segunda-feira, 19 de julho de 2010

Lucrezia Borgia com Edita Gruberova - Kölner Philarmonie - 7 de Junho de 2010









































No passado dia 7 de Junho, a cidade de Colónia recebeu, na imponente sala da Kölner Philarmonie, a Primadonna Assoluta do Belcanto - Edita Gruberova - que interpretou um dos seus mais recentes papéis: Lucrezia Borgia.

A já legendária cantora eslovaca, há dois anos atrás (então, com a idade de 61 anos) acrescentou ao seu impressionante repertório mais um dificílimo papel belcantista - Lucrezia Borgia - que estreou em 2008 em versão de concerto, tendo no ano passado estreado esse papel em palco, numa nova produção operática do aclamado encenador Christof Loy.

Aqui, a Gruberova apresenta-se para uma versão de concerto de Lucrezia Borgia, sendo acompanhada por um elenco do qual fazem parte nomes como José Bros (Gennaro), Franco Vassallo (Don Alfonso) e Silvia Tro Santafé (Maffio Orsini). O concerto contou ainda com a presença do Coro da Ópera de Colónia e da WDR Rundfunkorchester, que foi dirigida pelo maestro ucraniano Andriy Yurkevych.

A expectativa é grande e, entre o público, é frequentemente pronunciado o nome de Edita Gruberova.

Todo o palco estava repleto de microfones. O nome da rádio alemã Westdeutschen Rundfunks 3 constava no programa, fazendo crer que o concerto iria ser transmitido por essa estação. Sabe-se, entretanto, que brevemente será lançado um CD de Lucrezia Borgia, com Edita Gruberova, gravado ao vivo, presumivelmente deste mesmo concerto, apesar de Edita Gruberova, a seguir ao concerto de Colónia, ter partido para uma série de récitas de Lucrezia Borgia em Dresden.

O concerto principia. Andriy Yurkevych dirige os primeiros acordes da orquestra, visivelmente satisfeito, pois tudo leva a crer que começava uma grande noite musical. E assim foi.

Tem início o prólogo. O Coro, José Bros e Silvia Tro Santafé, fazem as suas primeiras intervenções e recebem os seus primeiros e merecidos aplausos.

Surge então um momento de silêncio. Do lado esquerdo do palco, ouve-se o som surdo de passos que marcam o estrado de madeira, e eis que surge Edita Gruberova. A sua entrada em cena, com um vestido branco, adornado pelos seus cabelos loiros e os seus olhos intensamente azuis, dá a sensação de termos recebido a aparição luminosa dum ser celestial que subitamente nos visita. De imediato, o público irrompe numa estrondosa ovação e repetem-se as exclamações vigorosas: "Brava! Brava!". Os aplausos, antes mesmo da Gruberova ter feito ouvir a sua voz, parecem não terminar. A cantora, reconhecida, agradece. Com efeito, o esclarecido, erudito e conhecedor público alemão tinha demonstrado claramente qual o principal motivo que o tinha trazido até ali: Edita Gruberova.

Por fim, os demorados aplausos silenciam-se e a orquestra prepara o caminho para a primeira intervenção da Gruberova: "Tranquillo ei posa. Com'é bello! Quale incanto." Logo nas primeiras palavras, a grande cantora confirma a sensação de presença celestial que antes nos havia provocado. Com efeito, dos seus lábios brota o som mais sublime que o ouvido humano pode perceber: uma dinâmica perfeita, equilibrada, de um bom gosto e duma sensibilidade inexcedíveis. Um som puro e cristalino. De salientar a emissão de pianissimi absolutamente miraculosos. O maestro sorri, encantado.

A ária termina com uma sequência incrível de trilos em pianissimo, que a Gruberova executa com uma perfeição absolutamente inefável, comprovando o seu conhecido e aclamado domínio da técnica, aliado a uma capacidade vocal e a um bom gosto inimitáveis. As ovações que se seguem fazem estremecer o recinto: Edita Gruberova, confirmando as qualidades que lhe conferiram o título de Primadonna Assoluta, tinha levado o público ao delírio.

Certamente contagiados pela atmosfera de excelência que foi imprimida por Edita Gruberova, os outros cantores são levados a prestações de muito bom gosto musical e grande entrega.

A primeira intervenção de Franco Vassallo - "Vieni! La mia vendetta" - é arrebatadora. O aclamado baixo italiano, canta essa ária com um vigor impressionante, terminando numa nota aguda, prolongada e em forte, atingindo o limite superior da tessitura dum baixo. O público aplaude intensamente.

