domingo, 10 de abril de 2011

LE COMTE ORY – Met Live, Fundação Gulbenkian, Abril de 2011


(review in English below)

Le Comte Ory é a última ópera cómica de G. Rossini, a única em francês, com libretto de Eugène Scribe e Charles Gaspard Delestre-Poirson.

A acção passa-se em França por volta de 1200 e conta a história do jovem Conde Ory que quer conquistar a Condessa Adèle que, juntamente com outras mulheres, ficam sós e recatadas no castelo em que vivem depois de todos os homens terem partido para lutar nas cruzadas. O Conde disfarça-se de ermita e instala-se com os seus amigos à porta do castelo. A Condessa vem consultá-lo porque se sente muito melancólica, É também cortejada por Isolier, o pajem do Conde, que o não reconhece. Quando o ermita está prestes a entrar no castelo, a convite da condessa, é desmascarado. Chega a notícia que os cavaleiros regressarão das cruzadas. O Conde põe em prática outra estratégia para entrar no castelo com os seus amigos, desta vez disfarçados de freiras peregrinas, durante uma tempestade. Já no castelo, o Conde ainda disfarçado é reconhecido por Isolier que juntamente com a condessa, decidem pregar-lhe uma partida. À noite, quando se dirige ao quarto da condessa, acaba por se deitar com Isolier. A situação é desmascarada, os cavaleiros regressam e o Conde Ory foge.

O encenador, Bartlett Sher, transportou a acção da Idade Média para o século XVIII e concebeu-a num palco rústico da época. É aquele conceito frequentemente usado de um teatro dentro do teatro (esta temporada já o vi na Adriane Lecouvreur e no Tannhäuser). A encenação aqui foi feliz porque teve vários pormenores muito engraçados, incluindo um actor a “dirigir” a encenação, borboletas fingidas a voar, a colocação manual e com cordas de vários adereços, a apresentação das máquinas antigas de fazerem vento e trovões, e os equipamentos mecânicos de elevação de adereços de cena (como a cama da condessa). O guarda roupa (de Catherine Zuber) era de impressionante bom gosto.


(algumas fotografias são de Marty Sohl / Metropolitan Opera)

O maestro italiano Maurizio Benini conduziu a orquestra de forma contida, nunca imprimindo os crescendos e ritmos mais acelerados tão próprios das obras de Rossini, o que foi o aspecto menos positivo da récita.

O Conde Ory foi interpretado pelo tenor peruano Juan Diego Flórez. Desde que escrevo neste blogue já por várias vezes (aqui, aqui, aqui e aqui) referi a minha enorme admiração por este artista, sendo um daqueles que pertence ao clube muito restrito dos cantores de ópera que aprecio incondicionalmente.
Hoje a minha admiração por ele ainda cresceu um pouco mais por dois motivos. O primeiro foi saber que tinha sido pai do seu primeiro filho uma hora antes do início da ópera e não ter cancelado. O outro foi tê-lo visto, finalmente, a representar, para além de cantar. O papel presta-se a cenas de grande comicidade e foi isso mesmo que Flórez nos ofereceu.
A voz continua esplendorosa, de uma beleza única, com um legato extraordinário e recheada de notas estratosféricas de elevada qualidade. Como tenor ligeiro, não tem rival na actualidade. Absolutamente fabuloso, na minha opinião.



Diana Damrau, soprano alemão, foi uma Condessa Adèle insuperável. A voz é cristalina, potente, com um timbre belíssimo e a coloratura é de uma precisão invulgar. A sua ária inicial, dificílima tecnicamente, foi um dos momentos altos da tarde, em que a beleza sonora se associou a melancolia e desespero convincentes. Avassaladora.





Isolier foi interpretado pelo mezzo-soprano americano Joyce DiDonato, outra cantora rossiniana por excelência, que também muito aprecio e que, numa situação de grande adversidade por lesão física grave, não cancelou um espectáculo a que assisti.
Tem uma voz quente e maleável que associa tamanho a qualidade e que é particularmente gloriosa quando interpreta estes papeis. Colocou grande sensibilidade e paixão na interpretação, tendo sido outra das grandes da tarde.



Merecem ainda uma referência positiva, pela qualidade interpretativa, o mezzo-soprano sueco Susanne Resmark que foi Ragone, companheira de Adèle, o barítono francês Stéphane Degout como Raimbaud, amigo do conde e o baixo-barítono italiano Michele Pertusi como tutor do conde.

Mais um espectáculo marcante, que nos transportou para aquele patamar superior que sempre desejamos quando assistimos a uma ópera, desta vez devido, sobretudo, à presença de três dos maiores cantores rossinianos da actualidade.

