No passado dia 3 de Maio de 2010, o palco da Alte Oper em Frankfurt teve o privilégio de ser pisado por aquela que é, sem qualquer margem de dúvida, a "Primadonna Assoluta" do Belcanto nos nossos dias: Edita Gruberova.
A célebre e já legendária cantora eslovaca, que conta já com 63 anos de idade, continua a encantar o público com a sua magnífica arte, a sua inimitável presença em palco e, sobretudo, com o poder quase milagroso da sua voz: límpida, cristalina, muito poderosa e capaz de acrobacias quase inacreditáveis.
Foi acompanhada pela Münchner Symphoniker Orchester, que foi dirigida pelo maestro ucraniano Andriy Yurkevych.
O programa seguiu o formato clássico de árias de ópera intercaladas por peças orquestrais (abertura de "La fille du régiment" de Donizetti, abertura de "Un giorno di regno" de Verdi, prelúdio do primeiro acto de "La Traviata" do mesmo compositor, abertura da "Norma" de Bellini e, finalmente, a "Dança das horas" da ópera "La Gioconda" de Ponchielli).
A primeira aparição de Edita Gruberova, foi para cantar a ária inicial de Lucrezia do primeiro acto de "Lucrezia Borgia" de Donizetti: "Com'é bello!". Mal a cantora entrou em palco, e antes sequer de cantar, o público saudou-a com uma fortíssima e demorada ovação, demonstrativa da grande admiração e respeito que o público detém pela grande Gruberova.
Bastou a primeira frase - "Tranquilo ei posa" - emitida com um expressivo crescendo e decrescendo, para que todos fossem imediatamente transpostos para uma outra dimensão: a do mais puro e sublime canto lírico.
Seguiram-se as duas árias encadeadas do terceiro acto da ópera "Lucia di Lamermoor" (muitas vezes referida, como a "cena da loucura de Lucia"): "Il dolce suono - Sparge d'amaro pianto". Aqui, a Gruberova atingiu, sem dúvida, o patamar do milagre vocal e interpretativo. A coloratura irrepreensível, os agudos emitidos de forma perfeita, os pianissimi inacreditáveis nos agudos, o dramatismo, o poder interpretativo de quem encarna verdadeiramente a personagem, em suma, a perfeição! Até alguns gestos, como, por exemplo, a dada altura as duas mãos juntas a apontar para baixo, como que a segurar o punhal com que havia ferido mortalmente Edgardo, me fizeram recordar a última vez em que a Gruberova interpretou este mesmo papel em Viena, na Wiener Staatsoper. Foi uma récita memorável, em Maio de 2009, na qual a Gruberova, apesar de já contar com 62 anos de idade nessa data, foi a Lucia mais jovem, inocente e transcendente que pode ser apreciada nos nossos dias.
Mal chega ao fim a primeira parte desta ária, o público levanta-se e aplaude demoradamente de pé. Todos, desde o mais jovem ao menos jovem, desde o espectador da primeira fila da plateia, até àquele que está no recesso mais recôndito da sala, gritam incessantemente: "Brava!!!" Os aplausos parecem não ter fim, fazendo quase crer que o concerto havia chegado ao seu fim. Mas na verdade, ainda estava longe de terminar e, entre muitas outras coisas, ainda nos faltava ouvir, concretamente, a segunda parte dessa mesma ária: "Sparge d'amaro pianto".
E aqui, uma vez mais, a Gruberova confirmou todo o vigor dos aplausos que já havia recebido. Todas as acrobacias vocais que esta ária exige, foram executadas na perfeição. Particularmente impressionante foi o trilo agudo que a cantora executou quando diz "per me": o trilo foi iniciado em forte, para depois prosseguir num decrescendo, até atingir o pianissimo, num momento em que o trecho sofre uma modulação, isto é, muda de tonalidade. Impressionante! Nesse momento, sentiu-se perfeitamente o público emitir um "Ah!" de espanto, perante aquela execução verdadeiramente inacreditável! Como é possível uma voz humana fazer tal coisa?! Sem dúvida, hoje em dia, somente a Gruberova é capaz de fazê-lo.
Uma vez mais, o público aplaudiu de pé e demoradamente. Após esta dificílima sequência de árias, seria expectável um intervalo. Mas não. A Gruberova, apesar dos seus 63 anos, ainda teve fôlego para, logo em seguida (após ter assistido, sem sair do palco, à execução do prelúdio do primeiro acto de "La Traviata"), executar de forma impressionante a difícilima cena e ária de Violetta: "E strano! - Ah, fors'e lui - sempre libera". Foi uma interpretação espantosa, em que a última parte ("sempre libera") foi executada com um entusiasmo e uma energia espantosas. Bravissima, Edita!
Mas ainda nos aguardava uma segunda parte verdadeiramente gratificante. Após a abertura da ópera "Norma", Edita Gruberova cantou a ária de Elvira "O rendetemi la speme... Vien, diletto", da ópera "I puritani" de Vincenzo Bellini. Nesta ária, Gruberova maravilhou o público com a sua coloratura inatingível, executando escalas e cromatismos que vocalizava duma forma perfeita e onde os seus glissandi eram tão nítidos que se conseguia ouvir nota a nota, sem se perder a sensação de deslizamento rápido que os caracteriza.
