
referência às feridas de Tristan (a primeira, desferida por Morold, a segunda
por Melot), que marcaram o primeiro encontro dos amantes e, a final, a morte
deste e a sua separação em vida, e a ferida de Cristo na cruz, produzida pela
lança de Longinus.
No terceiro acto, o cenário manteve a tónica da oposição
entre o branco e o preto. Tristan, deitado no sofá onde os amantes haviam
cantado o dueto de amor do acto precedente, agoniza envolto no manto verde de
Isolde, manchado de sangue. Sofá que se encontra colocado em cima de uma
superfície branca, como que a simbolizar a luz do dia que continua a cercar o herói
ferido e caído. O restante palco é todo negro, pontuado apenas por uma cadeira
ao fundo onde o pastor irá ficar sentado, vigiando o mar. À direita, um
compartimento, em cuja parede negra se podem ler, traçadas a vermelho, como que
com sangue, diversas palavras que ecoam ao longo de toda a ópera: liebe, licht,
weise, ewig, tod, wahn, sehnen, Isolde, pein, Vater+Mutter. No seu interior, a
porta que lhe dá acesso caída no chão, por cima de uma estátua de uma santa
(Maria?), cujo significado me pareceu ambíguo. Representaria a transcendência e
a pureza do amor? a consumação isenta de pecado? Ou, ao invés, a apologia de um
amor integral, através da negação da mulher enquanto simples objecto de
adoração, aqui representado por uma estátua caída e quebrada? Confesso que não
consegui chegar a nenhuma conclusão.
No final, o encenador opta por um Liebestod que, mais do que
a morte de Isolde, é o momento do encontro extra-terreno dos amantes, após a
sua morte.
Em suma: uma encenação que, não sendo original nem
pretendendo contribuir interpretativamente para uma nova visão da obra, serviu
fielmente a música e a acção dramática, sem prescindir de alguns elementos
interessantes a suscitar a reflexão do público.
A direcção musical
A Orquestra Sinfónica Portuguesa foi dirigida por Graeme Jenkins.
Num tempo bastante lento, a orquestra começou um pouco
titubeante e com os naipes orquestrais algo desgarrados. Com o avançar da obra,
porém, o desempenho orquestral foi subindo de nível, sendo de destacar a
notável intervenção do corne inglês no início do 3º acto, que esteve perfeito.
Não posso dizer que tenha ficado muito impressionado com a
prestação do maestro, que me pareceu rotineira e pouco inspirada. Para além de
ter permitido alguns excessos dinâmicos nos metais, a submergir completamente
as vozes dos cantores, o principal “pecado” que senti foi o pouco envolvimento
emocional da orquestra, a pouca incandescência, a frequente quebra de tensão
dramática.
Os cantores
Elisabete Matos é
a grande cabeça-de-cartaz desta nova produção e creio que justificadamente.
Creio que esta foi a melhor prestação que lhe ouvi, com envolvimento dramático
muito bem conseguido, espelhando perfeitamente todo leque de emoções que
atravessam a personagem. Não senti, da mesma forma que em ocasiões anteriores,
problemas de vibrato demasiado largo. A voz esteve sempre focada, segura no
registo mais grave e com assinalável facilidade no registo agudo, embora
ocasionalmente com alguma estridência e dureza nos picos.
Embora cenicamente não tenha gostado muito da opção do
liebestod (não da ideia, mas da concretização, em especial por estarem ambos
sentados no sofá), Elisabete Matos esteve bastante bem, com controlo emocional
forte e acentuando mais a componente de êxtase e de transfiguração do que a
dimensão orgástica desse momento culminante de toda a ópera.
Não conhecia o tenor norte-americano Erin Caves, que foi uma excelente descoberta. O papel de Tristan é
quase sobre-humano e exige não só uma excelente técnica vocal, como uma
inteligente gestão do esforço e da voz. Exibiu um timbre sonoro, claro,
límpido, com boa projecção vocal e assinalável potência. Não se poupou
excessivamente no dueto de amor (notando-se até uma pequena falha da emissão na
sua parte final), o que me causou alguma apreensão sobre como iria decorrer o 3º
acto. Todavia, levou de vencida essa dura prova em bom nível, apenas se notando
já um cansaço evidente da voz a partir do O
diese Sonne!
O baixo islandês Kristinn Sigmundsson esteve excelente. A sua voz é profunda,
cheia e ressonante, de sonoridade nobre; a sua figura gigantesca e imponente
adequa-se perfeitamente ao papel do Rei Marke. No longo monólogo do 2º acto, em
que surgiu como uma figura fragilizada, em robe
de chambre e de pantufas, a sua voz soou marcada pelo azedume, pelo
ressentimento, com inflexões irónicas. Não foi o Rei Marke magoado mas nobre e
contido que por vezes se ouve noutras interpretações; essa vertente surgiu,
sim, na sua intervenção do final do 3º acto, onde a dor se fez sentir, mas sem
perda de gravidade.
O papel de Brangäne
foi interpretado pela meio-soprano australiana Catherine Carby. A sua
voz soou quente e texturada, fazendo um interessante contraste com Elisabete
Matos. Sempre envolvida dramaticamente, cantando com dinamismo, teve o seu
momento mais alto, na minha opinião, na primeira intervenção admonitória
durante o dueto de amor (Einsam wachend
in der Nacht), que soou etérea.
Luís Rodrigues
foi um Kurwenal generoso e caloroso. Para mim, Luís Rodrigues é um cantor
extremamente sólido e polivalente, sendo sempre garantia de alta qualidade
artística. E mais uma vez o demonstrou. No 1º acto foi adequadamente
“provocador” sem ser chocarreiro; no 3º acto foi lírico e desesperado,
culminando no seu suicídio com a espada de Tristan. A voz foi sempre muito bem
projectada e audível e a prestação cénica impecável.
Marco Alves dos Santos cantou adequadamente o antipático papel de Melot, o mesmo se podendo
dizer das intervenções de João Terleira como pastor e João Oliveira
como timoneiro.
Uma nota negativa
para o grande auditório do CCB: estando eu no 1º balcão, senti de forma
anormalmente alta um ruído de fundo permanente e intrusivo, suponho que do ar
condicionado ou de sistema de arrefecimento dos projectores. Creio que é
injustificável um tal nível de ruído.
Também me pareceu uma má opção a realização de um intervalo de uma hora entre o 2º e o 3º acto, por ser excessivamente longo, quebrando a unidade da obra e atirando o seu final para muito tarde, em especial num dia de semana.
Em suma, na minha
opinião foi uma récita de qualidade artística bastante elevada e que valorizou
a presente temporada do Teatro Nacional de São Carlos.