Existe uma gravação muito interessante com Juan Diego Flórez, Stefania Bonfadelli e Marie-Ange Todorovitch, dirigidos por Jésus López-Cobos.



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LE COMTE ORY - Met Live, Gulbenkian Foundation, April 04/09/2011


Le Comte Ory is the latest comic opera by G. Rossini, the only written in French, with libretto by Eugène Scribe and Charles Gaspard Delestre-Poirson.

The action is set in France around 1200 and tells the story of the young Count Ory who wants to seduce the Countess Adèle that, together with other women, are living alone in the castle after all the men had left to fight in the crusades. Count Ory disguises himself as a hermit and settles with his friends outside the castle. The Countess comes to consult him because she feels very sad. She is also being seduced by Isolier, the page of Count Ory, that does not recognize him. When the hermit is about to enter the castle, after the invitation of the countess, he is unmasked. The news that the knights will return from the Crusades are known. The Count Ory implements another strategy to enter the castle with his friends, this time disguised as pilgrim nuns, during a storm. Already in the castle, Isolier recognizes the disguised Count Ory. Together with the countess, rhey decide to frame him. At night, when he goes to the bedroom of the countess, he ultimately goes to bed with Isolier. The situation is unmasked, the knights return and Count Ory flees.

The director was Bartlett Sher. He moved the action from the Middle Age to the eighteenth century and set it in a rustic stage of that time. This concept of a theater within the theater is often used (I've seen it this season in Adriane Lecouvreur and Tannhäuser). The option here was interesting because it had several very funny details, including an actor to "direct" sthe staging, fake butterflies flying, the manual positioning or with ropes of various props, presentation of the old machines to make wind and thunder, and the mechanical equipment for lifting props (like the bed of the Countess). The dresses (by Catherine Zuber) were impressive.

The Italian conductor Maurizio Benini conducted the orchestra in a contained way, never implementing the crescendos and more accelerated pathns that the works of Rossini demand, which was the least positive aspect of the performance.

Count Ory was interpreted by the Peruvian tenor Juan Diego Flórez. In this blog I have repeatedly (here, here, here and here) mentioned my great admiration for this artist, one of those who belong to the very restricted club of the opera singers who I appreciate unconditionally.
Today my admiration for him has grown a little more for two reasons. The first was the knowledge that had been father of his first child one hour before the performance and he has not cancelled his presence. The other was seeing him finally acting, in addition to singing. The role lends itself to scenes of great humor and that's exactly what Flórez offered.
The voice remains resplendent, of unique beauty, with an extraordinary legato and filled with stratospheric top notes of high quality. As a light tenor, he is unique in present days. Absolutely fabulous, in my opinion.

Diana Damrau, German soprano, was an exceptional Countess Adèle. The voice is crystal clear, powerful tone with a beautiful and accurate coloratura. Her initial aria, very difficult technically, was one of the highlights of the afternoon, where the beauty of sound was linked to convincing melancholy and despair. Overwhelming.

Isolier was interpreted by American mezzo-soprano Joyce DiDonato, another excellent Rossinian singer, and that I also deeply appreciated in a situation of great adversity for her due to a serious personal injury but, nevertheless, did not cancel a performance that I attended.
She has a warm, glorious and malleable voice that associates potency and quality. It is particularly glorious when interpreting these roles. She showed great sensitivity and passion in the acting and she was another great artist of the afternoon.

Also worth a positive reference for the quality of interpretation, Swedish mezzo-soprano Susanne Resmark that was Ragone, companion of Adele, French baritone Stéphane Degout as Raimbaud, friend of the Count and Italian bass-baritone Michele Pertusi as tutor to the Count.

This was another glorious performance, which brought us to that high level of pleasure that we always want when we see an opera, this time, mainly due to the presence of three of the greatest Rossinian singers of our time.

There is a very interesting recording with Juan Diego Flórez, Stefania Bonfadelli and Marie-Ange Todorovitch, conducted by Jesus Lopez-Cobos.


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7 comentários:

  1. Concordo totalmente com a sua crítica, FanáticoUm!

    Espectáculo operático verdadeiramente... espectacular!

    O sentido de comédia de Florez, Damrau e Didonato é exímio, complementado com qualidade vocal superlativa que temos testemunhado noutras alturas. Nascermos com um dom já é um previlégio. Estes cantores nasceram, pelo menos com estes dois.

    Louvo também a atitude do Florez. Deve ter sido ainda mais estimulante e mágico cantar minutos depois de se ser Pai.

