Com o Simão Boccanegra, os Fanáticos inauguram um novo ditado: "Não há três sem quatro!" ou melhor: "Não há quatro sem cinco!".
Assisti ao Simão Boccanegra na Royal Opera House, Covent Garden, Londres a 29 de Junho (estreia) e a 5 de Julho (noite da gravação para a BBC e posteriormente para edição em DVD pela EMI); nos BBC PROMS 2010 a 18 de Julho (mesma produção da Royal Opera mas em versão semi-encenada) e, por último (e infelizmente por ter de esperar talvez até Setembro de 2011 para o ver novamente, em Viena...) no Teatro Real de Madrid a 25 de Julho (mais uma vez Domingo a apadrinhar a minha primeira ida a um teatro novo). A este quarteto de récitas pode-se adicionar a de 2 de Julho também na Royal Opera, à qual assistiu o FanáticoUm, que sei que irá vividamente comentar esta minha exposição até porque temos algumas opiniões divergentes em relação a alguns cantores... :)
Esta grande aventura iniciou-se a 29 de Junho, altura da estreia, como já referi. Cheguei cerca de uma hora antes à Stage Door para receber Domingo. Ansiava desde há 5 anos por aquilo que, invariavelmente face à quantidade de gente sempre em sua roda após as récitas, ainda não tinha em condições: uma foto com o Maestro. Para ser franco já tinha uma datada de 2006 (aquando das 2 récitas do Cyrano que vi na Royal Opera) mas estou com cara de parvo e a máquina demorou tanto tempo a disparar face à focagem automática, que Domingo (na altura muito magro de cara e com óculos de massa pouco favoráveis) está a olhar para o meu programa e a assinar e não para a câmara. Consegui ainda dar-lhe algumas lembranças de récitas prévias, incluíndo uma foto, a meu ver muito boa, que tinha tirado nas Ramblas em Barcelona em Maio de 2008, quando o vi pela última vez como Siegmund em versão concerto com elenco fantástico que já referi num comentário deste blog. Não vim, claro está, sem ele me assinar uma igual que guardo como o tesouro que é, aguardando algum tempo disponível para a emoldurar. Tudo perfeito!
Lá dentro esperava-me agora o regresso de Domingo à Royal Opera (depois de Siegmund em 2007 nos ciclos do Anel e depois de um falhado regresso, fazendo de Tamerlano, por doença em Março) e num papel classicamente de barítono.
Vi Domingo como Boccanegra pela primeira vez em Berlim a 7 de Novembro de 2009, na produção de estreia no papel. Não o pude ver em Nova York ($$$) e depois do infortúnio em Milão (ver comentário prévio no blog), estava ansioso para ver o quanto havia crescido no papel.
Para tentar não vos maçar muito com repetidos comentários de introdução diária no blog, achei por bem reunir toda a informação e fazer como que um modo descritivo-comparativo de todas as récitas, aproveitando para contrapor 2 encenações diferentes. Assim o vou tentar fazer, após esta introdução londrina.
A encenação do Simão Boccanegra da Royal Opera é extremamente clássica mas muito bem conseguida. Colunas cilíndricas do lado esquerdo do palco mantêm-se ao longo de toda a récita e é o fundo e o lado direito do palco que se vão alterando entre prólogo e actos: no prólogo, à direita estão as portas que dão para o palácio de Fiesco, no 1º acto é a casa de Amelia Grimaldi; o fundo é parede com escritos no prólogo, é neutro no 1º e último actos. Os trajes, como se poderá ver pelas fotos que adiciono, são igualmente clássicos e discretos, sem exageros. Talvez o mais exuberante seja o traje de Boccanegra na cena do Concílio - de amarelo a dourado com motivos em bordeaux mas com classe (ao contrário da de Berlim em que o amarelo fazia Domingo sair de um teatro chinês, sem ofensa).
A destacar na encenação tenho alguns pontos:
1) A imagem em sombra de luz quando Boccanegra entra no Palácio e encontra Maria morta (vemos Domingo a abraçar silhueta feminino na altura em que grita "Maria!") - excelente momento digno de Holywood.
2) Amélia casa-se de negro - será prenúncio da morte do Pai minutos depois?
3) A idade parece que não passa por Fiesco entre o prólogo e os actos que, como sabem, se passam 25 anos depois.
