domingo, 24 de julho de 2011

CENDRILLON – Royal Opera House, Londres, Julho de 2011

 (review in English below)

Cendrillon é uma ópera de Jules Massenet com libretto de Herni Cain baseado no conto de fadas Cendrillon (Cinderela) de Charles Perrault.

Era uma vez… um conto de fadas para o esplendor das vozes femininas!



A história é bem conhecida. Nesta versão Lucette (Cendrillon, Cinderela) vive com Pandolfe, o pai que casou em segundas núpcias com madame de la Haltière, uma madrasta terrível que tem duas filhas. Todos se preparam para um baile no palácio do príncipe Charmant. A madrasta proíbe Lucette de ir ao baile. Aparece uma fada que a transforma numa irreconhecível e bela jovem mas avisa-a que deve regressar antes da meia noite. No baile o príncipe rejeita todas as pretendentes e apaixona-se de imediato por Lucette. À meia note desaparece, mas perde um sapato. De novo em casa, a madrasta descreve o baile a Lucette. Demasiado triste, decide fugir para a floresta para aí morrer. Aparece de novo a fada e, na floresta, encontra-se com o príncipe e cantam o seu amor. O pai encontra-a muito doente, leva-a para casa e diz-lhe que, enquanto dormia, falou num príncipe. Lucette pensa que afinal tudo foi um sonho. O príncipe pretende encontrar a sua amada e chama todas as jovens que foram ao baile para provarem o sapato. A madrasta tem a certeza que será uma das filhas a escolhida. Todas provam o sapato que não serve a nenhuma. Surge Lucette com a fada e é imediatamente reconhecida pelo príncipe. Toda a família fica subitamente feliz e cumprimenta a futura rainha.



A produção de Laurent Pelly é muito bem conseguida para o conto de fadas. O cenário é constituído por painéis onde está escrita a história. Têm muitas portas e movem-se ao longo do espectáculo oferecendo-nos quadros muito diversos e de grande efeito visual, mantendo sempre as páginas da história como elemento central.
Os trajos são muito engraçados e exageradamente peculiares. Todas as personagens femininas aparecem de encarnado, com excepção das criadas (de cinzento), da madrasta (inicialmente de roxo), suas duas filhas (de cor de rosa e verde claro) e da fada (de azul celeste). Lucette aparece de cinzento mas, quando transformada pela fada, de branco prateado. Os homens, de fato preto, colete e camisa branca, meias encarnadas e cabeleiras fartas.





A direcção musical foi do maestro francês Bertrand de Billy. Foi o meu primeiro contacto com esta ópera e não achei que, musicalmente, fosse uma peça superior. Houve trechos de inegável beleza, muito favorecidos pela qualidade da interpretação vocal mas, de uma forma global, não achei a obra ao mesmo nível de outras de Massenet.



Joyce DiDonato, mezzo-soprano americano, foi uma Lucette (Cendrillon) extraordinária. A voz é de uma extensão invulgar (incluindo pelos terrenos de soprano), de timbre belíssimo, de potência avassaladora. Já várias vezes referi que aprecio muito DiDonato. Acho que consegue transmitir vocalmente os diferentes estados de alma como poucas. Aqui foi ora triste e melancólica ora alegre e radiosa. Em cena foi sempre muito credível. É uma actriz que canta. É sempre um privilégio ouvir Joyce DiDonato.





A madrasta Madame de la Haltière foi interpretada pelo contralto polaco Ewa Podles. Um colosso vocal e artístico! A encenação ajudou, mas a sua voz grave, bela e sempre afinada encheu a sala e maravilhou todos os presentes. O registo grave é absolutamente único. Uma cantora a não perder. Brutal!




Outra enorme surpresa foi o mezzo-soprano britânico Alice Coote que interpretou o príncipe Charmant. Mais uma voz sensacional, em potência e beleza tímbrica.. O papel é extenso e esteve sempre afinada e nunca perdeu qualidade. Cenicamente foi perfeita, de uma agilidade invulgar e parecia mesmo um rapaz. Fantástica.



Para completar o conjunto de vozes superiores que se juntaram nesta produção falta referir o soprano cubano Eglise Gutiérrez que interpretou a Fada. Esteve ao nível das outras solistas, com uma voz sempre bem colocada, audível sobre a orquestra e recheada de notas agudas de qualidade. A coloratura foi também notável.



