(Text in English below)
Como seria de esperar, a interpretação de Tcherniakov de Die Walküre esteve qualitativamente em linha com Das Rheingold.
A ópera inicia-se com um pano em baixo sem qualquer projeção ou ação, perdendo-se a hipótese de representar a tempestade que Wagner tão bem recriou musicalmente. De repente, ao fim de uns 2 minutos, projetam imagens televisivas que diziam “Kriminal Report” com flashes de cenas criminais de rua e, posteriormente, com de video-vigilância. Nelas aparecem aquele que vem a ser Siegmund, aqui levado por dois polícias já na prisão. Tem uma madeixa branca no cabelo, o que é um sinal de que é filho de Wotan, pois este também tem uma madeixa branca no cabelo grisalho. Subido o pano, ainda há tempo para aparecer Wotan no seu escritório.
De seguida, o cenário roda 180º e passa a ser um loft/T1 básico onde encontramos Sieglinde sozinha. Chegado Siegmund, esta não mostra grande admiração e este parece estranho e desconfiado. Aparecido Hunding — aqui um polícia bem fardado com ares de chefe — o clima adensa-se: Sieglinde senta-se no seu colo para o apaziguar, enquanto este lhe abre o decote e expõe o sutiã (bem apropriado à presença do convidado…), a que se seguem diversas ameaças com pistola e loiças deitadas ao chão. Quando Hunding raivoso pede a bebida para dormir, Sieglinde acorre a prepará-la, ficando indecisa quanto às quantidades a deitar do pó soporífero, o que gerou alguns risinhos no público (o que idealmente seria incongruente com todo o ambiente esperado…). Hunding despe-se, ficando de camisola e calções, e deita-se, sendo seguido por Sieglinde. Antes algemara Siegmund, assim tendo mais um motivo para cantar os seus infortúnios. Quando soa o tema da espada, as luzes tornam-se mais brilhantes e parece haver algo espetado na parede (mas esse algo não está iluminado). Esse algo vem mesmo a ser a toda-poderosa espada Nothung. Sieglinde e Siegmund, entretanto reunidos pela paixão e pelo incesto, mas muito apressados, enfiam as roupas dela num saco e fogem, terminando o primeiro ato.
O segundo ato começa com uma recordação dessa fuga para que, no mesmo loft, logo apareçam Brunnhilde e Wotan, visivelmente cúmplices e satisfeitos, o que mereceu um festivo brinde com champanhe. Advertido da chegada de carroça (não há meios de transporte nesta encenação, devo dizer) de Fricka, o cenário mantém-se. Sai Brunnhilde e entra Fricka. Tão só! Entre o loft e o escritório (cujo vidro opaco escondia, afinal, o loft), uma Fricka histriónica convence Wotan de que os tratados são para cumprir e que a sua honra merece a morte de Siegmund. Ao mesmo tempo, voam dossiers da mesa para o chão, o que permite criar espaço para os contratos que a Fricka faz Wotan assinar. Regojizante, lança ares de desafio a Brunnhilde que entretanto voltara. Fricka sai, deixando-os a sós novamente. Wotan, preocupado e triste, conta as suas agruras a Brunnhilde sentado à porta do loft. Quando é posta em causa a sua autoridade, lá voam umas cadeiras, como não podia deixar de ser, não fosse Tcherniakov apreciador de atos clásticos. Entretanto, voltamos a Sieglinde e Siegmund: estamos novamente com as jaulas com coelhos de Das Rheingold, recordam-se? Sieglinde está sempre aflita e sem forças e acabam por ir parar ao cenários das cabines onde Alberich cacetou Mime. Brunnhilde surge para explicar o destino a Siegmund. Já sabemos que quem acaba convencida é Brunnhilde, que decide contrariar as ordens de Wotan. Fora do cenário, sem que se vejam (às escondidas?) dá-se o confronto de Hunding com Siegmund, confronto interferido por Wotan. Brunnhilde foge com Sieglinde e o loft dá lugar à caixa vazia do teatro. No vazio escuro, estão os três homens vivos e sem vislumbre de ferimento nem da longa lança dos tratados de Wotan (que essa é só do libreto e referida no canto). Wotan manda Hunding sair e este obedece, sem ripostar. E tudo termina com Siegmund a ser levado por uns polícias do corpo de intervenção. Daqueles da pesada que dão cacetadas e tudo. Finda o segundo ato.
