De José António Miranda, colaborador habitual do "Fanáticos da Ópera" fica mais um magnífico texto, como sempre acontece, este sobre a ópera Acis and Galatea.
24/02/2017 Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa)
ACIS AND GALATEA (Georg Friedrich Händel)
Ópera
em três Actos (1718) (Versão WA Mozart 1788)
Libreto:
John Gay, Alexander Pope e John Hughes, a partir da tradução inglesa das Metamorfoses de
Ovídio, por J. Dryden
§ Direcção
musical: Leonardo García Alarcón
§ Acção Cénica: Marie
Mignot
§ Luzes: Luís Fradique e
Marie Mignot
§ Roupas e adereços: Bárbara
Magalhães
§ Máscaras: Tiago Serpa
§ Galatea: Ana Quintans
§ Acis: Marco Alves dos
Santos
§ Polyphemus: André Henriques
§ Damon: João Miguel Rodrigues
§ Coridon: João Terleira
§ Orquestra Gulbenkian
§ Coro Gulbenkian
Dir: Jorge Matta
§ Produção: FCG
O
amor de Acis e Galatea. Nicolas Poussin, 1630
Por
mais estranha que tal afirmação possa parecer aos mais incautos não é possível
deixar de reconhecer que o espectáculo apresentado agora na sala grande da FCG
foi provavelmente o melhor espectáculo de ópera visto até ao momento em Lisboa
na presente temporada.
E
a estranheza compreende-se pois se tratou da negação do paradigma habitual
entre nós no que respeita à cena lírica.
Em
primeiro lugar o Grande Auditório não tem condições materiais que permitam a
apresentação de verdadeiros espectáculos de ópera encenada. Complementarmente,
a ênfase da programação musical da Fundação não está colocada no espectáculo
lírico. Para além de tudo isto, e contrariamente ao que sucede frequentemente
nesta sala e é hábito no escasso circuito operático nacional, o elenco de
cantores era constituído exclusivamente por vozes portuguesas. Três heresias
portanto.
Pois
não obstante estes aparentes constrangimentos pudemos mais uma vez assistir à
demonstração de que a escassez de recursos apenas serve de justificação
para a falta de qualidade quando a mediocridade impera e a inteligência não sobra.
Felizmente
para nós tal não foi o caso desta vez e neste local. Tentemos portanto ver
porquê.
A
sala da FCG não serve para ópera encenada, é um facto reconhecido. E por tal
razão temos sido periodicamente brindados com aquilo a que os programadores de
serviço denominam ópera semi-encenada.
Esta
infeliz designação, que tem sido usada nos últimos anos para a
apresentação na FCG de um conjunto de espectáculos líricos com qualidade muito
heterogénea, foi também neste caso a proposta para o espectáculo.
Ora
nesta área é particularmente difícil traduzir quantitativamente as propostas
apresentadas. Quando isso é feito apetece-me sempre perguntar porquê
semi-encenação, e não dois terços, ou um quarto, por exemplo.
Porém
a designação é o que menos importa. De facto, se encenar ópera fosse apenas
separar a orquestra da cena e dispor nesta os outros intérpretes (cantores,
actores, bailarinos) e um conjunto de dispositivos cenográficos habitualmente
utilizados em teatro, seria talvez mais fácil quantificar.
Mas
o espectáculo lírico é algo mais do que um somatório de recursos: a ópera
é música e são palavras em teatro, e este acontece ou não
independentemente dos suportes ou contextos disponíveis, como resultante de um
conjunto de variáveis qualitativas cuja caracterização não é passível de ser
feita simplesmente de modo quantitativo.
Ora
neste caso podemos afirmar sem qualquer dúvida que aconteceu teatro no palco do
Grande Auditório. E portanto pudemos assistir a um magnífico espectáculo de
ópera, provavelmente o melhor apresentado naquele local desde o extraordinário
acontecimento que constituiu, curiosamente também no dia 24 de Fevereiro mas em
2014, a apresentação de Dido e Eneias sob a direcção
de Teodor Currentzis.
O
mérito caberá em primeiro lugar à responsável por aquilo que o programa
denomina em acordês “ação cénica” e eu chamaria concepção cénica. Maria Mignot
colocou os elementos da orquestra no centro do espaço disponível fazendo o coro
e os cantores solistas deambular em seu redor ao serviço das necessidades
expressivas da obra.
Desse
modo, e utilizando apenas como dispositivos complementares um elemento
cenográfico em forma de grande portal vegetal que deixa ver em fundo quando se
queira o verde dos jardins da fundação, a encenadora conseguiu ultrapassar a
ausência de fosso sem com isso transformar o espectáculo numa simples
apresentação concertística da ópera. Uma proeza.
Para
tal contribuiu também de forma decisiva o trabalho de direcção musical de
García Alarcón. Na verdade e por força desse trabalho a orquestra não
adoptou o comportamento voyeurista tão frequente nestas
situações, com os instrumentistas distraídos com o que se passa em cena e o
consequente e inevitável reflexo a nível da sonoridade global.
Pelo
contrário, e de modo algo contrastante com a rotina da orquestra, vimos grande
empenho expressivo em múltiplas execuções individuais, traduzido
naturalmente em verdadeiras interpretações veiculando a grande carga emotiva da
partitura.