Nos PROMS, a récita foi semi-encenada. Os trajes da produção da Royal Opera acompanharam os cantores, bem como os adereços importantes como as espadas, o punhal, o jarro, o copo e o banco de madeira que serviu na Royal Opera e também aqui, de apoio para a primeira intervenção de Amelia com a ária "Come in quest'ora bruna", a benção de união de Fiesco a Adorno, a cena de reencontro de Pai e filha (todos no 1º acto). Se a encenação na Royal Opera cumpriu os seus desígnios, nos PROMS foi mágica. Isto porque, no lugar do fundo de palco estava a grandiosa Orquestra da Royal Opera, o seu Coro magnífico e António Pappano de batuta na mão e com os seus movimentos de boca tipo peixe que faz enquanto dirige. Foi diferente, sublime, mágico (no geral, talvez possamos extrair os tais movimentos de Pappano...). A casa de Fiesco foi no topo das escadas de acesso ao palco e os primeiros lugares do 1º anel à direita e Domingo tão bem estendeu a mão em direcção à mesma quando foi arrastado por Paolo e Pietro no final do prólogo... Segue como Doge mas no sofre por Maria falecida, e aquela mão no ar em sua direcção... Excelente momento dramático! O beijo de Simão à filha após o dueto do reencontro de ambos foi cenicamente irrepreensível na estreia e nos PROMS mas menos sentido no dia 5 de Julho. Do mesmo modo, o "Insensato" de Amélia, protegendo com o seu corpo o corpo de Simão contra o punhal de Adorno foi sincronizado na estreia e nos PROMS mas não a 5 de Julho. Por estes motivos acho que a BBC gravou a récita menos conseguida das que tive o prazer de assistir e será essa que vamos ter em DVD. Embora no dia 5 de Julho tenha assistido talvez à melhor cena da morte de Simão, os metais que acompanham a entrada do do Doge no 1º acto desafinaram e, por exemplo, o "Figlia" no final do dueto Simão-Amélia não foi tão bom como o dos PROMS ou de Madrid. Na estreia, a expressão do Doge quando reencontra Fiesco é de tão grande felicidade (pode agora dar-lhe a neta e este perdoá-lo) que arrepia, mas nas outras récitas foi menos exuberante.
Em Madrid, a encenação foi mais austera. Em palco reina o mármore, e por isso, o branco. São de mármore as colunas paralelepipédicas do palácio, as portas da casa de Fiesco que se situam no fundo do palco, a estátua que centrada se impõem no prólogo, o trono do Doge na cena do Concílio (onde Domingo canta até ao "Plebe, Patrici, Popolo"), a mesa do acto seguinte. Contrastando temos os trajes em bordeaux de Domingo, Paolo e Pietro (com diferenças estéticas,, claro), o verde de Amélia, e o preto de Fiesco e Adorno. A cena do Concílio dá-nos um Domingo vestido com uma écharpe volumosa, presa à frente com um pregador de brilhantes em forma de OO, fazendo lembrar algo que a saudosa Amélia Rey Colaço vestiria num episódio da série "Gente fina é outra coisa"... No último acto, Simão aparece cambaleando em palco, fruto da fraqueza pelo veneno. Na encenação de Londres Domingo aparece com duas bengalas e vai deambulando pelo palco como se o peso da idade, da vida, de tudo caísse sobre as suas pernas. De referir ainda que o fundo no 1º acto é composto por uma projecção cinéfila de um mar com ondas calmas, que se torna em agitado no 2º acto, acompanhando a trama.
Em qualquer uma das récitas, a queda final de Domingo, morto, deixa sempre a dúvida no ar de quando é que ele vai fracturar a cabeça do fémur (dado a sua idade e já algum hipotético grau de porosidade óssea...). Mas, pelo menos até 25 de Julho nada aconteceu. Até para isso é preciso ter mestria... e ele tem-la. O final da récita dos PROMS foi fantástico: Domingo permaneceu tempo demais no chão, morto. Tanto que até Calleja e Pappano se acercam do mesmo com algum grau de preocupação, se algo teria acontecido. Quando Pappano se inclina, Domingo levanta a cabeça sorrindo e Pappano leva as mãos ao peito como que aliviado de que nada havia acontecido. Momento de alguma tensão mas de riso final. Que Figura!... Espelha aquilo em que acredito: amor ao que se faz torna-nos capaz de fazer quase tudo e se o fizermos com humor, tudo será ainda melhor (para nós e para os outros). Tenho um video com este episódio, tirado com a máquina fotográfica mas ficou com MB superiores ao que o blog aceita. Se alguém souber como o colocar visível agradeço que o diga, para que possamos partilhar este momento.