O tenor catalão José Bros (um dos filhos do Gran Teatre del Liceu de Barcelona), também se apresenta vigoroso, e premeia o público com notas suspensas que prolonga até ao limite, percebendo-se que a sua entrega é também total. Os fortes aplausos com que o público o premiou, pareceram conferir grande entusiasmo ao cantor que, até ao final do concerto, manteve a sua prestação com grande qualidade.

Ao longo de todo o primeiro acto, os duetos de Gruberova com Vassallo são arrebatadores. Particularmente impressionante é a prestação da Gruberova, que revela uma enorme energia na oposição de Lucrezia a Don Alfonso, quando este a pretende obrigar a envenenar o próprio filho, Gennaro. Impressionante como a Gruberova, mesmo em versão de concerto, consegue transmitir a impressão de estarmos a assistir a uma ópera no palco, tais são as suas capacidades expressivas e dramáticas: além da sua voz, toda a sua gestualidade (de bom gosto, sem excessos), a sua postura e o seu facies, imprimem intenção e vida às suas palavras.

Aliás, não é por acaso que Edita Gruberova é detentora de distintos prémios pela excelência da representação, como é o caso do Prémio Sir Laurence Olivier.

O primeiro acto termina com fortes ovações do público, como é natural.

No intervalo, o público comenta, impressionado a qualidade do espectáculo, com especial relevo para "Die Gruberova" - A Gruberova.

A segunda parte é preenchida com o segundo e último acto. E é aqui que a intensidade dramática da obra atinge o seu clímax. Este acto é particularmente exigente para Gennaro (José Bros) e, sobretudo, para Lucrezia (Edita Gruberova).

É também no segundo acto que Silvia Tro Santafé tem a sua prestação mais importante, com a ária "Il segreto per esser felici", que interpretou com raça. Os aplausos do público foram intensos e muito justos. A jovem cantora catalã, discípula de Monserrat Caballé e Renata Scotto, tendo também completado a sua formação artística na Julliard School de Nova York, é já considerada um dos melhores mezzo sopranos de coloratura da sua geração. Detentora duma voz encorpada, com um timbre quente e escuro, transmite, mesmo na sua aparência física, a sensação duma cantora latina, afirmativa, vigorosa.

Digna de nota, foi também a participação do tenor Thomas Blondelle, que desempenhou o papel secundário de Rustighello, com grande musicalidade e entrega.

As cenas finais constituíram o momento mais alto do espectáculo. Foi arrepiante a ocasião em que Gennaro se prepara para apunhalar Lucrezia. Nesse ponto altamente dramático, que a Gruberova cantou com uma entrega e um dramatismo impressionantes, Edita emite um fortíssimo e inesperado dó sobreagudo, ao qual se segue uma pausa súbita. Orquestra, coro e todos os cantores se silenciam e Edita exclama num registo grave e com uma intenção poderosíssima: "un Borgia sei!"

Um arrepio percorre a nossa alma, quase que sentimos as tábuas do chão estremecer, tal é o poder dramático da Gruberova. Segue-se então um diálogo impressionante, carregado de tristeza e lirismo entre José Bros e Gruberova. Aqui, José Bros tem uma prestação formidável, cantando em voz velada até, por fim, silenciar-se (Gennaro morre).

Segue-se, então, um momento pungente e Gruberova canta "Era desso il figlio mio". A dor da personagem, que sente todo o peso da culpa pela morte do seu próprio filho, que morreu envenenado pelas suas próprias mãos, é admiravelmente transmitida pela Gruberova.

Foi impressionante ver os olhos de José Bros, bem como do tenor Tansel Akzeybek (que desempenhou o papel de Oloferno Vitelozzo) repletos de lágrimas. Estes cantores não conseguem conter a sua emoção e choram em palco com os olhos dirigidos para Edita Gruberova, que a todos faz estremecer com a pungência e a dor com que canta esta magoada ária.

Olho, então, em redor e constato que várias pessoas no público estão a chorar. Esta capacidade de tocar os corações humanos é algo que só um grande talento como o de Edita Gruberova consegue atingir. Não se trata somente de estar muito bem cantado, de tecnicamente ser mais ou menos irrepreensível; é muito mais do que isso. É algo que, simplesmente, não tem outra explicação, a não ser o imenso talento, o imenso dom. Melhor dizendo, é algo que não tem, de facto, explicação.
A este momento de dor, acresce um momento de raiva, em que Lucrezia é devorada por uma imensa culpa e revolta. Toda essa mistura de dor e raiva é cantada duma forma impressionante pela Gruberova: "Sul mio capo il Cielo avventa il suo strale punitor!"

Nesta passagem dificílima, a Gruberova exibe uma coloratura formidável, tendo de ascender desde as notas mais graves, até às mais agudas, em rápidas e turbulentas sequências de notas, que vocaliza sem hesitações.

