Luis Fernando Neumann,
de Niteroi, teve a gentileza de nos enviar há poucos dias uma apreciação da
Valquíria do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Muito obrigado pelo texto
que, agora, fica acessível a todos os leitores deste espaço. Aqui o publicamos
na íntegra:
Estive na Valquíria
do Theatro Municipal do Rio de Janeiro no
último 17 de julho. Casa cheia mas não lotada em contradição com a faixa
“lotação esgotada” pregada no cartaz à frente do Municipal... Ao que parece, os
cambistas também gostam de ópera!
Essa foi minha segunda Valquíria, mesma montagem mas músicos
e orquestra diferentes da primeira, A Valquíria do Municipal de São Paulo, dois
anos atrás.
As impressões de agora, são mais críticas e menos moldadas
pela emoção do primeiro Wagner ao vivo.
De antemão, posso dizer que gosto dessa proposta desse “Anel
Brasileiro” entretanto parece faltar um fio condutor que realmente una
Valquíria e Crepúsculo dos Deuses. A conferir no próximo Ouro do Reno.
Assisti essa etapa do Anel no anel superior do Municipal com
visão simultânea do palco e do fosso da orquestra. Entendi a razão de Wagner
“esconder” a orquestra em Bayreuth. As luzes que iluminam os estandes das
partituras dos músicos são como cantos de sereia e atraem o olhar e competem
com o palco. Ponto ruim. Existe, claro, outro lado. É sempre gratificante
acompanhar determinada passagem orquestral olhando para a orquestra, ver que o
tema está nos cellos e contrabaixos...
A abertura da peça continua impactante. As oscilações dos
cellos e baixos são acompanhadas por chamas oscilantes daqueles que caçam
Siegmund.
Siegmund entra com a cara pintada como um palhaço de circo,
uma sugestão, demasiadamente direta
talvez, dele ser um joguete dos deuses. Com a evolução do ato e o crescimento
do seu personagem, a maquiagem é removida aos poucos. Entretanto, tal recurso
cênico contaminou o cantante. Em momento algum, por expressão facial e/ou
gestual corporal, Zvetan Michailov
transformou-se no herói. Permaneceu um palhaço ou ainda um caixeiro viajante
(roupa e barriguinha...) que bateu na casa errada nesse ato, foi escorraçado e
quase mija nas calças no segundo ato. Um contraste imenso com a imensa presença
cênica de Sávio Sperandio que vocal,
gestual e facialmente foi um esplêndido Hunding. Eiko Senda proporcionou uma muito satisfatória Sieglinde. O gestual
e voz transmitiram perfeitamente as oscilações de humor da personagem.
O primeiro ato é o menos brasileiro desse “Anel Brasileiro”.
Digo isso por ignorância, desconhecimento de algum elemento cultural brasileiro
que se compare com a simbologia nórdica que está no palco. No centro do palco
está Yggdrasil (quase YggBrasil...) a árvore (ou o freixo ou ainda o teixo) do
mundo. Aqui, parece ter havido uma correção em relação à encenação do Municipal
de São Paulo, onde a ação do primeiro ato se passava em frente às raízes de
Yggdrasil. Suas raízes (o reino dos Nibelungos) e topo (Asgard e/ou Valhall,
reino dos deuses) não pouco visíveis, uma mera sugestão. Vê-se apenas o centro
da árvore (Midgard, lugar dos homens, nosso lugar). Em algum lugar desse tronco
central, está cravada uma espada, infelizmente pouco visível mesmo quando o
drama exige que a espada passe a ser o ponto focal da ação. À esquerda, o
elemento brasileiro, uma mesa com tampo de vidro, como a que tenho em minha
casa...
Na imagem, Sávio Sperandio e Zvetan Michailov.
Na imagem, Eiko Senda e Zvetan Michailov.
Na imagem Eliane Coelho e Licio Bruno
O terceiro ato começa como uma cavalgada, uma folia de reis,
ecos do nosso passado ibérico, mouros e cristãos. A mais brasileira da
cavalgada das valquírias. Belas valquírias, belas vozes, talvez faltasse um
pouco de força para a orquestra, metais principalmente. As valquírias sobraram.
