Aida é uma ópera composta em 1871 por Giuseppe Verdi
(1813-1901), a partir de um libretto de Antonio Ghislanzoni (1824-1893), por
seu turno, fundado num argumento elaborado pelo egiptólogo Auguste Mariette (1821-1881),
posteriormente, expandido por Camille Du Locle (1832-1903) com base em fontes
tão diversas como Nitteti de Pietro
Metastasio (1698-1782) ou Bajazet de Jean
Racine (1639-1699).
A encenação de José Antonio Gutiérrez, estreada em 2003,
propõe um resgate evocativo de algumas criações cenográficas da autoria do
emérito artista plástico catalão Josep Mestres i Cabanes (1898-1990),
remontantes a 1945, a
cargo de Jordi Castells. Por intermédio da multíplice disposição de diversos
telões modelados em função dos elementos cénicos a representar (colunas,
templos, vegetação, interiores), Gutiérrez sucede na obtenção de efeitos
visuais, apropriadamente, sugestivos da monumentalidade, comummente, associada
a encenações de cariz mais tradicional, evitando, contudo, resvalar para a mera
ostensão de um fausto, cenicamente, vácuo e, em derradeira instância, condicionador
da dramaturgia que a obra encerra.
Em Radames, Marcello Giordani surgiu a um nível, genericamente,
recomendável, não obstante um notório défice de emissão no registo mais grave, tendente
à inaudibilidade. Dotado de um instrumento robusto com suficiente volume e
generosa extensão, o tenor logrou alcançar um plano assinalável nos duetos
nucleares dos terceiro e quarto actos, maugrado a evidenciação de alguns óbices
no ensejo de apianar no limiar da região aguda. Dramaticamente, lamenta-se a
expressão, ainda que esporádica, de trejeitos algo desadequados.
Do mesmo modo, a Amneris de Ildiko Komlossi (substituindo
Luciana D’Intino) denotou, num estágio inicial, uma vocalidade algo
destimbrada, acrescida de uma laboriosa projecção. Conquanto, transversalmente,
comprometida por um insistente vibrato, ameaçando distorcer, amiúde, o
fraseado, releva-se, sobremaneira, o palpável engajamento dramático numa performance,
parcialmente, congenial, culminando num quarto acto de relevante efeito.
Em récita que assinalou o desfecho da carreira artística, o
veterano Juan Pons compôs um Amonasro, dramaticamente, assertivo, numa
abordagem convincente. Conservando suficiente robustez vocal, mormente, no
registo médio, o barítono catalão sucedeu em defender-se, eficazmente, em ambos
os extremos da tessitura, domando, com propriedade, a linha de canto. Um
epílogo comovedor, fragorosamente ovacionado pelo público.
Numa caracterização irrepreensível, o Ramfis de Vitalij
Kowaljow primou pela nobreza tímbrica, num instrumento assaz homogéneo, não
obstante a ausência da expectável ressonância nos graves, designadamente, na
cena com Radames no Templo de Vulcano.
Stefano Palatchi patenteou a necessária autoridade na
assunção do monarca egípcio, a despeito de uma generalizada debilidade na
coluna de som, enquanto Josep Fadó (um mensageiro) e Elena Copons, no papel de
uma sacerdotiza, lograram prestações correctíssimas, integrando-se
favoravelmente no conjunto.
A princesa etíope da norte-americana Sondra Radvanovsky foi,
absolutamente, notável. Possessora de um instrumento de basta amplitude e
privilegiando uma emissão, constantemente, sul
fiato, assombrou pelo incessante desenho e suspensão de uma insuspeita
pureza tímbrica na melhor tradição verdiana, considerando a matriz de laivos,
intrinsecamente, metálicos característica do material vocal. O soprano foi,
inequivocamente, modelar, na negociação da terrífica cadência em O patria mia, sem qualquer decréscimo de
qualidade, concomitantemente, explorando de modo activo a paleta dinâmica, num exercício
de controlo admirável, evidenciado pela sucessiva abordagem triunfante dos pianissimi. Destaca-se, de forma
análoga, a consistência do jogo cénico, contribuindo para um salutar envolvimento
dramático no âmbito das possibilidades ofertadas pela natureza da encenação.
Uma estupenda intérprete do papel-titular.