Uma palavra para o barítono francês Jean-Philippe Lafont, que foi Pandolfe, pai de Lucette. Imediatamente antes do início da récita fomos informados que estava doente, com uma cólica renal por cálculos (pedras no rim), mas tentaria cantar. E fê-lo com grande nível, dado que é um óptimo barítono. Só no andar se percebeu que não estava totalmente em forma. Obrigado Jean-Philippe por não ter cancelado e não nos ter privado de apreciar a sua voz.



Os restantes cantores, actores e o coro estiveram bem, mas a tarde foi mesmo das Senhoras que nos ofereceram interpretações inesquecíveis em todos os registos vocais.










*****



CENDRILLON, Royal Opera House, July 2011

Cendrillon is an opera by Jules Massenet with libretto by Herni Cain based on the fairy tale Cendrillon (Cinderella) by Charles Perrault. 

Once upon a time ... a fairy tale for the splendour of the female voices!
The story is well known. In this version Lucette (Cendrillon, Cinderella) lives with Pandolfe, his father who marriage for a second time with Madame de la Haltière, a terrible stepmother who has two daughters. All are preparing for a ball in the palace of Prince Charmant. Lucette's stepmother forbids her to go to the ball. A fairy appears and transforms her into an unrecognizable and beautiful young woman, but warns her that she should come back before midnight. At the ball the prince rejects all girls and falls immediately in love by Lucette. At midnight she disappears, but leaves a shoe behind. At home again, the stepmother describes the ball to Lucette. Too sad, she decides to escape to the forest to die there. The fairy appears again and in the forest she meets the prince and both sing their love. Her father finds her very sick, takes her home and tells her that while she slept, she spoke about a prince. Lucette thinks that all was a dream. The prince wants to find his beloved and calls all the girls who went to the ball to test the shoe. The stepmother is sure that one of her daughters will be chosen. The shoe does not fit any of the girls. Lucette appears with the fairy and is immediately recognized by the prince. The whole family is suddenly happy and greets the future queen.
Laurent Pelly’s production is excellent for the fairy tale. The scenario consists of panels where the story is written. They have many doors and move throughout the show giving us very different scenes of great visual effect, keeping the pages of history as a central element.
The costumes are very funny and overly quirky. All the female characters appear in red, with the exception of the maids (gray), the stepmother (initially purple), her two daughters (of pink and light green) and the Fairy (light blue). Lucette appears in gray but when transformed by the fairy, she becomes silvery-white. The men were in black suit, vest and white shirt, red socks, and bushy hair.
The musical director was the French conductor Bertrand de Billy. It was my first contact with this opera and I did not think it was a musical masterpiece. There were parts of undeniable beauty, much favoured by the quality of vocal performances, but on a global basis, I did not find the work at the same level as others of Massenet.
Joyce DiDonato,  American mezzo-soprano, was an extraordinary Lucette (Cendrillon). The voice is of an unusual extent (also throughout the soprano territory), with beautiful tone and overwhelming power. I have often mentioned that I really appreciate DiDonato. I think vocally she manages to convey the different feelings of the character as few others. Here she was either sad and melancholic or happy and radiant. Artistically she was always very credible. She is a singing actress. It is always a privilege to see Joyce DiDonato.
The stepmother, Madame de la Haltière, was interpreted by Polish contralto Ewa Podles. A colossal presence both vocal and artistic! The staging helped, but her voice, always in tune filled the room and fascinated all audience. Her bottom notes were absolutely unique. She is a singer not to be missed whenever possible. Fabulous!

Another huge surprise was the British mezzo-soprano Alice Coote who played Prince Charmant. She was another sensational voice, both in power and beauty of timbre. The role is extensive and she has always been in tune and never lost quality. Artistically she was perfect, with an uncommon agility, and really looked like a boy. Fantastic.
To complete the set of top quality voices that joined in this production I need to mention Cuban soprano Eglise Gutiérrez who played the Fairy. She was at the same level of the other soloists, with a voice well projected, audible over the orchestra and filled with high notes of quality. The coloratura was also remarkable.
A word also about French baritone Jean-Philippe Lafont, who played Lucette’s father Pandolfe.  Immediately before the performance we were informed that he was ill with kidney stones, but he would try to sing. And he did it with high quality, since he is a great baritone. Only when he walked we could realize that he was not fully well. Thank you Jean-Pierre for not having cancelled. We could benefit from your voice.

