A ópera Elektra
que Richard Strauss estreou em
Dresden a 29 de Janeiro de 1909 foi apresentada numa nova produção e com elenco
de luxo na Wiener Staatsoper (WSO). Trata-se
de uma ópera trágica num único acto com libreto de Hugo von Hofmannsthal cuja acção se passa em Micenas imediatamente
após a Guerra de Tróia. Drama intenso de vingança, ódio e intriga, de contemporaneidade
eterna, é uma ópera de sempre e para sempre.
A música está para além do moderno e foi
composta de modo muito arrojado para uma orquestra de 111 instrumentos. Esta
funciona como um dos elementos essenciais para que a ópera possa desmultiplicar-se
em tonalidades, inventar-se em caleidoscópicos cromatismos e criar-se em dissonâncias.
Exige por isso uma capacidade musical e interpretativa de excelência aos
músicos. Acresce que, à sua imensa expressividade, é acompanhada por um libreto
que permite o desenrolar da acção trágica com uma intensidade dramática difícil
de encontrar e que obriga a explorar ao máximo a capacidade técnica dos cantores.
Elektra, personagem central e quase omnipresente, é levada a um extremo doentio
que só um soprano dramático estratosférico consegue criar de modo credível e
vocalmente elegante. É, pois, uma obra fantástica e fundamental da história da
música do século XX.
A nova produção da WSO esteve a cargo de Uwe Eric Laufenberg.
E foi precisamente aqui que começou a polémica. Os austríacos não permitem que
se maltrate o seu bem-amado Strauss.
A encenação é objectivamente má. O cenário é escuro, sombrio, húmido. É uma
casa, um armazém, um espaço de aspecto abandonado. Em ambos os extremos, uma
parede de azulejos velhos e cinzentos, ao jeito de balneário. Á esquerda, por
trás da parede, um amontoado de carvão acentua a escuridão do cenário e a ideia
de sujidade. À direita, um duplo elevador panorâmico percorre três andares. No
da esquerda, a palavra «Totet» (mortes) mancha de sangue o elevador. É aqui
decorre a acção.
Enquanto criadas vestidas austeramente de cinzento comentam o
comportamento estranho de Elektra, várias mulheres nuas e indefesas são
banhadas com mangueiras pelas criadas que assumem uma postura repressora, empurrando-a
contra a parede. Parecia o banho que os nazis davam aos judeus antes de os
fazerem entrar para aquela hedionda invenção que foi a câmara de gás. Elektra,
muito andrógina, surge de fato escuro, desajeitada e estranha. Chrysothemis vem
vestida de branco e toma uma postura mais jovial e inocente. Mas sem mistério. Clytemnestra
vem com um penteado com rolinhos e, apesar da sua manifesta inferioridade
física por vir sentada numa cadeira de rodas, assume um estilo empertigado e
desafiante. Os elementos cénicos são pobres. Alguns jogos de luzes evidentes,
uma mala rectangular de couro onde Elektra se senta, mas que nada transporta de
relevante, que nada desvenda.
Os assassinatos são cometidos nos elevadores,
enquanto corpos ensanguentados sobem e descem freneticamente. No fim, na cena
final de Elektra, surgem bailarinos aos pares que dançam. Elektra une-se a
estes. Dança e desaparece numa correria no fundo do palco sob o olhar da irmã
que, ao canto, parece não compreender o que se passa. E a ópera acaba sem que
ninguém perceba para que foi isto, destituída de coerência ou de inovação, vazia
de genialidade. O público vienense — habitualmente simpático — fê-lo notar com
uma valente vaia aos encenadores que poderão ver no vídeo final (6:55). Eu nunca havia
ouvido tal, mas creio que foi merecido. Aqui imperou a decepção e o
desinteresse.
A Orquestra da WSO foi dirigida por Franz Welser-Möst. Mas também a sua interpretação decepcionou. Dura
e constantemente em forte, pouco amigável para os cantores (mas não se notou!),
sem fazer brilhar os cromatismos fundamentais desta partitura, sem elegância e
desmultiplicação de sons, a interpretação nunca fez jus à genialidade de
Strauss. O público também o fez notar ao maestro, ainda que com menos
impetuosidade (6min:20s).
Falk Struckmann fez de Oreste. Vestia-se de sobretudo e assumia, com a sua
elevada estatura, uma postura austera e distante. Ordena o assassinato com
frieza e desaparece. A encenação creio que o diminui vocalmente, conquanto
tenha sido competente e agradável ao ouvido.
Anne
Schwanewilms foi uma Chrysothemis vocalmente brilhante. Voz potentíssima,
sempre sobre a orquestra, agudo cristalino e com excelente expressividade.
Interpretação global de excelência.
O mesmo se pode dizer da Clytemnestra
de Anna Larsson. Vocalmente muito
intensa, sem falhas, e cenicamente arrogante e ao mesmo tempo indefesa e cheia
de dúvidas, atormentada pelo seu passado, o que é representado pela sua
diminuição física: está em cadeira de rodas. Outra grandíssima interpretação.
Para o fim, como de costume, o
melhor. Nina Stemme. Dois nomes de
uma soprano estratosférica. Como o papel exige. Voz sublime de agudos pontudos,
cristalinos, com uma coluna de som inacreditável, técnica perfeita, tessitura
óptima, graves escuros, sombrios, pesados. Nem um único grito, nem uma
estridência a mais. Intensa, doentia, neurótica, vingativa, fria e quente ao
mesmo tempo. Uma Elektra de arrepiar na cena final. Em tudo mais-que-perfeita e
ao nível de — até mesmo a ofuscar um bocadinho — Birgit Nilsson. Marcará uma
era neste papel. Os 25 minutos de aplausos não foram à toa.
E eu tive o privilégio de ouvir
ao vivo aquela que é uma das melhores interpretações de sempre do papel de
Elektra, daquelas que apagam da memória uma encenação que se perde nos
circuitos fantásticos da memória indelevelmente marcados por Nina Stemme.
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