Para
esta vivência intensa da ópera no palco centralizado pelo conjunto instrumental
contribuiu claramente também o desempenho cénico dos intérpretes vocais, de
grande sobriedade mas simultaneamente intenso rigor expressivo, transformando
cada momento num vibrante espectáculo lúdico.
O
uso inteligente da luz e a discreta qualidade dos escassos adereços utilizados
completaram este quadro idílico. Mas a cereja em cima do bolo foi a qualidade
dos desempenhos vocais.
Polyphemus observa Acis e Galatea. Auguste Ottin, Fontaine de Medicis,
Jardins du Luxembourg, Paris
Ana Quintans fez mais uma vez a
demonstração de um facto cuja confirmação é desde há muito desnecessária:
trata-se da melhor soprano portuguesa em actividade. Um instrumento de timbre
belíssimo utilizado com superior domínio técnico e a sua capacidade expressiva
ímpar constituíram mais uma vez os elementos chave que garantem que as
intervenções desta solista nos proporcionam a nós, felizes espectadores da sua
plena maturidade interpretativa vocal, momentos de grande prazer. Um sonho
cujo ponto culminante aconteceu na ária final, Heart, the seat of soft
delight !
André Henriques já não é, felizmente, uma
revelação, pese embora a sua juventude. A sua prestação como Polyphemus apenas
confirmou o que já reconhecíamos desde a sua aparição no Ateliê de Ópera da
Metropolitana. Trata-se de um cantor dotado de um timbre muito belo, grande à
vontade cénico e técnica perfeita, uma voz grande e extensa conjugada com
evidente naturalidade dramática, neste caso postos à prova com muita mestria e
grande sucesso no difícil papel que lhe coube.
A
verdadeira surpresa da noite veio porém da participação de Marco Alves dos Santos, um tenor com uma carreira ascendente entre
nós mas até aqui algo indefinida estilisticamente. E para quem tenha seguido
até aqui essa carreira, foi uma verdadeira revelação apreciá-lo neste
repertório pela beleza do timbre, a fluidez de emissão, a segurança cénica,
compondo um Acis de grande qualidade. Ficamos portanto atentos e expectantes em
relação ao seu futuro depois desta actuação ímpar.
João Rodrigues e João Terleira estiveram também em bom nível. Mas o grande elemento
aglutinador deste belíssimo espectáculo foi o coro, irreconhecível na
sua prestação de natureza superlativa, para mais neste caso investido de
uma participação dramática cénica que desempenhou com grande rigor e
expressividade: uma pequena maravilha o resultado do trabalho de Jorge Matta!
Leonardo García Alarcón não dispunha aqui da sua
“Capella Mediterranea”, mas de facto conseguiu transformar a orquestra
numa unidade expressiva de grande qualidade, visível particularmente no segundo
acto.
E
deste modo, numa sala que não é feita para ópera, com escassos recursos
cenográficos, recorrendo a uma orquestra que não é especialista em repertório
lírico, e apenas com a contribuição de intérpretes (coro e solistas) nacionais,
se escreveu o que foi provavelmente, repito, o melhor espectáculo de
ópera visto até ao momento em Lisboa na presente temporada. Uma lição!
JAM
26/02/2017
Ena !
ResponderEliminarFoi um gosto ler, Fanático_Um, obrigado.
Completamente de acordo. Foi o melhor espectáculo da temporada até agora.
ResponderEliminarTal como já dito acima, foi um gosto ler o texto de JAM ou de Fanático_Um. Logo após a 2ª récita foi aqui publicado uma outra crítica talvez menos efusiva. Penso que este 2º texto faz jus àquilo que vimos na récita de Sexta Feira 24/Fev/2017 e traduz o que decerto muitos gostariam de dizer. Obrigado ao autor deste texto. O Coro esteve de facto sublime, e Ana Quintans superlativa, e concordo que muito possivelmente foi o melhor desta temporada em Lisboa até ao momento. O texto de JAM está estruturado de forma excelente, abordando logo ao início alguns mitos que foram desfeitos. Apenas gostaria de expandir o argumento feito, elevando a comparação até ao nível internacional. Assisti a muitas récitas no Reino Unido (na verdade, na Inglaterra) de óperas e oratórias de Händel, e esta na Gulbenkian superou o nível que existe nas cidades Inglesas, à excepção de Londres. Na verdade, o repertório acessível fora de Londres (e talvez Manchester, mas mesmo assim...) e que é maioritário nas cidades universitárias, em especial nas duas "Oxbridge", é muito focado nas inúmeras operas de Händel, quase certamente por motivo da língua. É que quando saem do Händel muitas vezes será por vir a English Touring Opera com versões traduzidas (para Inglês) de Mozart, Verdi, Donizetti,... (com uma significativa indústria de traduções de liberettos). Depois lá retornam aos originais de Handel, ou de Purcell, ou algum Britten, ou os recorrentes Gilbert and Sullivan. Longe portanto (dir-se-ia até um pouco claustrofófico - fora de Londres) do que se pode aceder nas "vilas" pela Alemanha e Itália ou Europa de Leste, incluindo os três países Bálticos (por preços muito mais baixos). Mas o empenho e experiência em abordar Händel no "UK" é por isso enorme e estabelece um certo padrão. Mas o que Lisboa teve acesso foi... melhor! (E, neste caso, a preços de países Bálticos, diga-se.) Foi pena ter havido alguns lugares ainda disponíveis no grande auditório (récita da Sexta Feira às 19h) pois foi porventura o melhor da temporada em Lisboa até à data.
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