The remaining singers, actors and chorus were all well, but the afternoon was really of the ladies who have given us memorable interpretations in all vocal female registers.
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12 comentários:

  1. A Joyce DiDonato é um portento, e adoraria "ouver" Ewa Podles ao vivo. Ficarei atenta também aos outros cantores. Obrigada, FanaticoUm.

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  2. I would really enjoy this opera. I teach the history of fairy tales in college, and this would make a great field trip for the class.

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  3. Thank you so much for the nice pictures!
    For me the costume in the opera is such a crucial point. Unfortunately in these days it's seldom to see decent comstume.
    The costume in this opera is just fantastic: Timeless and glamorous! Especially I love those balloon dresses.
    Who is the costume designer?

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  4. Caro FanaticoUm

    Devo confessar-lhe que estou invejoso! Estou mais invejoso com esta récita do que com a da Tosca (ao contrário do que penso ser a maioria da opinião dos leitores do blogue).
    Tal deve-se essencialmente ás vozes. Concordo em parte consigo no que respeita a DiDonato. A cantora é detentora de uma voz extraordinária, que infelizmente nunca ouvi ao vivo, e de uma capacidade de representação fora do comum (a nível cénico e vocal). Não a considero perfeita porque lhe denoto uma perda significativa de potência no registo grave. Pode-se sempre dizer que DiDonato não é um mezzo verdiano e por isso o registo grave é menos importante, de qualquer forma devemos lembrar-nos de Marilyn Horne, por exemplo, que, em repertório identico tinha um registo grave portentoso. De qualquer forma, penso que DiDonato é uma das melhores cantoras da actualidade.

    Já Ewa Podles, para mim, "joga" numa liga superior e é bem menos "famosa". A sua voz de verdadeiro contralto é do mais extraordinário que temos nos dias de hoje. Podles tem um extensão vocal superior a três oitavas (chega ao Ré sobre-agudo fazendo inveja a alguns sopranos) e a cor é praticamente unifirme, isto é, mesmo em notas de soprano a sua voz continua escura como um contralto. As notas graves são um portento e a agilidade é extraordinária. A juntar a isto tudo, Podles é também uma excelente actriz.
    Ouvi a cantora em Barcelona numa récita da Lucrezia Borgia em que interpretou Orsini ao lado de Gruberova. O Liceu veio abaixo na ária do último acto em que a cantora introduziu umas variações "à espanhola".

    Eglise Gutiérrez é um bom soprano, que nunca ouvi ao vivo.
    Não conheço Jean-Philippe Lafont, mas de qualquer forma, é assinalável que tenha cantado mesmo com a cólica renal.

    Cumprimentos musicais.

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  5. @ Gi,
    Foi um espectáculo deslumbrante, para os ouvidos e para os olhos. E com as Senhoras na sua máxima qualidade vocal...

    @ JJ,
    Yes, a great field trip for the class, you can be sure. Do not miss it if it comes to Florida.

    @ lotus-eater,
    The costumes were fantastic (the pictures do not make real justice ti them). Costume designs were by Laurent Pelly (yes, the Director) and Jean-Jacques Delmotte.

    @ Alberto,
    Obrigado pelo seu extenso e informativo comentário. Sem qualquer desrespeito pelos grandes cantores do passado (sabe que os admiro muito, por comentários que tenho feito no seu blogue), dou particular importância aos actuais, porque são aqueles que, com sorte e algo mais, poderemos ver ao vivo. E nada ultrapassa uma boa récita! Por isso o meu ênfase nos cantores dos dias de hoje. E nesta récita juntaram-se algumas das melhores.
    Devo confessar o meu particular apreço por Joyde DiDonato (em breve mais alguma coisa escreverei) mas concordo que Ewa Podles é também uma cantora sensacional.
    Cumprimentos

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  6. Caro FanaticoUm

    Tem razão quanto às comparações com o passado. Aliás hoje em dia há muito bons cantores e não precisamos de os comparar com os do passado. No entanto, o meu comentário à voz da DiDonato, mantém-se, mesmo que não o compare com a Horne. Por exemplo, um mezzo que eu considero de muito boa qualidade hoje em dia é Vivica Genaux, que tem um timbre belo e fora do comum e um regosto grave bastante bem suportado. Infelizmente não sei se é ou não uma boa actriz (não há muito vídeo disponível).
    Um aspecto que acho bastante positivo em DiDonato é a escolha do repertório correcto para a sua voz, o que demonstra inteligência. E já agora, tenho-lhe também muito apreço e, como referi, considero Joyce DiDonato uma das melhores cantoras da actualidade.

