terça-feira, 30 de julho de 2019

LUISA MILLER, Liceu, Barcelona, Julho / July 2019



Texto de camo_opera

A Orquestra do Liceu esteve em muito bom plano sob a direção do jovem maestro venezuelano-suíço Domingo Hindoyan que ofereceu uma interpretação rica, dramática, com o tempo certo e com um volume que respeitou sempre os cantores. O coro também esteve muito bem nas suas diversas intervenções.


A encenação de Damiano Michieletto é muito interessante. Modernizando a ópera mais pelos cenários do que pelo guarda-roupa, utiliza um palco giratório que permite as mudanças de cena com enorme fluidez e sem qualquer quebra dramática ou de tempo. Depois, utiliza de forma muito interessante os contrastes entre ambientes mais pobres e ricos, entre o branco e o negro. Também recorre a duas crianças que representam Rodolfo e Luisa em pequenos e que acrescentam valor simbólico à encenação, enriquecendo-a. O recurso a algumas projeções de vídeo (a carta de Luisa a Wurm enquanto Rodolfo canta Quando le sere al placido, ou a água a ser tingida do azul do veneno). Bem mais interessante do que, por exemplo, a encenação clássica do MET. Diria que seria melhor com uma direção de atores mais cuidada, dinâmica e dramática.

O elenco de cantores foi de muito boa qualidade.

Dos cantores que iam cantar as três personagens principais, sobrou apenas Piotr Beczala, uma vez que Leo Nucci cancelara o seu Miller meses antes (para grande fastio meu, uma vez que ia, sobretudo, para o ver), o mesmo sucedendo na própria tarde da récita com Sondra Radvanovsky que sofria de uma faringite viral aguda. Estes foram, respetivamente, substituídos pelo barítono americano Michael Chioldi e pela soprano italiana Eleonora Buratto. Tal significou um downgrade para o primeiro e o upgrade para a segunda.


Começando por Michael Chioldi, este desenvolveu bem a personagem, apresentando-se cenicamente convincente e vocalmente muito competente, sempre comprometido nos duetos com a filha Luisa. Tem uma voz grande e emissão regular, um timbre bonito, um fraseado elegante. Foi melhorando ao longo da récita em todos os aspectos, uma vez que tinha tendência a “ladrar” a última sílaba.


A qualidade da Luisa de Eleonora Buratto não me surpreendeu. Já a ouvira ao vivo como Susanna em Le Nozze di Figaro e tinha-me impressionado, pelo que, passados quase 5 anos dessa récita em Madrid, não seria de esperar uma má evolução para papéis dramáticos. Foi uma Luisa jovial e apaixonada que se rende ao seu destino fatal de forma decidida, pelo que cumpriu inteiramente do ponto de vista cénico. Depois, do ponto de vista vocal, esteve em grande nível. Tem uma excelente tessitura, indo do registo grave aos agudo de forma elegante e conseguiu (o que é difícil) não gritar durante a récita, mesmo nas passagens mais difíceis. Os duetos com o pai Miller e Rodolfo foram muito bons, assim como o seu triste Tu puniscimi, O Signore de enorme qualidade, ou o quarteto à capela, o final do primeiro ato e toda a cena final.


A grande interpretação da noite foi, contudo, para o tenor polaco Piotr Beczala. Para mim, é o melhor tenor da atualidade no registo mais dramático e estou mortinho por ouvi-lo em Otello. Tem construído a carreira de forma muito sólida e tudo o que canta, canta bem. É daqueles tenores com aura de grande. Como não seria de esperar outra coisa, esteve cenicamente muito bem (se não foi melhor, creio que se podem assacar culpas à direção de atores) em todos os atos. E vocalmente esteve sublime. Tem uns agudo fantásticos, brilhantes e cheios de vida, e é regular ao longo de toda a récita. Naturalmente, brilhou mais no recitativo O fede negar potessi seguido da ária Quando le sere al placido: um espanto! O público reagiu com enormíssimo entusiasmo e não o deixou não bisar (foi difícil porque ele estava a pensar no que ainda lhe faltava!): o bis foi igualmente excelente, mas mais contido. Brilhantíssima récita de Beczala.

O Conde di Walter de Dmitry Belosselskiy também esteve em óptimo plano. A voz é bonita, a figura excelente para o papel e as interpretações vocais e cénicas muito boas. O Wurm de Marko Mimica também foi de qualidade, muito embora não goste especialmente do timbre e considere que, se fosse mais maléfico, não vinha mal à récita.

O elemento mais fraco foi a Federica de J’Nai Bridges que, cumprindo, não encantou nem pela voz, nem pela parte cénica. O mesmo se pode dizer da Laura de Gemma Coma-Alabert.


No final, saí satisfeito de mais uma grande récita e com o bis de Beczala para recordar.



LUISA MILLER, Liceu, Barcelona, July 2019

Liceu´s orchestra was very well under the direction of the young Venezuelan-Swiss conductor Domingo Hindoyan who offered a rich, dramatic, timely performance and with a volume that always respected the singers. The choir was also very good in its various interventions.