A cavalgada das Valquírias é o icónico início do terceiro ato. Aqui não há cavalos (claro!), mas o conhecido anfiteatro. Chegam lá quatro Valquírias e projeta-se numa tela a mensagem «Antes da entrega do relatório sobre violência». As Valquírias lá vão chegando todas enquanto se cumprimentam com um jovial ‘dá cá mais cinco!’… Só Brunnhilde não é recebida assim. Não merece, como sabemos. Traz uma debilitada Siegelinde que constantemente se atira para o chão, só recuperando quando lhe é anunciado o herói que traz no ventre. Quando Brunnhilde a leva embora, volta Wotan com Sieglinde pela mão, ficando esta arrumada a um canto, não participando em nada, nem sendo investida pela ira de ninguém. Entretanto, Brunnhilde senta-se numa das últimas cadeiras do anfiteatro, bem à vista de todos, enquanto Wotan, muito insatisfeito (sim, houve cadeiras e até um isqueiro a ri pelos ares!), insta as Valquírias a denunciar o seu paradeiro… Quando Brunnhilde desce até Wotan saem as Valquírias, encarregando-se Gerhilde de levar consigo Sieglinde (que não mais aparece, vá lá!).
Aqui começa o dueto de Wotan e Brunnhilde. Wotan nervoso, acende cigarros e dá mesmo umas passas. Vão formando um círculo de cadeiras enquanto se revê o castigo a dar a Brunnhilde. Wotan já está mais suavizado e até colinho acaba por dar. Estão ambos muito tristes o tempo todo, mas algo estáticos. Brunnhilde sobe a uma das cadeiras do círculo e Wotan chama Loge. Brunnhilde, muito infantil e perante a desfeita de Loge que não aparece, sai do círculo, pega num marcador laranja e — imagine-se! — desenha umas chamas nas costas das cadeiras para divertimento próprio e do seu pai babado. Com o fogo não se brinca, costuma dizer-se… No fim, Brunnhilde pega numa mochila e sai do anfiteatro, dando a mão ao pai que nele permanece. O enlace das mãos perde-se com o afastamento da secção Anfiteatro que recua no palco. E a música vai-se desenrolando até ao finda enquanto pai e filha se afastam, olhando-se lugubremente. Brunnhilde, aqui nada adormecida, está preparada para uma viagem. E assim termina Die Walküre.
Não me parece que precisem de comentários sobre a encenação, dado que a descrição é exaustiva…
Relativamente aos cantores, uma vez mais, não veiculam a emoção esperada porque, no meu ver, Tcherniakov não permite.
Individualizando. Robert Watson foi um Siegmund sem presença vocal e com vários problemas na emissão que foi irregular, sobretudo no registo médio, o que fez com que o público o brindasse muitos boos. Foi de tal modo exagerado que deu pena ver o semblante triste e carregado com que ficou e a necessidade de muitos “cheer up” dos colegas. Não se faz!
Vida Mikneviciutè foi uma Sieglinde vocalmente espetacular. Voz enorme, brilhante, sempre sobre a orquestra e com um timbre muito bonito. Para mim, o destaque da tarde/noite. E um evidente contraste com Watson.
Hunding foi interpretado por Mika Kares que já tinha sido um excelente Falsot e que aqui, uma vez mais, não defraudou o exigente público de Berlim.
A Fricka de Claudia Manke esteve hoje vocalmente melhor do que em Das Rheingold, muito embora não seja uma mezzo deslumbrante, nem uma Fricka memorável.