    Como "presente" deixo-lhe aqui uma ligação para um vídeo com o excerto da interpretação da Podles na récita de Barcelona. O som não é grande coisa, mas dá para ter uma ideia. Chamos a atenção para as variações todas feitas no registo grave.
    http://www.youtube.com/watch?v=jzwGF34J3fw

    Cumprimentos

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  7. Caro Alberto,
    Muito obrigado pelo seu "presente" referente a Ewa Podles. Aproveito para referir que colocou hoje no seu blogue Outras Escritas um texto que contém uma Semiramide com a cantora que é obrigatória ouvir.

    Voltando à DiDonato, concordo que é muito inteligente na escolha do reportório e entra muito pelos "seus" terrenos, sempre de forma excelente, no meu fraco julgamento.
    Nunca esquecerei uma noite em Londres em que lá me desloquei para ver o Barbeiro de Sevilha, com um elenco de luxo, que incluía DiDonato como Rosina. Apesar de ter partido o pé na récita anterior, não cancelou e cantou numa cadeira de rodas. Não nos privou de ouvir a sua magnífica voz e suspeito que eramos muitos os que lá foram também para isso. Acho que poucas o fariam nos dias de hoje.

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  8. Também gostava de ter ouvisto essa "Cendrillon", principalmente pela DiDonato e pela Podles. A Podles tem uma das vozes mais espantosas que ouvi na vida. Foi no Palácio de Queluz, há já uns bons anos. Inesquecíveis as árias de Vivaldi.

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  9. Laurent Pelly é feliz nas encenações que tem feito e tem tido o sucesso esperado desde que auxiliado por cantores de alto gabarito como os que a Royal Opera costuma oferecer. Mais um sopro de boa música excelentemente relatado, FanaticoUm.

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  10. Caro Fanático,
    pelo visto o espetáculo valeu cada centavo pago para entrar!
    Fico imaginando a qualidade, pelos seus elogios, haja visto o seu altíssimo grau de exigência.
    Às vezes chego a ouvir e ver o movimento dos cantores/atores que você critica. Fantástico!!!
    Um grande abraço do Brasil

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  11. É uma pequena que os programadores nacionais não aproveitem as vindas constantes de Ewa Podles a Espanha para a trazer cá. Pedi ao Sr. Pinamonti que a trouxesse e torceu o nariz - mais tarde, na Corunha, encontrei-o de queixo caído num concerto em que ela cantou a "Giovanna d'Arco" do Rossini e dizia "parece que os anos não passaram por ela!". Escrevi à Gulbenkian a pedir para a integrar no ciclo das vozes mas acabou o ciclo das vozes e nunca obtive resposta. Já falei ao sr. Niemen mas ele também não parece interessado...
    Como disse o Alberto, Ewa joga numa liga superior mas o mediatismo do palminho de cara enche mais as salas. A DiDonato é uma boa mezzo mas como Cendrillon fixou aquém das expectativas. Talvez tivesse sido melhor como príncipe mas não era "title role". Pode ser que no DVD, que é suposto ser editado, soe melhor. Como dizia a Amália "com a electrónica que agora há praí" talvez fique perfeita.

    Jorge António

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  12. Caro Jorge António,
    Muito obrigado pelo seu comentário. Devo confessar que gostei muito da DiDonato como Cendrillon, acho que ela escolhe sempre bem os papeis que interpreta, de acordo com as potencialidades da sua voz.
    É uma pena não podermos (aparentemente assim será nos próximos tempos) desfrutar da excelência interpretativa da Ewa Podles. É uma cantora excepcional. Esperemos que o inesperado aconteça e que alguém contrate a senhora para nos vir deliciar em Portugal!

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