A ópera termina com a Gruberova emitindo um fantástico, fortíssimo e demorado mi sobreagudo. Arrepiante! O público põe-se imeditamente de pé e aplaude em júbilo! Várias pessoas, em especial nas primeiras filas, têm ainda o rosto coberto de lágrimas.

Ouve-se "Brava!!!", "Bravissima!!!, "Bravi!!" Muitas pessoas querem pronunciar o nome de Edita e gritam "Brava, Edita!!!". É a apoteose. Os outros cantores, emocionados, olham para Edita Gruberova demonstrando claramente um grande respeito e admiração pela grande artista que perante eles se encontra.

Com humildade, Edita, reconhecida, agradece e apressa-se a dar as mãos aos outros cantores, que se aproximam, vergando-se respeitosamente perante a Raínha do Belcanto - Die Königin des Belcanto - como é frequentemente referida na imprensa germânica.

Vários elementos do público aproximam-se do palco e oferecem flores a Edita. Alguém da assistência, certamente francês, oferece a Edita Gruberova uma placa idêntica às que se encontram a nomear as ruas de Paris, com a inscrição: "Place Edita Gruberova". Nesse momento, recordei-me do fabuloso concerto que a cantora deu em Dezembro do ano passado em Paris, no Théâtre des Champs-Elysées, no qual alguém do público entregou a Edita uma placa semelhante, com a inscrição "Avenue Edita Gruberova"!

Os aplausos parecem não cessar. Os cantores saiem e regressam ao palco inúmeras vezes. Por fim, a orquestra sai, o coro também se retira, mas o público permanece aplaudindo. Os cantores têm de regressar uma e outra vez. As pessoas do público que se encontravam mais longe do palco, aproximam-se, para poderem aplaudir mais de perto. Dos varandins que estão sobre o palco, alguns elementos do público desfraldam cartazes com a fotografia de Edita Gruberova.

Estou certo de que todos os que assistiram a este magnífico concerto, levaram consigo memórias que jamais esquecerão. Bravi Tutti! Bravissima Edita!!!

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Götterdämmerung - Oper Köln - 6 de Junho de 2010













No passado dia 6 de Julho, a Ópera da cidade alemã de Colónia viu representada, no seu palco, a quarta e última parte da tetralogia Der Ring des Nibelungen.

Apesar do calor que se fazia sentir na cidade, nesse dia o céu estava nublado e pressentia-se a chegada duma trovoada. Parecia, pois, estar criada toda a atmosfera propícia para o apocalíptico drama wagneriano Götterdämerung - O Crepúsculo dos Deuses.

A récita iniciava-se pelas 17 horas, e o seu final estimava-se ocorrer pelas 22:30. Não obstante esse horizonte temporal tão demorado, a lotação da sala estava completamente esgotada, sendo de notar que grande parte do público era jovem, mas muito atento e interessado. Com efeito, sentia-se o apreço que o público alemão tem pelo génio de Wagner.

Tratou-se duma produção do canadiano Robert Carsen e do britânico Patrick Kinmonth, que conceberam toda uma estrutura cénica da época da 2ª guerra mundial, em que as personagens Gunther e Hagen foram transformadas em dois oficiais nazis. A cruz suástica não surgiu nas fardas, nem nas bandeiras utilizadas, mas em seu lugar foi criado um símbolo semelhante e também com as cores vermelha, branca e negra. Estávamos, pois, em pleno 3º Reich.

Toda a encenação foi extremamente bem conseguida, e os diferentes cenários eram mudados rapidamente, graças à moderna tecnologia com que a Oper Köln está dotada.

A direcção musical esteve a cargo do maestro alemão Markus Stenz.
No elenco, o grande destaque vai para Evelyn Herlitzius (Brünnhilde). Esta cantora, revelou dotes vocais e interpretativos próprios dum soprano dramático especialmente adequado aos papéis wagnerianos. Certamente por isso, tem sido uma presença assídua no Festival de Bayreuth. Evelyn Herlitzius, revelou ter uma voz potente, capaz de produzir uma sonoridade encorpada e forte mesmo nos agudos, e uma capacidade de se entregar de corpo e alma ao papel que estava a desempenhar. Além disso, pareceu-me ser uma cantora com grande resistência vocal, pois até ao final, apesar de todo o esforço vocal e físico que despendeu, a voz não evidenciava qualquer cansaço.