De todas as Valquírias, claro destaque para Clara Nadeshdin que fez uma Gerhilde fantástica: que voz imensa!
Termino com o duo Wotan/Brunnhilde. Michael Volle foi, novamente, um Wotan vocalmente em grande forma e cenicamente limitado, o que o impede de ser um Wotan que me vá recordar. Já Anja Kampe foi uma Brunnhilde competente, mas creio que, tendo estado sempre em bom plano, está a aquecer para as duas récitas finais.
A Staatskapelle Berlin sob direção de Christian Thielemann foi novamente fantástica e quase irrepreensível. Estão a ser, claramente, as grandes estrelas desta produção. Vai para eles o meu Bravo! Que assim continuem!
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Die Walküre
As one would expect, Tcherniakov's interpretation of Die Walküre was qualitatively in line with Das Rheingold.
The opera begins with a curtain below without any projection or action, missing the chance to depict the storm that Wagner recreated so well musically. Suddenly, after about two minutes, television images are projected saying "Kriminal Report" with flashes of criminal street scenes and, later, with video surveillance. In them appears the one who turns out to be Siegmund, here taken by two policemen already in prison. He has a white streak in his hair, which is a sign that he is Wotan's son, for Wotan also has a white streak in his grey hair. Once the curtain rises, there is still time for Wotan to appear in his office.
Next, the scene turns 180º and becomes a basic loft/T1 where we find Sieglinde alone. When Siegmund arrives, she doesn't show much admiration and he seems strange and suspicious. When Hunding appears - here a well-uniformed policeman who looks like a boss - the atmosphere thickens: Sieglinde sits on his lap to appease him, while he opens her cleavage and exposes her bra (very appropriate to the presence of the guest...), which is followed by several threats with a pistol and crockery thrown on the floor. When Hunding angrily asks for the drink to sleep, Sieglinde wakes up to prepare it, being indecisive about the quantities to pour the sleeping powder, which generates a few giggles in the audience (which ideally would be incongruous with the whole expected atmosphere...). Hunding undresses, wearing a shirt and shorts, and lies down, followed by Sieglinde. Earlier he had handcuffed Siegmund, thus having one more reason to sing of his misfortunes. When the sword theme sounds, the lights become brighter and there seems to be something sticking out of the wall (but that something is not illuminated). That something turns out to be the all-powerful sword Nothung. Sieglinde and Siegmund, meanwhile brought together by passion and incest, but too hastily, stuff her clothes into a sack and flee, ending the first act.
The second act begins with a recollection of this escape so that, in the same loft, Brunnhilde and Wotan soon appear, visibly complicit and satisfied, which merited a festive champagne toast. Warned of Fricka's arrival by wagon (there are no means of transport in this staging, I must say), the scene is maintained. Out comes Brunnhilde and in comes Fricka. So alone! Between the loft and the office (whose opaque glass hid the loft, after all), a histrionic Fricka convinces Wotan that treaties are to be kept and that his honour deserves Siegmund's death. At the same time, dossiers fly off the table onto the floor, making room for the contracts Fricka makes Wotan sign. Gloating, he throws looks of defiance at Brunnhilde who had meanwhile returned. Fricka leaves, leaving them alone again. Wotan, worried and sad, tells Brunnhilde about his woes sitting outside the loft. When his authority is questioned, a few chairs fly out of the door, as one might expect, since Cherniakov is a lover of clastic acts. Meanwhile, we return to Sieglinde and Siegmund: we're back with the rabbit cages of Das Rheingold, remember? Sieglinde is always distressed and powerless and they end up in the cabin scenarios where Alberich has cackled Mime. Brunnhilde appears to explain her fate to Siegmund. We already know that the one who ends up convinced is Brunnhilde, who decides to go against Wotan's orders. Outside the scene, without being seen (on the sly?), Hunding and Siegmund confront each other, a confrontation interfered by Wotan. Brunnhilde flees with Sieglinde and the loft gives way to the empty theatre box. In the dark void are the three men alive and without a glimpse of injury or the long spear of Wotan's treatises (that one is only from the libretto and mentioned in the corner). Wotan orders Hunding to leave and he obeys, without fighting back. And it all ends with Siegmund being taken away by some policemen from the riot squad. Those heavy-handed ones who beat him up and everything. The second act is over.