Após a "Dança das horas" de Ponchielli, a Gruberova ofereceu-nos uma ária dificílima e raras vezes executada, da ópera "Hamlet" de Ambroise Thomas: "A vos jeux". Foi arrepiante! O dramatismo, a dor que a personagem transmite, tudo isso veiculado entre acrobacias vocais, em que a voz tem de ascender deste as notas mais graves até às hiperagudas, atingindo mesmo perto do fim, creio que um fá hiperagudo (uma nota que poucas cantoras conseguem atingir) e que dá a sensação dum grito. A este "grito" segue-se, num registo muito mais grave, a frase emitida com grande dor e pungência: "por toi je meurs!". Arrepiante! O público irrompe numa ovação histórica! Todos aplaudem de pé. Do varandim do primeiro balcão junto ao palco, algumas pessoas do público desfraldam um cartaz onde se lê: "Edita: La legenda!" - Edita, a Lenda!
E, de facto, assim é: temos a sensação nítida de estarmos perante uma lenda viva. Perante alguém que, quando se retirar, não deixará nenhuma "sucessora" para o título de "Primadonna Assoluta".
Perante a intensidade e a duração dos aplausos, Edita Gruberova decide oferecer ao público dois números extra-programa: "Oh luce di quest'anima" da ópera "Linda di Chamounix", de Donizetti e, por fim, a famosa ária de Adele "Spiel ich die Unschuld vom Lande" da opereta "Die Fledermaus" de Strauss. Neste última ária a cantora teve a oportunidade de evidenciar a sua faceta jocosa de comediante, demonstrando o seu bom humor e a capacidade de "brincar" com a voz.
Foi, sem dúvida, um momento memorável para todos aqueles que tiveram a oportunidade e o privilégio de estar presentes neste concerto de "Die Gruberova" - A Gruberova - como é muitas vezes referida na Alemanha e Áustria. Todos puderam confirmar que o nome da Raínha do Belcanto é Edita Gruberova. Brava!
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ResponderEliminarUma estreia com um relato tão pormenorizado que quase podemos acompanhar o que por lá se passou, faltando "apenas" o essencial - a Edita Gruberova, a orquestra e o público!!
Ficamos na expectativa de futuros contributos tão informativos quanto este, para podermos ter uma ideia, ainda que remota, do que se vai passando por aí, já que não podemos assistir ao vivo...
Vejo com um bocadinho de apreensão essa de "Prima donna assoluta". Afinal, para que serve uma velha quando há um leque já tão bom de jovens? Claro, para nos continuar a deleitar... É só por isso que eu questiono a "assoluta". Não confundir nas minhas palavras velha com obsoleta, claro :-P
ResponderEliminarGosto muito de como expõe o evento. Afinal, isto trata-se de um evento social e cultural. às vezes, também gosto de fazer uns apontamentos... Como cá em Lx, com a malta aplaudindo entre movimentos xD
(Bem vindo ao blog - se é que me cabe a mim dizê-lo.)
Plácido Zacarias: agradeço que não fale daquilo que desconhece.
ResponderEliminarA descrição é fantástica, mas mais fantástico deve ser ouvir "A Gruberova" ao vivo...
ResponderEliminarO comentário do plácido zacarias é do mais saloio que se pode escrever... É pena porque este blogue (que só agora descobri e gostei muito) merece mais...
Chamar velha só por causa da idade!!! Apetece dizer: - velhos são os trapos...
Caro Anónimo: se quer entrar assim, força. Agora - faça é o favor de assinar.
ResponderEliminarAssisti no dia 4 de julho no ambito do festival de Munique a uma récita de ROBERTO DEVEREUX de Donizetti com a Edita Gruberova no papel principal, acompanhada por Sonia Ganassi e Jose Bros.
ResponderEliminarEm relação á orquestra dirigida por Friedrich Haider, só posso dizer que é sempre um prazer ouvir Donizetti tocado de uma forma tão exuberante.
Edita Gruberova foi sem qualquer dúvida a estrela da noite. Nota-se a falta de frescura na voz, mas a coloratura é maravilhosa, mantêm uma agilidade vocal com pianissimos etéreos ( sem rivalizar com a Caballé) e uma capacidade impressionante de actuar em palco.
Em relação ao restante elenco saliento apenas a Sara de Sonia Ganassi, com uma voz bonita,redonda e bem colocada. José Bros fez um Roberto justo sem ser demasiado empolgante. Paolo Gavanelli é um baritono verdiano com uma bela voz escura e redonda que desempenhou um duque de Nottingham eloquente.
A Edita Gruberova continua a ser aos 62 anos uma cantora a ter como referencia, nomeadamente no papel de Norma que vai fazer no próximo mês no festival de Salzburg, que eu já tive a oportonidade de ver em viena à 2 anos com a Elina Garanca.
Como possivel sucessora penso que a Diana Damrau está no bom caminho. Vamos ver.
Der Geisterbote
Também estive presente nessa récita do Roberto Devereux, no dia 4 de Julho, no âmbito do Münchner Opernfestspiele. Foi uma noite memorável, em que a Gruberova, como sempre, foi sublime. Apenas discordo da referência em relação à frescura da voz, que continua luminosa, límpida, cristalina, ágil e intacta.
ResponderEliminarJá não é a primeira vez que assisto ao Roberto Devereux com a Gruberova e com a Sona Ganassi. Quanto a mim, a Sonia Ganassi esteve bastante bem, apesar de se notar algum cansaço na voz, desta vez.