Siegfried foi desempenhado por um tenor (creio que alemão) que, à última hora, substituiu o cantor canadiano, mas residente na Alemanha, Lance Ryan. Mesmo antes do espectáculo começar, alguém veio ao palco informar que Lance Ryan tinha adoecido. Infelizmente, não consegui entender claramente, nem fixar o nome do cantor que desempenhou Siegfried (foi apenas anunciado oralmente, não constando o seu nome no programa, onde ainda figurava o nome de Lance Ryan, dado que se tratou de uma substituição de última hora). Revelou-se um excelente cantor para o papel de Siegfried.

Presumi, imediamente, que se tratava dum cantor com qualidade, dado que o esclarecido público alemão aplaudiu fortemente quando foi anunciado o seu nome. Ainda jovem, detentor duma voz vigorosa, mostrou estar inteiramente à vontade no papel, que desempenhou com energia e paixão.
Hagen, foi interpretado pelo reputado baixo finlandês Matti Salminen, que conta já com 65 anos de idade! Dotado duma voz extremamente potente e dramática, levou o público a aplausos entusiásticos e foi, sem dúvida, um dos destaques desta récita.

Gunther foi desempenhado pelo barítono suíço Alexander Marco-Buhrmester. Embora menos entusiasmante do que os cantores atrás mencionados, teve também uma prestação muito válida e coerente.

Porventura, o momento mais alto da ópera foi o final. Esse grande momento apocalíptico foi absolutamente espectacular: todo o cenário ardeu, literalmente! Foi absolutamente fantástico e quase inacreditável assistir àquele momento impressionante, apenas possível certamente com um grande controlo e planificação de toda a actividade pirotécnica. Apesar do enorme "incêndio" que se produziu no palco, nem uma só nuvem de fumo atingiu a assistência, nem tão pouco se produziu qualquer odor a queimado. Tudo parecia estar minuciosamente controlado. Foi verdadeiramente impressionante!

Se associarmos a esta verdadeira apoteose cénica, a prestação simultânea de Evelyn Herlitizius (Brünnhilde) que cantou com um vigor e um dramatismo tocante, antes de caminhar entre as chamas e, por fim, desaparecer, podemos afirmar que parecia estar a ocorrer em palco algo de quase inacreditável.

Por fim, sentiu-se a presença das águas do Reno que transbordavam - as mesmas que banham a cidade de Colónia - e surge como que um "aerossol" de pequenas partículas de água que, associado a um jogo de luzes que se sobrepunham ao vigor das chamas, transmitiu uma imagem fantástica. Então, percebeu-se que todo o "chão" do cenário não era mais do que um gigantesco tapete que lentamente começou a recuar, levando para o plano mais profundo do palco toda essa amálgama de chamas, de destruição. E, então, o pano cai.

Visivelmente emocionado, o público aplaude intensamente de pé. Foi um momento esmagador aquele final apocalíptico, tão bem encenado, concebido e executado.

Então, percebeu-se bem como fazia sentido a analogia com o nacional-socialismo: afinal, foi uma ideologia que conduziu à morte e à destruição. Foi um período da História em que se concretizou , verdadeiramente, um apocalipse.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Le Nozze di Figaro - Royal Opera House - 30 Junho 2010


Tendo assitido em 2006 a esta produção, criada para comemoração dos 250 anos do nascimento de W. A. Mozart, não tive qualquer dúvida que seria uma récita agradável, mais não fosse pela encenação. Em Julho de 2006 rodaram nomes como Kyle Ketelsen, Gerald Finley, Isabel Bayrakdarian... e os reincidentes Soile Isokoski e Robert Lloyd. Agora estivemos com elenco igualmente fantástico em Mozart (a adicionar a estes dois gigantes da Ópera): Erwin Schrott, Jacques Imbrailo, e a participante do Jette Parker Young Artists Programme Eri Nakamura.

A encenação, que pode ser facilmente avaliada na gravação de DVD disponível, é clássica. Um palácio clássico, um quarto de Susana e Fígaro clássico e uma cena do jardim igualmente clássica. Pode parecer demasiado simplificada esta minha descrição mas, havendo a possibilidade de visualização em DVD, penso que não me devo alargar muito dando a oportunidade de explorar a mesma a quem queira ver o DVD. Quem teve a oportunidade de ver a pobre e ridícula encenação do São Carlos na presente temporada poderá ter a noção de como foi esta de Londres quando vos digo que a encenação de David McVicar mete esta última a um canto... de um canto!

Erwin Schrott está bem familiarizado com esta produção porque em 2006 partilhou papel com Kyle Ketelsen. Foi um dos melhores em palco. Dotado de timbre perfeito para o papel e de uma voz de barítono forte e expressiva, aliado a uma capacidade cénica para a jocosidade convincente. Foi impossível não rir com Schrott e com a história (mas não foi o único capaz de tal). A sua versatilidade física e boa aparência são a cereja no topo do bolo da personagem incarnada.