The Ride of the Valkyries is the iconic start of the third act. Here there are no horses (of course!), but the well-known amphitheatre. Four Valkyries arrive there and the message "Before the report on violence" is projected on a screen. The Valkyries all arrive there while greeting each other with a jovial 'high-five'... Only Brunnhilde is not received like that. She doesn't deserve it, as we know. She brings a weakened Siegelinde who constantly throws herself to the ground, only recovering when the hero she carries in her womb is announced. When Brunnhilde takes her away, Wotan returns with Sieglinde by the hand, leaving her tidily in a corner, taking no part in anything, nor being invested by anyone's wrath. Meanwhile, Brunnhilde sits down on one of the last chairs in the amphitheatre, in full view of everyone, while Wotan, very dissatisfied (yes, there were chairs and even a lighter laughing in the air!), urges the Valkyries to report her whereabouts... When Brunnhilde goes down to Wotan the Valkyries come out, with Gerhilde taking Sieglinde with her (who no longer appears, come on!).
Here begins Wotan and Brunnhilde's duet. Wotan nervously lights cigarettes and even takes a few puffs. They form a circle of chairs as they review the punishment to be given to Brunnhilde. Wotan is more relaxed and even gives her a cuddle. They are both very sad all the time, but somewhat static. Brunnhilde climbs onto one of the chairs in the circle and Wotan calls Loge. Brunnhilde, very childish and at Loge's snub, who doesn't show up, leaves the circle, takes an orange marker and - imagine that! - draws some flames on the backs of the chairs for her own amusement and that of her drooling father. At the end, Brunnhilde takes a rucksack and leaves the amphitheatre, holding hands with her father who remains in the theatre. The linking of hands is lost as the amphitheatre section retreats on stage. And the music winds to a halt as father and daughter walk away, looking at each other lugubriously. Brunnhilde, here not at all asleep, is prepared for a journey. And so Die Walküre ends.
I don't think you need any comments on the staging, since the description is exhaustive...
As regards the singers, once again they do not convey the expected emotion because, in my view, Cherniakov does not allow it.
Individualising. Robert Watson was a Siegmund without vocal presence and with several problems in the emission that was irregular, especially in the middle register, which caused the audience to toast him many boos. It was so over the top that it was a shame to see the sad, heavy countenance he was left with and the need for lots of "cheer up" from his colleagues. It can't be done!
Vida Mikneviciutè was a vocally spectacular Sieglinde. Huge, brilliant voice, always over the orchestra and with a very beautiful timbre. For me, the highlight of the afternoon/evening. And an obvious contrast to Watson.
Hunding was played by Mika Kares who had already been an excellent Falsot and who here, once again, did not disappoint the demanding Berlin audience.
Claudia Manke's Fricka was vocally better today than in Das Rheingold, though not a stunning mezzo, nor a memorable Fricka.
Of all the Valkyries, of course the highlight is Clara Nadeshdin who made a fantastic Gerhilde: what a huge voice!
I finish with the Wotan/Brunnhilde duo. Michael Volle was, again, a Wotan vocally in great shape and scenically limited, which prevents him from being a Wotan that I will remember. Anja Kampe, meanwhile, was a competent Brunnhilde, but I think, having been consistently on top form, is warming up for the final two recitatives.
The Staatskapelle Berlin under Christian Thielemann was again fantastic and almost faultless. They are clearly being the big stars of this production. Bravo to them! May they keep it up!
Vida Mikneviciutè já havia patenteado relevantes credenciais num Lohengrin com Roberto Alagna, em 2020.
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