    Damrau já tinha uma voz sublime mas agora, depois de ser Mãe e talvez um pouco na mesma linha da Netrebko, a voz parece num patamar ainda mais acima (se isso é possível...). E nada tem a ver com o facto de ser "som MEtlive".

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  2. Eu hoje estaria como a Beatriz Costa: 5 ***** porque não posso dar mais.
    E parabéns ao Florez pelo nascimento do Leandro.

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  3. Um espectáculo aprovado por unanimidade :-) Vozes maravilhosas, actuação inspirada, encenação muito simpática... E ainda a oportunidade de estar com alguns amigos da blogosfera e conhecer mais alguns ao vivo.
    Por isso tudo, bem hajam Rossini, o Met e a Gulbenkian.

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  4. @ wagner_fanatic,

    Caro wagner_fanatic, companheiro de blogue, nem imagina como gostei de ler este seu comentário. Acho que agora compreende melhor por que motivos eu acho que o belcanto é também uma forma superior de expressão artística operática. Não digo que é a contrapartida de Wagner porque, em relação a este marco indelevel da história da música ocidental, já estou rendido e convencido há muito, como bem sabe. Mas a arte operática não se esgota em Wagner, como ambos sabemos.
    Um abraço amigo.


    @ Paulo,

    É verdade, eu próprio considero que foi 5***** porque este é o limite máximo. Sou suspeito porque gosto particularmente dos 3 principais cantores desta ópera mas, mesmo que assim não fosse, foi uma tarde excelente no que ao canto diz respeito. E o condimento de o Flórez ter sido Pai meia hora antes do espectáculo foi engraçado.
    Finalmente, para além de ser sempre um prazer falar consigo porque aprendo sempre algo, fico-lhe grato por me ter apresentado a Gi.

    @ Gi,

    Gostei muito de a conhecer pessoalmente. É sempre uma experiência singular saber quem está por detrás dos blogues que seguimos com admiração. Como refere, o espectáculo foi fantástico mas, para mim, conhecê-la pessoalmente foi uma mais valia da tarde, dado ser um admirador confesso do seu blogue, que encontrei graças ao Paulo do blogue Valkirio. Muito obrigado por este seu primeiro comentário aqui no nosso espaço.
    Cumprimentos musicais.

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  5. Caro FanaticoUm

    Mais uma vez um excelente comentário. Seria de esperar uma récita de nível elevadíssimo com três cantores deste calibre. Uma amiga minha que tem o "privilégio" de viver em NY, assistiu à estreia e achou extraordinárias as prestações de Flórez e DiDonato. Damrau segundo ela, encolhe a voz no sobre-agudo, o que lhe muda um pouco a cor e diminui a potência. De qualquer forma, para mim, Damrau é um dos melhores sopranos da actualidade.
    Quanto ao feito de Flórez ter cantado na noite em que lhe nasceu um filho, fez-me lembrar o sentido de responsabilidade e respeito pelo público da grande Dame Joan Sutherland que cantou na noite em que lhe morreu a mãe (uma Baetrice di Tenda, se não estou em erro).

    Cumprimentos musicais

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  6. @ Alberto,

    Teria gostado imenso de assistir, pois é o seu género preferido e foi um festival de belcanto. Também li críticas no sentido da que relatou relativamente à Damrau. Talvez isso tenha acontecido na noite de estreia, mas na récita que assistimos foi esplendorosa e os sobre-agudos tiveram qualidade idêntica a todas as outras notas. Também foi mãe há pouco tempo, pelo que se ouve, a maternidade faz bem a estas belas vozes.

    O Florez foi, de facto, um Senhor. Mesmo tendo em conta que havia transmissão para todo o mundo, não sei quantos com a fama deste homem não cancelariam, dado que o filho (o primeiro) nasceu apenas uma hora antes do início da récita e ele, disse no intervalo à Fleming, não dormiu nada toda a noite. E não foi por precisar de fama pois é um dos cantores que, onde quer que vá cantar, esgota sempre todos os teatros.

    Também a DiDonato é digna de louvor. Vi-a uma vez a cantar a Rosina de cadeira de rodas, pois havia fracturado um pé na récita anterior, mas também não cancelou (e foi magnífica vocalmente).

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  7. Grandes profissionais todos eles. Tão admirável quanto Florez não ter cancelado o espectáculo é o bem que cantou depois de uma noite sem dormir e da excitação do nascimento.

    FanáticoUm, muito obrigada pela sua gentileza. Não foi, no entanto, a primeira vez que aqui comentei. De repente, lembro-me de ter comentado quando da reportagem feita pelo wagner_fanatic dos 70 anos de Placido Domingo em Madrid.

    Até breve :-)

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