quarta-feira, 24 de julho de 2013

A VALQUÍRIA /Die Walküre, Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Julho 2013

Luis Fernando Neumann, de Niteroi, teve a gentileza de nos enviar há poucos dias uma apreciação da Valquíria do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Muito obrigado pelo texto que, agora, fica acessível a todos os leitores deste espaço. Aqui o publicamos na íntegra:


 Todas imagens obtidas na página do facebook do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

Estive na Valquíria do Theatro Municipal do Rio de Janeiro no último 17 de julho. Casa cheia mas não lotada em contradição com a faixa “lotação esgotada” pregada no cartaz à frente do Municipal... Ao que parece, os cambistas também gostam de ópera!
Essa foi minha segunda Valquíria, mesma montagem mas músicos e orquestra diferentes da primeira, A Valquíria do Municipal de São Paulo, dois anos atrás.
As impressões de agora, são mais críticas e menos moldadas pela emoção do primeiro Wagner ao vivo.
De antemão, posso dizer que gosto dessa proposta desse “Anel Brasileiro” entretanto parece faltar um fio condutor que realmente una Valquíria e Crepúsculo dos Deuses. A conferir no próximo Ouro do Reno.

Assisti essa etapa do Anel no anel superior do Municipal com visão simultânea do palco e do fosso da orquestra. Entendi a razão de Wagner “esconder” a orquestra em Bayreuth. As luzes que iluminam os estandes das partituras dos músicos são como cantos de sereia e atraem o olhar e competem com o palco. Ponto ruim. Existe, claro, outro lado. É sempre gratificante acompanhar determinada passagem orquestral olhando para a orquestra, ver que o tema está nos cellos e contrabaixos...

A abertura da peça continua impactante. As oscilações dos cellos e baixos são acompanhadas por chamas oscilantes daqueles que caçam Siegmund.
Siegmund entra com a cara pintada como um palhaço de circo, uma sugestão,  demasiadamente direta talvez, dele ser um joguete dos deuses. Com a evolução do ato e o crescimento do seu personagem, a maquiagem é removida aos poucos. Entretanto, tal recurso cênico contaminou o cantante. Em momento algum, por expressão facial e/ou gestual corporal, Zvetan Michailov transformou-se no herói. Permaneceu um palhaço ou ainda um caixeiro viajante (roupa e barriguinha...) que bateu na casa errada nesse ato, foi escorraçado e quase mija nas calças no segundo ato. Um contraste imenso com a imensa presença cênica de Sávio Sperandio que vocal, gestual e facialmente foi um esplêndido Hunding. Eiko Senda proporcionou uma muito satisfatória Sieglinde. O gestual e voz transmitiram perfeitamente as oscilações de humor da personagem.

O primeiro ato é o menos brasileiro desse “Anel Brasileiro”. Digo isso por ignorância, desconhecimento de algum elemento cultural brasileiro que se compare com a simbologia nórdica que está no palco. No centro do palco está Yggdrasil (quase YggBrasil...) a árvore (ou o freixo ou ainda o teixo) do mundo. Aqui, parece ter havido uma correção em relação à encenação do Municipal de São Paulo, onde a ação do primeiro ato se passava em frente às raízes de Yggdrasil. Suas raízes (o reino dos Nibelungos) e topo (Asgard e/ou Valhall, reino dos deuses) não pouco visíveis, uma mera sugestão. Vê-se apenas o centro da árvore (Midgard, lugar dos homens, nosso lugar). Em algum lugar desse tronco central, está cravada uma espada, infelizmente pouco visível mesmo quando o drama exige que a espada passe a ser o ponto focal da ação. À esquerda, o elemento brasileiro, uma mesa com tampo de vidro, como a que tenho em minha casa...

Na imagem, Sávio Sperandio e Zvetan Michailov.


Na imagem, Eiko Senda e Zvetan Michailov.
 
 O segundo ato sim, é inspiradoramente brasileiro. Uma sala de ex-votos onde são depositados os pagamentos das promessas feitas a Nossa Senhora, ao menino Jesus ou a algum santo. Retratos, braço, pernas e rosto de plásticos espalhados. Começa com Wotan e 8 das suas filhas unidas por laços de fita. Entretanto, ao invés de enrolar as fitas no mastro (ou em Wotan) são as Valquírias que se enrolam nas fitas, em um agradável e muito funcional alegoria do comando que Wotan tem sobre suas filhas menos Brünnhilde, o que pode ser signo da sua relativa independência. Wotan aqui está caracterizado como o próprio Wagner, uma homenagem ou cópia do Wotan de Chéreau. Lício Bruno caracterizou muito bem Wotan. Aliás, é chover no molhado elogiar a presença cênica de Lício Bruno. Os dois momentos centrais da Tetralogia foram bem resolvidos. Quando Denise de Freitas entrou como Fricka, eu pensei: Lá vem Dona Hermínia (e isso é outra história, talvez o Anel de Niterói...). Ela entra armada para brigar e dobrar Wotan. O faz com galhardia. Wotan é desmascarado. Segue o seu grande monólogo e, para mim, razão que levou cenicamente à sala dos ex-votos.