Eri Nakamura foi Susana. Já havia ouvido a sua Gianetta no Elixír do Amor do ano passado igualmente em Londres e gostei. Aqui como Susana, num papel mais vistoso e importante, acho que cumpriu bem o papel. É uma muito boa actriz e tem uma voz de soprano suave e limpa, contudo pouco potente. O sentimento está lá.

Jurgita Adamonyté fez de Cherubino e cumpriu muito bem o papel. Além da possibilidade de convencer fisicamente como jovem rapaz, cantou bastante bem e conseguiu entrar bem nos momentos de graça da ópera.

Jacques Imbrailo foi um Conde fantástico. Esta foi a minha 3ª récita de umas Bodas mas foi a primeira vez que adorei a ária "Vedrò mentr'io sospiro". É talvez a ária mais difícil da personagem e é necessário compreender muito bem o que ela transmite. "E giubilar mi fa" tem de ser cantado com júbilo e não de modo muito métricoinssensível. Aqui? perfeito! No restante também muito bem, firme, sem desafinar, bom actor. Um prazer ouvi-lo.

Soile Isokoski é uma senhora da ópera. Simplesmente fantástica no papel de Condessa. Numa idade credível para a personagem, mantém a qualidade vocal que demonstrou há 4 anos. Perfeita!

Robert Lloyd foi um Bartolo bom. Longe dos graves cavernosos que o caracterizaram no mundo da Ópera ainda vai dando o ar da sua graça e é ainda aceitável ouvi-lo nestes papéis menos principais.

Marie McLaughlin foi Marcellina e bem. Sem nada a destacar mas também sem grandes defeitos a evidênciar.

A Orquestra da ROH esteve mais uma vez muito bem, sem falhas, sob a batuta de David Syrius um mestre neste repertório. Também, e na minha opinião, o difícil de Mozart é encená-lo e cantá-lo porque a música é tão característica e tão orgânica que me parece ser sempre o mais fácil no compto das récitas.



Vale muito a pena ver esta encenação e espero que ainda se mantenha por alguns anos no repertório da Royal Opera. Os elencos têm sido muito bons nos vários "revivals" e é uma certeza quase certa de muito boa Ópera.

sábado, 10 de julho de 2010

Die Meistersinger von Nurnberg - Wales Millennium Centre - 3 de Julho 2010

O Wales Millennium Centre, casa da Welsh National Opera, foi inaugurado em Novembro de 2004 e desde então já teve o prazer de receber duas estreias em papéis Wagnerianos de Bryn Terfel: primeiro o seu Holandês e agora o seu tão esperado Hans Sachs.

Comprei bilhetes para esta produção via internet cerca de 14 meses antes da récita (um record de tempo para mim), assegurando lugares na 2ª fila da plateia (a preços de invejar / "saldo" quando comparados com os balúrdios que outras casas de Ópera pedem por lugares semelhantes...). Foi com grande satisfação que, após um Simão Boccanegra, umas Bodas de Fígaro e uma Manon na Royal Opera, Covent Garden, rumei de comboio desde a estação de Paddington, em direcção a Cardiff para ver um dos meus ídolos operáticos.

A cidade não é muito grande e basicamente o que de melhor tem é a zona da baía (Cardiff Bay), onde se encontra o Wales Millennium Centre, alguns restaurantes com vista para a baía, num aspecto talvez cerca de 1/4 ou 1/5 da dimensão do nosso Parque das Nações. Muito agradável.








O Wales Millennium Centre têm uma arquitectura fantástica. A fachada, como podem ver nas imagens, é estremamente original. "In these stones horizons sing" pode ser lido em inglês e em galês. Não sei bem o sentido correcto destas palavras mas talvez designem a humildade da casa de espectáculos, que não sendo das de topo na Europa, aqui terem já dado os primeiros passos alguns cantores de classe (bem como outros que por certo virão e o farão do mesmo modo). Justificar-se-ia assim o horizonte como longínquo de aspiração a sucesso através do canto. Aceito outras sugestões...

Mas passemos ao que mais interessa e que foi a última récita em Cardiff destes Mestres Cantores de Wagner.

A encenação é simplesmente deliciosa - clássica e rica. Permitam-me fornecer alguns aspectos da mesma de modo sucinto.

O primeiro acto inicia-se, como sabem, numa Igreja e talvez esta seja a altura em que o palco menos caracterizado está. Apenas se observam uns bancos verdes paralelipipédicos onde se agrupam os membros do coro.