Verushka Mainhard, Daniela Carvalho,
Magda Belotti, Carolina Faria, Maira Lautert, Flávia Fernandes, Marina
Considera e Daniela Mesquita,
belas vozes, bela presença de palco, bela presença feminina. Eu esperava mais
do Leb wohl du kühnes herrliches Kind. A orquestra abafou Licio Bruno que já
mostrava cansaço. E, certamente, excesso de expectativa, culpa das facilidades
atuais de you tube (George London) e/ou DVD, Donald McIntyre... Entretanto, no
anúncio do herói mais livre que o deus, o papel se inverteu. Licio Bruno
soberbo na passagem e falta de pegada heroica da orquestra no tema de
Siegfried.
Quanto à orquestra do
municipal, conduzida por Luiz
Fernando Malheiros foi bem. Eu não tenho ouvido e tampouco experiência para
julgar criteriosamente mas até o final do segundo ato, eu julgava ter ouvido
uma ou outra escorregada da orquestra. No intervalo, uma senhora ao meu lado
que, de tempos em tempos, regia a orquestra em algumas passagens, falou-me,
desalentada, dos metais: “falta ensaio, falta ensaio... Ah esses metais,
desafinaram”. De minha parte, sem ter como criticar de ouvido, critico de
sentimento. Faltou pegada heroica em alguns momentos.
Todas as vozes femininas surraram as vozes masculinas,
impiedosamente. Suas vozes encheram o Municipal, não foram abafadas pela
orquestra e transmitiram corretamente as indicações mentais dos personagens.
Das vozes masculinas, salvou-se Sávio Sperandio, soberbo
como Hunding. Impostação, volume e adequação ao momento que o papel exigia.
Corretíssimo.
Lício Bruno, mesmo baixinho para Wotan (com o perdão da
linha do politicamente correto) compensou cenicamente a inadequação da sua voz
(volume, timbre) para o papel de Wotan.
Já o tenor... Ah, o tenor Zvetan Michailov . Foi um pecado
terem escalado um tenor ligeiro (minha descrição) para um papel que exige um
heldentenor. Não posso falar de desafinação dele. Não tenho ouvido ou formação
para tanto. Todavia, repito o que disse acima. Em momento algum se viu em cena
um heroi. Viu-se um Verkäufertenor, um tenor caixeiro viajante. Faltou postura
tanto facial como corporal para nos momentos onde Siegfried mostra-se o herói
que fora e ainda poderia ser.
Tudo somado, continuo maravilhado com Wagner e com esse Anel
Brasileiro.
Argentina,meets Richard.....
ResponderEliminarNice week-end my friends
Não pude ir ao Municipal. Mas estou contente de ler uma crítica tão bem desenvolvida por um conterrâneo (também sou de Niterói).
ResponderEliminarUm grande abraço
Também gostei muito desta crítica. Naturalmente que quem não assistiu ao espectáculo está muito limitado na apreciação da crítica do crítico (passe o pleonasmo), designadamente no que toca à vertente da apreciação do canto. Mas na parte relativa à encenação e a outras dimensões de um espectáculo de ópera, a questão já não se coloca da mesma forma. Assim, achei muito interessante que, à medida que descrevesse a encenação e o desenrolar da acção, fosse feita uma descodificação simbólica do que ia surgindo no palco, com referência às ideias subjacentes à Valquíria e ao próprio Anel. E quando se consegue fazer essa descodificação e ela faz sentido, é sinal seguro que a encenação cumpriu a sua função de contribuir para uma nova visão da obra ou para o questionamento das interpretações já estabelecidas e não de a ultrapassar e a ela se substituir (como parece suceder a maioria das vezes em muitas encenações dos últimos anos).
ResponderEliminarCumprimentos,
J. Baptista
Lendo a crítica 10 anos depois do espetáculo: eu vi. Justa a crítica, apesar de discordar da encenação, forçada, ao incluir religiosidade brasileira numa narrativa nórdica e sem qualquer traço de religiosidade. É uma luta por poder, com toda a sordidez inerente a esse tipo de luta. Mas o espetáculo valeu. Não me lembro qual récita assisti mas, ao final, dois terços da plateia tinha desistido e ido embora...
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