Damiano Michieletto's staging is very interesting. Modernizing the opera more by the scenery than by the dresses, he uses a revolving stage that allows the scene changes with great fluidity and without any dramatic break or time. Then he makes a very interesting use of the contrasts between poorer and richer environments, between white and black. He also resorts to two children who represent young Rodolfo and Luisa and who add symbolic value to the performance, enriching it. The use of some video projections (Luisa's letter to Wurm while Rodolfo sings Quando le sere al placido, or the water to be tinted with the blue of the poison). Much more interesting than, for example, the classic MET staging. I would say it would be better with a more careful, dynamic and dramatic direction of actors.

The cast of singers was of very good quality.

Of the singers who were going to sing the three main soloists, only Piotr Beczala was left, since Leo Nucci had canceled his Miller months earlier (much to my annoyance, since I was mostly going to see him), the same happening in the afternoon of the performance with Sondra Radvanovsky suffering from an acute viral pharyngitis. These were replaced by American baritone Michael Chioldi and Italian soprano Eleonora Buratto. This meant downgrading to the first and upgrading to the second.

Starting with Michael Chioldi, he performed his character well, presenting himself with a compelling and vocally very competent performance, always engaged in duets with his daughter Luisa. He has a big voice and regular emission, a beautiful tone an elegant phrasing. He improved throughout the performance in all respects as he tended to “bark” the last syllable.

The quality of Eleonora Buratto’s Luisa did not surprise me. I had heard her live as Susanna in Le Nozze di Figaro and I was impressed, so after almost 5 years of that performance in Madrid, a bad evolution to dramatic roles would not be expected. She was a jovial and passionate Luisa who surrendered to her fatal fate in a determined way, and she fulfilled it entirely from a scenic point of view. Then, from a vocal point of view, she was at a great level. SHE has an excellent tessitura, ranging from low notes to top register in an elegant manner and managed (which is difficult) not to scream during the performance, even in the most difficult passages. The duets with his father Miller and Rodolfo were very good, as were her sad Tu puniscimi, O Signore of the highest quality, or the chapel quartet, the end of the first act and the whole final scene.

The great performance of the evening was of Polish tenor Piotr Beczala. To me, he's the best tenor in the most dramatic register today, and I'm looking forward to listening to him as Otello. He has built his career very solidly and everything that sings, he sings well. He's fone of those tenors with great aura. Unsurprisingly, he was very well on stage (if not better, I think guilt can be blamed on the director) in every act. And vocally he was sublime. He has fantastic, bright and lively treble, and he is regular throughout the performance. Of course, he shone more brightly in the recitative O fede negar potessi followed by the aria Quando le sere al placido: fabulous! The audience reacted with tremendous enthusiasm and did not let he go unnoticed (it was difficult because he was thinking of what he still lacked!): The encore was equally excellent but more restrained. Brilliant perfromance of Beczala.

Count di Walter by Dmitry Belosselskiy was also a great performance. The voice is beautiful, the figure excellent for the role and the vocal and scenic interpretations very good. Marko Mimica's Wurm was also of good quality, although I do not particularly like the timbre and consider that if he was more evil, He would be better.

The weakest element was Federica by J'Nai Bridges, who was not excitiny neither by the voice nor by the scenic part. The same can be said of Gemma Coma-Alabert's Laura.

In the end, I left satisfied with another great performance and with Beczala's encore to remember.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

“La forza del destino”, de Verdi, marca o regresso da grande ópera ao Coliseu Porto Ageas





O Coliseu Porto Ageas e o Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) unem-se para apresentar, dia 26 de outubro, no Porto, a ópera La forza del destino, uma das composições mais ambiciosas de Giuseppe Verdi. A soprano Julianna Di Giacomo e o tenor Kristian Benedikt assumem o par Leonora / Alvaro, numa história onde dramas pessoais intensos se desenrolam com a guerra como pano de fundo.

Poucas vezes a música de Verdi irrompeu com tanta força como nesta ópera de situações limite: canta-se a história de Don Alvaro e da sua paixão correspondida por Donna Leonora, filha do Marquês de Calatrava. Quando o Marquês recusa dar a mão da sua filha em casamento, as consequências são dramáticas e a tragédia toma conta dos seus destinos.

Verdi e Francesco Maria Piave basearam "La forza del destino" na peça dramática de Ángel de Saavedra, Don Alvaro, o fuerzo del sino. Juntos, criaram uma ópera em quatro atos marcante, quer na história e nos cenários, quer na orquestração.

(fotografia / Photo: Kirsten McTernan)


A parceria entre o Coliseu Porto Ageas e o único teatro lírico do país tem, assim, uma importante continuidade, depois do enorme sucesso de "La traviata", em 2018, que esgotou em Lisboa e Porto, e de “Turandot”, que em 2017 pôs fim a uma ausência de 33 anos do TNSC no Coliseu.