A preparação para a posterior entrada dos Mestres é feita de modo estremamente original. Enquanto David vai dizendo a Walther todas as melodias e modos que caracterizam a arte de ser Mestre Cantor, os companheiros estudantes vão fazendo passar à sua frente e arranjando em palco, uns guarda-fatos vermelho-carmim onde estão estampadas figuras alusivas aos tipos de melodias. Estes guarda-fatos ficam então arranjados em anfiteatro e dentro estão as vestes dos Mestres. Entretanto, no fundo, já tinham colocado várias fotos em quadros dos Mestres.

Antes da prova de Walther, todos os Mestres se juntam em torno do jovem e o fazem olhar para as regras gerais da prova que são caracterizadas como painéis elevados no palco. E aqui surge um dos pormenores mais engraçados. Um dos Mestres é Parkinsónico!!! Então, ao passarem de quadro de regras para quadro de regras, o Parkinsónico fica para trás e quando finalmente chega de novo ao grupo, já eles vão noutro quadro. Hilariante!!!

O quadro das regras que Beckmesser vai riscando à medida que Walther vai cantando é um típico quadro de ardósia com imagens sugestivas das regras.

No final do acto, Beckmesse deixa Hans Sachs sozinho no palco e passando por ele fecha o seu estojo metálico onde guarda o giz, de modo altivo e convencido saíndo do palco por uma porta onde o tal Mestre parkinsónico tenta sair. de Um empurrão ajuda o Mestre e sai de cena, com Sachs a empurrar o quadro das regras (que tem rodinhas) para fora de palco ao som do acorde final.

O 2º acto revela-nos uma casa típica de Nuremberga à direita, correspondendo à casa de Veit Pogner e de frente a casa de Sachs. Esta é de forma tradicionalmente rectangular com tecto de telhas mas sem as mesmas - o revestimento é em floreados a verde. Por cima da porta, uma bota em suspensão revela a profissão do Mestre.

O final do acto é a confusão que sabemos e Beckmesser acaba por ficar de cuecas em palco. O Parkinsónico vai dando também uns murros subtis em quem encontra pela frente. Toda a cena de "pancadaria" foi um descalabro de risos quer pelas caras das pessoas quer pelos movimentos em palco.

O 3º acto revela-nos o interior da casa de Sachs. Do lado direito o claro posto de trabalho com estantes com caixas de sapatos e sapatos pendurados. Do lado esquerdo o local mais íntimo com estante com livros, uma escrevaninha, uma mesa com cadeiras e bustos de animais na parede. A canção de Walther, a que sonhou e foi cantando, vai sendo escrita por Sachs à mesa, bebendo ocasionais goles de café de uma chávena antiga. Os textos vão sendo colocados numa fina corda tipo estendal, que atravessa a casa, para secarem a tinta. Quando Beckmesser entra na casa de Sachs e acaba por levar a canção de Walther pensando ser de Sachs, sempre que se senta ou mexe larga "ais" de dor, chegando a mostrar a nádega com uma grande equimose. A passagem para a festa de São João leva-nos a um simples palco em verde das mesma qualidade dos bancos da Igreja, ornamentado de flores. Beckmesser muito cómico, com o tropeçar quando de aproxima da sua vez de cantar a ser novamente hilariante. Fantástico! No monólogo final de Sachs e até ao final da ópera os espectadores da festa (membros do coro) vão mostrando imagens de personalidades relacionadas com a arte alemã que em conjunto serviram de pano de fundo à protecção de palco que vemos no início de cada acto - vejam a fotografia. Conhecem alguém?...




Uma encenação viva, com cor, alegre, fazendo-nos facilmente sentir como pertencentes à história.

A Orquestra soberba! O Coro fantástico. Embora me tenha surpreendido pela qualidade e potência ao longo de toda a ópera, foi no "Wacht auf" no 3º acto que me derreti por completo. A potência e afinação conjugada com sincronia milimétrica com a entrada da Orquestra foram sublimes!!!

Em relação aos cantores...

Tenho de começar por Bryn Terfel... É sem dúvida um senhor das artes completo. Vive Sachs do início ao fim, com todos os seus dilemas, as suas dúvidas, as suas crenças. Não há um mínimo momento de descoordenação em palco ou movimento sem sentido - excelente actor. Mas se é excelente cantor, o que dizer do canto em si? Fantástico. Voz potente sempre sobre a orquestra, dicção exímia, e sentimento sempre presente. Na idade em que está esperemos que ainda nos possa dar muito mais de Wagner nos anos vindouros. Wotan, Sachs, Hollander... Venham sempre e que possa ainda crescer mais nestes papéis para nos continuar a surpreender.