Se ainda não estão a dormir com a minha crónica, possivelmente não será agora que vão começar a dormitar porque vou passar aos cantores:
Plácido Domingo foi Simão Boccanegra. O homem é um senhor, um Deus da Ópera!!! Não me interessa se é tenor, se é barítono... é Domingo!!! Vai ficar para sempre na História da Ópera e muitos hão-de recorrer sempre às suas gravações para o conhecer e para conhecerem as próprias óperas porque muitas das gravações são e continuarão a ser de referência. A impressão que tive desde Novembro até agora é que, em Berlim, Domingo esteve muito bem mas notava-se alguma apreensão do mesmo em relação ao que o público poderia pensar do facto de ele tomar esta aventura de cantar um papel de barítono com a sua voz de tenor. Era patente a sua inabitual inibição (se assim se pode chamar) nas chamadas ao palco. Também em Berlim senti a sua tentativa de tornar a sua voz mais grave, mais escura, o que tornou, comparativamente a Londres e Madrid, um "Plebe, Patrizi, Popolo" menos conseguido. Em Londres e Madrid a confiança estava lá e era clara a sua evolução no papel. Aqui viveu totalmente Simão, talvez também ajudado pelas encenações. A voz? Fantástica! A capacidade interpretativa? A de um grande actor! Tudo o que possa dizer é repetitivo...
O que foi melhor aqui e ali? Gostei muito da estreia em Londres: o dueto com a filha foi muito bom, levando a parestesias faciais no momento alto da identificação de ambos mas o seu "Figlia" final foi melhor nos Proms e em Madrid - estabilidade na linha melódica e o final grave com duração perfeita. Em Madrid, quando ambos juntam a medalha ao peito e vêm que são pai e filha não foram parestesias que senti mas parecia que alguém me estava a puxar o couro cabeludo para cima e para trás. Fantástico!!! (Talvez a ser diferente por estar na 1ª fila da plateia... na Royal Opera foi no anfiteatro e nos PROMS ligeiramente lateral...). O "Plebe..." foi muito bom mas ainda melhor nos PROMS embora aqui com um "feroce" que não saiu claramente do ponto de vista de dicção (uma das ocasionais faltas de memória de Domingo mas habilmente disfarçadas). Há também alguma dificuldade em Domingo articular o "Pace"... raramento acentua o "ce" e parece por vezes estar a dizer "Patre". Em Madrid muito, muito bem nesta passagem. A duração da última sílaba do "Plebe..." foi de maior duração em Madrid. Tinha ideia que Pappano o fazia mais rápido para disfarçar alguma dificuldade no grave de Domingo mas não, este correspondeu esplendidamente em Madrid a esta maior duração (aliás como a mim me soa melhor). No dia da gravação para DVD esteve bem mas acho que tentou florear/baritonar a passagem o que acho que fez perder alguma grandiosidade (mas terei de rever no DVD). Quando diz a Paolo para repetir a maldição a quem raptou Amélia penso que todos os que estavam no teatro estremeceram. O punho cerrado sob o queixo de Paolo... Que momento!!! Em Madrid esteve tudo lá nesta passagem mas cenicamente foi, por milésimos de segundo, importunada por um olhar para baixo para Domingo descer um degrau.
Temos de esperar talvez até Setembro de 2011 em Viena para poder ouvir de novo Domingo ser Boccanegra mas até lá novas surpresas poderão surgir. Já é conhecido o Rigoletto de Setembro - gravação para a RAI - e não foi a última vez que Domingo cantou na Royal Opera... A ver vamos o que reserva o futuro. Para mim vou querer revê-lo em Janeiro, em Madrid...
Ferruccio Furlanetto (Fiesco) é um daqueles cantores que se podem comparar com Netrebko no que aos Fanáticos diz respeito: cada récita sai sempre bem. E foi o que se viu nestas quatro. Dotado de uma voz de baixo à baixo, com graves fantasticos e estáveis, mas agudos igualmente seguros, capacidade interpretativa vocal e cénica espectacular, tem um timbre característico que o identifica seja onde for, mesmo sem o vermos. O "Ch'ami Amelia" foi dado com tanto calor na voz em Madrid que me deliciou ao máximo. A cena da benção da união de Adorno e Amélia foi fantástica embora nas récitas de Londres tenha tido um Calleja e não um Giordano... (já lá vamos...). Os duetos de Domingo e Furlanetto no acto final foram absolutamente soberbos em qualquer das récitas! Dois gigantes colossais da Ópera em interpretações sublimes!!