(fotografia / Photo: Kirsten McTernan)

Ficha técnica:

La forza del destino, Giuseppe Verdi {1813-1901}

Ópera em quatro atos, com libreto de Francesco Maria Piave {1810-1876}

Direção Musical Antonio Pirolli
Encenação David Pountney
Cenografia Raimund Bauer
Figurinos Marie-Jeanne Lecca
Coreografia Michael Spenceley
Desenho de luz Fabrice Kebour

Marquês de Calatrava, Padre Guardiano Miklos Sebastien
Donna Leonora Julianna Di Giacomo
Don Carlo Damiano Salerno
Don Alvaro Kristian Benedikt
Preziosilla, Curra Cátia Moreso
Fra Melitone Luís Rodrigues
Alcaide, Cirurgião João Merino
Trabuco a definir

Coro do Teatro Nacional de São Carlos
Maestro Titular Giovanni Andreoli

Orquestra Sinfónica Portuguesa
Maestrina Titular Joana Carneiro

Produção
Theater Bonn, Welsh National Opera

Co-produção
Coliseu Porto Ageas e Teatro Nacional de São Carlos

quarta-feira, 24 de julho de 2019

TRISTAN UND ISOLDE, Staatsoper unter den Linden, Berlin, Julho/July, 2019




Texto de camo_opera
(review in English below)

Nadeslocação a Berlim comecei pelo Tristan und Isolde de R. Wagner. Depois de acordar às 4h da manhã porque tinha voo às 6h15, temi que não ia conseguir ver o Tristão como deve ser. Todavia, uma sesta de meia hora e um RedBull permitiram-me estar bem acordado, para o qual não posso excluir que a qualidade do espectáculo também contribuiu.



A direção da orquestra esteve a cargo de Daniel Barenboim: esteve muito bem, muito fluente e dinâmico, mas, várias vezes, abusou do volume e abafou mesmo as vozes potentes de Kampe e Schager.



A encenação de Tcherniakov é bem interessante: é verdade que tem alguns pormenores que falham, mas, no geral, moderniza algo a ópera e permite e o seu desenrolar de forma interessante e bem mais dinâmica do que a ópera sugere. O elenco foi mesmo muito bom, além de muito homogéneo.



A começar, o marinheiro de Adam Kutny foi fabuloso: voz de tenor muito bonita e harmoniosa, cantou lindamente a sua passagem e auspiciou uma grande récita.




Destaco, acima de todos os outros, o Tristão de Andreas Schager: creio que será dos melhores, senão mesmo o melhor, tenor wagneriano da atualidade. Foi vocalmente soberbo a dominar as nuances do texto, a colocação da voz, a técnica e a fluência cénica. Um Tristão sublime.



Anja Kampe foi, também, uma Isolde de exceção: voz igualmente potente, sempre afinada, raramente tendeu para a estridência e foi muito convincente cenicamente.



O Kurwenal de Boaz Daniel esteve também em bom plano, embora sem o volume e brilhantismo vocal dos dois anteriores: Barenboim não o ajudou, é um facto.



O Rei Marke de René Pape também esteve excelente: voz, postura, intencionalidade e intensidade, a sublinhar mais uma vez o facto de ser o baixo alemão mais dotado da sua geração.



A Brangane de Violeta Urmana esteve em destaque com uma excelente participação, embora mais ao nível de Boaz.

Diria que Schager cintilou mais num firmamento de estrelas bem brilhantes e que, globalmente, este Tristão terá sido o melhor da temporada e foi, sem dúvida, a melhor récita das cinco a que assisti.





TRISTAN UND ISOLDE, Staatsoper unter den Linden, Berlin, July, 2019

Text by camo_opera

I watched R. Wagner's Tristan und Isolde. After waking up at 4 o'clock in the morning because I was flying at 6:15 am, I was afraid I would not be able to see Tristan as it should be. However, a half-hour nap and a RedBull allowed me to be wide awake, for which I can not exclude that the quality of the show also contributed.

The direction of the orchestra was by Daniel Barenboim: he was very good, very fluent and dynamic, but, several times, he abused the volume and even drowned out the powerful voices of Kampe and Schager.

Tcherniakov's staging is quite interesting: it is true that there are some details that fail but, in general, modernizes the opera and allows its progress in an interesting and much more dynamic way than the opera suggests. The cast was really good, and very homogeneous.

To begin with, Adam Kutny's sailor was fabulous: very beautiful and harmonious tenor voice, beautifully sang his part and had an excellent performance.

I emphasize, above all others, Tristan by Andreas Schager: I think he will be one of the best, if not the best, Wagnerian tenor of our days. He was vocally superb to master the nuances of the text, the placement of the voice, the technique and the scenic fluency. A sublime Tristan.

Anja Kampe was also an exception Isolde: voice equally potent, always tuned, rarely tended to stridency and was very convincingly on stage.

Kurwenal by Boaz Daniel was also in good, although without the volume and vocal brilliance of the two previous ones: Barenboim did not help him, it is a fact.

King Marke by René Pape was also excellent: voice, posture, intentionality and intensity, to underline once again the fact that he is the most gifted German bass of his generation.

Violeta Urmana's Brangane featured with an excellent turnout, albeit more at Boaz level.

I would say that Schager flashed more in a firmament of very bright stars and that, overall, this Tristan und Isolde would have been the best of the season and was undoubtedly the best performance of the five I attended.