Christopher Purves foi Beckmesser. Um desconhecido para mim mas grande surpresa. No inicio achei que talvez não fosse o indicado para a personagem porque considero que, tal como a personagem Mime do Anel, Beckmesser tem de ter um timbre especial e característico e ser capaz de transformar a voz a toda a chamemos "malvadez simpática" da personagem. Mas logo a sua personagem me cativou quer do ponto de vista vocal quer do ponto de vista interpretativo. Foi um dos pontos fortes da récita.

Amanda Roocroft foi Eva. Esteve bem. Timbre bonito, no geral sem grito embora por vezes com alguma dificuldade nos agudos em termos de combinar potência com beleza. Boa actriz.

Raymond Very foi Walther e, deste quarteto de personagens principais, o mais fraco do ponto de vista vocal. Muito bem no primeiro acto, pareceu-me quebrar nos seguintes. Não desafinou mas a potência de voz fica aquém do desejável para Wagner. Na canção final começou muito leve. Pensei que seria programado para depois crescer na interpretação até ao final mas não. Manteve sempre baixo volume e sem grande crescendo de exaltação como esperaria.

As restantes personagens secundárias cumpriram. O Pogner de Brindley Sherratt foi muito bom, embora de aspecto demasiado franzino para a voz que tinha. Quem não gosta de ver um Matti Salminen ou um René Pape neste papel de Pai? A Magdalene de Anna Burford foi muito boa, excelente mezzo. Andrew Tortise fez um David muito, muito bom. Voz perfeita para o papel embora em momentos algo fraca de potência mas sem desiludir. Conseguiu transmitir um ar de inocência e infantilidade (talvez algo exageradamente em alguns momentos, mas aceitável). Mas a destacar quero deixar um nome - David Soar. Fez de Guarda Nocturno. Que voz de baixo espectacular. Cantou as suas 2 intervenções de modo tão profundo e belo que, se não fosse uma personagem secundária, diria que foi quem esteve melhor de todos os intervenientes.







Esta produção tem pernas para percorrer os melhores teatros do Mundo!!! Londres e Nova Iorque são palcos onde será obrigatória esta presença. Se fosse eu a decidir os elencos escolheria talvez os seguintes nomes: Sachs - Bryn Terfel, Beckmesser - Christopher Purves (possibilidade de grande lançamento de carreira...) ou talvez Michael Volle, Eva - Anja Kampe (ou talvez Eva Maria Westbroek), Walther - Klaus Florian Vogt ou Simon O´Neill, Pogner - Matti Salminen ou Rene Pape, Magdalene - Sophie Koch ou Michaela Schuster, David - Andrew Tortise (porque não?).

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Concerto lírico de Edita Gruberova - Alte Oper, Frankfurt am Main - 3 de Maio de 2010












No passado dia 3 de Maio de 2010, o palco da Alte Oper em Frankfurt teve o privilégio de ser pisado por aquela que é, sem qualquer margem de dúvida, a "Primadonna Assoluta" do Belcanto nos nossos dias: Edita Gruberova.

A célebre e já legendária cantora eslovaca, que conta já com 63 anos de idade, continua a encantar o público com a sua magnífica arte, a sua inimitável presença em palco e, sobretudo, com o poder quase milagroso da sua voz: límpida, cristalina, muito poderosa e capaz de acrobacias quase inacreditáveis.

Foi acompanhada pela Münchner Symphoniker Orchester, que foi dirigida pelo maestro ucraniano Andriy Yurkevych.

O programa seguiu o formato clássico de árias de ópera intercaladas por peças orquestrais (abertura de "La fille du régiment" de Donizetti, abertura de "Un giorno di regno" de Verdi, prelúdio do primeiro acto de "La Traviata" do mesmo compositor, abertura da "Norma" de Bellini e, finalmente, a "Dança das horas" da ópera "La Gioconda" de Ponchielli).

A primeira aparição de Edita Gruberova, foi para cantar a ária inicial de Lucrezia do primeiro acto de "Lucrezia Borgia" de Donizetti: "Com'é bello!". Mal a cantora entrou em palco, e antes sequer de cantar, o público saudou-a com uma fortíssima e demorada ovação, demonstrativa da grande admiração e respeito que o público detém pela grande Gruberova.

Bastou a primeira frase - "Tranquilo ei posa" - emitida com um expressivo crescendo e decrescendo, para que todos fossem imediatamente transpostos para uma outra dimensão: a do mais puro e sublime canto lírico.