Na imagem Eliane Coelho e Licio Bruno

 No seu lamento a Brünnhilde (Eliane Coelho), Wotan conta como tentou moldar seu herói e representação cênica deixa bem claro como falhou. Ele pega pernas e braços e uma cabeça pendurados e os coloca no chão. São disformes. O deus não tem o poder, e não pode moldar um herói que não fique contaminado pelo deus. Surge outro elemento cênico que pode ter sido inspirado pelo Anel de Chéreau. Lá a mortalha que envolve Siegmund, aqui um véu branco que passa de Sieglinde para Brünnhilde. O véu envolve (cega? protege?) Sieglinde no seu desesperado lamento antes da morte de Siegmund. O ato termina dramaticamente bem. Hunding morre enforcado pelo laço de Wotan, ou outro que foi enredado pelos planos dentro de planos do deus. O Geh’ hin, knecht – vai escravo funcionou muito bem.

O terceiro ato começa como uma cavalgada, uma folia de reis, ecos do nosso passado ibérico, mouros e cristãos. A mais brasileira da cavalgada das valquírias. Belas valquírias, belas vozes, talvez faltasse um pouco de força para a orquestra, metais principalmente. As valquírias sobraram. Verushka Mainhard, Daniela Carvalho, Magda Belotti, Carolina Faria, Maira Lautert, Flávia Fernandes, Marina Considera e Daniela Mesquita, belas vozes, bela presença de palco, bela presença feminina. Eu esperava mais do Leb wohl du kühnes herrliches Kind. A orquestra abafou Licio Bruno que já mostrava cansaço. E, certamente, excesso de expectativa, culpa das facilidades atuais de you tube (George London) e/ou DVD, Donald McIntyre... Entretanto, no anúncio do herói mais livre que o deus, o papel se inverteu. Licio Bruno soberbo na passagem e falta de pegada heroica da orquestra no tema de Siegfried.
Quanto à orquestra do municipal, conduzida por Luiz Fernando Malheiros foi bem. Eu não tenho ouvido e tampouco experiência para julgar criteriosamente mas até o final do segundo ato, eu julgava ter ouvido uma ou outra escorregada da orquestra. No intervalo, uma senhora ao meu lado que, de tempos em tempos, regia a orquestra em algumas passagens, falou-me, desalentada, dos metais: “falta ensaio, falta ensaio... Ah esses metais, desafinaram”. De minha parte, sem ter como criticar de ouvido, critico de sentimento. Faltou pegada heroica em alguns momentos.
Todas as vozes femininas surraram as vozes masculinas, impiedosamente. Suas vozes encheram o Municipal, não foram abafadas pela orquestra e transmitiram corretamente as indicações mentais dos personagens.

Das vozes masculinas, salvou-se Sávio Sperandio, soberbo como Hunding. Impostação, volume e adequação ao momento que o papel exigia. Corretíssimo.
Lício Bruno, mesmo baixinho para Wotan (com o perdão da linha do politicamente correto) compensou cenicamente a inadequação da sua voz (volume, timbre) para o papel de Wotan.
Já o tenor... Ah, o tenor Zvetan Michailov . Foi um pecado terem escalado um tenor ligeiro (minha descrição) para um papel que exige um heldentenor. Não posso falar de desafinação dele. Não tenho ouvido ou formação para tanto. Todavia, repito o que disse acima. Em momento algum se viu em cena um heroi. Viu-se um Verkäufertenor, um tenor caixeiro viajante. Faltou postura tanto facial como corporal para nos momentos onde Siegfried mostra-se o herói que fora e ainda poderia ser.

Tudo somado, continuo maravilhado com Wagner e com esse Anel Brasileiro.

4 comentários:

  1. Argentina,meets Richard.....
    Nice week-end my friends

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  2. Não pude ir ao Municipal. Mas estou contente de ler uma crítica tão bem desenvolvida por um conterrâneo (também sou de Niterói).
    Um grande abraço

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  3. Também gostei muito desta crítica. Naturalmente que quem não assistiu ao espectáculo está muito limitado na apreciação da crítica do crítico (passe o pleonasmo), designadamente no que toca à vertente da apreciação do canto. Mas na parte relativa à encenação e a outras dimensões de um espectáculo de ópera, a questão já não se coloca da mesma forma. Assim, achei muito interessante que, à medida que descrevesse a encenação e o desenrolar da acção, fosse feita uma descodificação simbólica do que ia surgindo no palco, com referência às ideias subjacentes à Valquíria e ao próprio Anel. E quando se consegue fazer essa descodificação e ela faz sentido, é sinal seguro que a encenação cumpriu a sua função de contribuir para uma nova visão da obra ou para o questionamento das interpretações já estabelecidas e não de a ultrapassar e a ela se substituir (como parece suceder a maioria das vezes em muitas encenações dos últimos anos).
    Cumprimentos,
    J. Baptista

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  4. Lendo a crítica 10 anos depois do espetáculo: eu vi. Justa a crítica, apesar de discordar da encenação, forçada, ao incluir religiosidade brasileira numa narrativa nórdica e sem qualquer traço de religiosidade. É uma luta por poder, com toda a sordidez inerente a esse tipo de luta. Mas o espetáculo valeu. Não me lembro qual récita assisti mas, ao final, dois terços da plateia tinha desistido e ido embora...

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