Quem vence o duelo Joseph Calleja e Marcello Giordani como Gabriele Adorno? Sem dúvida Giordano!! Aqui começam as minhas divergências de opinião com FanáticoUm... Para mim Calleja tem tudo o que é preciso para ser o que ele é: um tenor fantastico (a mesma ideia Netrebko e Furlanetto aqui se aplica). A voz é potente, afinada, tem entoação de acordo com o que está a cantar, e aguenta-se na mesma qualidade até ao final da récita. Qual é então o problema? A qualidade do seu vibrato. Sempre que canta, e principalmente quando as frases acabam em sílabas em "a" e "e" parece que está a balir. Horrível!!! É um timbre episódico feio, que embora tenha me feito progressivamente menos confusão nas 3 récitas, não posso dizer que o tolero. Giordano sim! Características gerais semelhantes mas sem o balir... É como um Adorno deve ser e faz lembrar Carreras na célebre gravação de Abbado - La Scala da Deutschegrammophon. Esteve perfeito em Madrid, não só na voz mas também cenicamente! Foi talvez um pouco exagerado quando sabe que Simão é pai de Amélia, ficando muito pasmado, de boca aberta como que em espasmo. Mas o deixar cair do punhal entre o "Tu" e "Suo padre"... lindo!
Em relação aos Paolo. Em Londres, a melhor interpretação de Jonathan Summers foi na estreia. Voz maléfica com uns "Orrore" sentidos e vindos das trevas. Sem nada a referir de negativo na voz e interpretação à excepção do dia da gravação em DVD em que o achei rouco, os "Orrore" menos conseguidos e no geral mais fraco. Em Madrid, Ángel Ódena foi um Paolo mais irado que maléfico. Voz fantástica, (mais uma vez) uns "Orrore" soberbos e caracterização sublime. Bravo!
Para terminar as vozes, e contra o que são as normas da boa educação, passemos às senhoras:
Mais uma vez contrastam as minhas opiniões com o FanáticoUm. Marina Poplavskaya foi uma Amélia bastante credível e notei evolução ao lono das récitas. Começou muito rude na estreia mas tornou-se progressivamente mais melodiosa e penso que fez da sua interpretação nos PROMS um marco na sua ainda não longa carreira. Duetos com Calleja bastante credíveis, sincronia em intensidade de agudos e nos finais de frase. Cenicamente também muito bem. Inva Mula é claramente melhor mas a experiência pessoal também é maior e diferente. Mais lírica mas também com mais maneirismos físicos foi um Amélia fantástica em Madrid. Afinação, agudos estáveis, sem gritos, e sentimento na voz e no físico. Mas também falhou... entrada em falso sobrepondo-se ao "Degg'io salvarlo" de Boccanegra mas disfarçado bem.
Antonio Pappano, a Orquestra e o Coro da Royal Opera são fantásticos! Mas existe sempre uma ou outra falha que mancham ligeiramente o todo. E aqui são os metais, como já é hábito em Wagner... Pontualmente nos Proms mas mais marcado no dia da gravação em DVD, a entrada do Doge é feita em perfeita desafinação... Não sei se os engenheiros de som conseguem minorar isto mas teremos de ver no DVD.
Em Madrid, a Orquestra esteve sublime (pelo menos não detectei nenhum erro), dirigida por Jesús López Cobos. Também devem ter sentido a resposabilidade da presença da Rainha de Espanha no camarote real...
Em resumo, acho que a BBC e a EMI deviam ter gravado todas as récitas e escolher as melhores cenas de cada acto para fazerem um DVD memorável; devia ter sido gravada em video a récita dos PROMS como fizeram com os Mestres Cantores (acho que o Simão merecia mais...). Felizmente teremos o audio para sempre. O mesmo digo para Madrid mas aqui não sei se não gravaram porque a récita foi transmitida para a Praça do Oriente onde várias pessoas poderam assistir. Talvez o som que será retransmitido pela UER (daqui a algum tempo, por certo, na nossa Antena2) venha acompanhado também com um DVDzito...
Quero deixar que o final da récita de Madrid teve algumas particularidades. Depois de 20 a 30 minutos de aplausos e chamadas ao palco, o elenco saiu à varando do Teatro, com a Rainha de Espanha e cumprimentaram todos os que estiveram a assistir na rua à récita. Domingo cantou canção madrilena e ainda um "Campeones" em alusão à vitória de Espanha no Campeonato Mundial. Consegui gravar um pouco deste "Campeones" mas não a canção madrilena, na minha máquina com memória em fase terminal face à quantidade de fotos e videos que fiz na chamada ao palco dos cantores...
Este mês de Julho, esticado a 29 de Junho, foi um mês muito especial para mim operaticamente falando. Tive a oportunidade de assistir a récitas marcantes da História de Ópera e fi-lo com as pessoas que mais amo na vida (cronologicamente: Esposa na Royal Opera, Mãe nos PROMS e Pai no Teatro Real de Madrid). Espero que a idade e a doença não me levem estas recordações porque vou querer levá-las na minha mala quando Deus me chamar a fazer a última viagem, ao Seu encontro.