Sob a batuta de Renato Palumbo, o Coro e a Orquestra do Gran
Teatre del Liceo exibiram-se em plano idiomático, não obstante um relativo pendor
para a adopção de tempi algo lestos
por parte do maestro italiano.
****
AIDA: Gran Teatre del Liceo, Barcelona - 30 de Julho de 2012
Aida is an
opera composed in 1871 by Giuseppe Verdi (1813-1901), after a libretto by
Antonio Ghislanzoni (1824-1893), in its turn, based on a story created by the
Egyptologist Auguste Mariette (1821-1881), expanded, afterwards, by Camille Du
Locle (1832-1903) from such diverse sources as Pietro Metastasio’s Nitteti and Jean Racine’s Bajazet.
Premiered
in 2003, José Antonio Gutiérrez’s staging proposes an evocative restoration of some
scenographic creations designed by the illustrious Catalan artist Josep Mestres
i Cabanes (1898-1990), dated from 1945, adapted by Jordi Castells. Through the
manifold disposition of several screens modelled according to the scenic
elements to represent (columns, temples, vegetation, interiors), Gutiérrez
succeeds in achieving visual effects, appropriately, suggestive of the
monumentality, usually, associated to more traditionally-natured stagings,
avoiding, however, slipping into the mere ostentation of a scenically hollow
pageantry and, ultimately, the conditioning of the work’s dramaturgy.
As Radames,
Marcello Giordani emerged at a, generally, commendable, level, notwithstanding,
a notorious deficit of emission in the lower register, tending to inaudibility.
Gifted with a robust instrument with sufficient volume and generous extension,
the tenor succeeded in reaching a remarkable level in the fundamental duets of
the third and fourth acts, despite evincing some difficulties when taking a
note in pianissimo at the upper part of the voice. Dramatically, one regrets
the expression, tough sporadic, of somewhat inappropriate mannerisms.
Likewise, the
Amneris of Ildiko Komlosi (subbing for Luciana D’Intino) denoted, at an early
stage, a whitish vocalism, accompanied by an elaborate emission. Even though,
transversely, compromised by an insistent vibrato, threatening, in several
instances, to distort the phrasing, the blatant dramatic involvement stood out
in a, partially, congenial performance, culminating in a fourth act of nice
effect.
In his
farewell performance, veteran Juan Pons drew a, dramatically, assertive Amonasro,
in a convincing portrayal. Preserving sufficient vocal strength, especially, in
the middle voice, the Catalan baritone managed to defend himself, effectively,
at both ends of the range, taking hold of the vocal line, with property. A
moving epilogue, soundly cheered by the public.
In a
faultless depiction, Vitalij Kowaljow’s Ramfis distinguished himself through
the nobility of the tone, in a markedly even instrument, despite the lack of
the required resonance in the lowest notes, namely, in the scene with Radames
at the Vulcano Temple.
Stefano
Palatchi exhibited the expected authority, in spite of a generalized fragility
in the sound column, while Josep Fadó (a messenger) and Elena Copons, in the
role of a priestess, turned in extremely correct performances, blending
themselves, positively, in the ensemble.
The
Ethiopian princess of the American Sondra Radvanovsky was, absolutely,
remarkable. Possessing an instrument of great amplitude and favouring an
emission, constantly, sul fiato, she astounded
by the incessant spinning and sustaining of an unsuspected purity of tone in
the best Verdian tradition, considering the intrinsically metallic nature of
the voice. The soprano was, unequivocally, exemplary in the negotiation of the
terrific cadenza in O patria mia,
without any loss of quality, at the same time, exploring, actively, the dynamic
range, in an admirable exercise of control display, evinced by the triumphant
way in which she, successively, approached pianissimi.
One should also highlight the consistency of the stage deportment, contributing
to a wholesome dramatic involvement, within the possibilities offered by the character of the staging. An outstanding
interpreter of the title-role.
Under the
baton of Renato Palumbo, the Gran Teatre del Liceo Chorus and Orchestra
presented themselves in an idiomatic level, notwithstanding the Italian
maestro’s penchant for the adoption of rather fleet tempi.
****
@ Hugo,
ResponderEliminarObrigado por este magnífico texto. Já tive oportunidade de assistir a esta produção da Aida mais de uma vez (mas não com um elenco deste calibre) e fiquei deveras impressionado, sobretudo com a notável obra cenográfica.
E que bonita homenagem a Juan Pons!