Seguiram-se as duas árias encadeadas do terceiro acto da ópera "Lucia di Lamermoor" (muitas vezes referida, como a "cena da loucura de Lucia"): "Il dolce suono - Sparge d'amaro pianto". Aqui, a Gruberova atingiu, sem dúvida, o patamar do milagre vocal e interpretativo. A coloratura irrepreensível, os agudos emitidos de forma perfeita, os pianissimi inacreditáveis nos agudos, o dramatismo, o poder interpretativo de quem encarna verdadeiramente a personagem, em suma, a perfeição! Até alguns gestos, como, por exemplo, a dada altura as duas mãos juntas a apontar para baixo, como que a segurar o punhal com que havia ferido mortalmente Edgardo, me fizeram recordar a última vez em que a Gruberova interpretou este mesmo papel em Viena, na Wiener Staatsoper. Foi uma récita memorável, em Maio de 2009, na qual a Gruberova, apesar de já contar com 62 anos de idade nessa data, foi a Lucia mais jovem, inocente e transcendente que pode ser apreciada nos nossos dias.

Mal chega ao fim a primeira parte desta ária, o público levanta-se e aplaude demoradamente de pé. Todos, desde o mais jovem ao menos jovem, desde o espectador da primeira fila da plateia, até àquele que está no recesso mais recôndito da sala, gritam incessantemente: "Brava!!!" Os aplausos parecem não ter fim, fazendo quase crer que o concerto havia chegado ao seu fim. Mas na verdade, ainda estava longe de terminar e, entre muitas outras coisas, ainda nos faltava ouvir, concretamente, a segunda parte dessa mesma ária: "Sparge d'amaro pianto".

E aqui, uma vez mais, a Gruberova confirmou todo o vigor dos aplausos que já havia recebido. Todas as acrobacias vocais que esta ária exige, foram executadas na perfeição. Particularmente impressionante foi o trilo agudo que a cantora executou quando diz "per me": o trilo foi iniciado em forte, para depois prosseguir num decrescendo, até atingir o pianissimo, num momento em que o trecho sofre uma modulação, isto é, muda de tonalidade. Impressionante! Nesse momento, sentiu-se perfeitamente o público emitir um "Ah!" de espanto, perante aquela execução verdadeiramente inacreditável! Como é possível uma voz humana fazer tal coisa?! Sem dúvida, hoje em dia, somente a Gruberova é capaz de fazê-lo.

Uma vez mais, o público aplaudiu de pé e demoradamente. Após esta dificílima sequência de árias, seria expectável um intervalo. Mas não. A Gruberova, apesar dos seus 63 anos, ainda teve fôlego para, logo em seguida (após ter assistido, sem sair do palco, à execução do prelúdio do primeiro acto de "La Traviata"), executar de forma impressionante a difícilima cena e ária de Violetta: "E strano! - Ah, fors'e lui - sempre libera". Foi uma interpretação espantosa, em que a última parte ("sempre libera") foi executada com um entusiasmo e uma energia espantosas. Bravissima, Edita!

Mas ainda nos aguardava uma segunda parte verdadeiramente gratificante. Após a abertura da ópera "Norma", Edita Gruberova cantou a ária de Elvira "O rendetemi la speme... Vien, diletto", da ópera "I puritani" de Vincenzo Bellini. Nesta ária, Gruberova maravilhou o público com a sua coloratura inatingível, executando escalas e cromatismos que vocalizava duma forma perfeita e onde os seus glissandi eram tão nítidos que se conseguia ouvir nota a nota, sem se perder a sensação de deslizamento rápido que os caracteriza.

Após a "Dança das horas" de Ponchielli, a Gruberova ofereceu-nos uma ária dificílima e raras vezes executada, da ópera "Hamlet" de Ambroise Thomas: "A vos jeux". Foi arrepiante! O dramatismo, a dor que a personagem transmite, tudo isso veiculado entre acrobacias vocais, em que a voz tem de ascender deste as notas mais graves até às hiperagudas, atingindo mesmo perto do fim, creio que um fá hiperagudo (uma nota que poucas cantoras conseguem atingir) e que dá a sensação dum grito. A este "grito" segue-se, num registo muito mais grave, a frase emitida com grande dor e pungência: "por toi je meurs!". Arrepiante! O público irrompe numa ovação histórica! Todos aplaudem de pé. Do varandim do primeiro balcão junto ao palco, algumas pessoas do público desfraldam um cartaz onde se lê: "Edita: La legenda!" - Edita, a Lenda!

E, de facto, assim é: temos a sensação nítida de estarmos perante uma lenda viva. Perante alguém que, quando se retirar, não deixará nenhuma "sucessora" para o título de "Primadonna Assoluta".

Perante a intensidade e a duração dos aplausos, Edita Gruberova decide oferecer ao público dois números extra-programa: "Oh luce di quest'anima" da ópera "Linda di Chamounix", de Donizetti e, por fim, a famosa ária de Adele "Spiel ich die Unschuld vom Lande" da opereta "Die Fledermaus" de Strauss. Neste última ária a cantora teve a oportunidade de evidenciar a sua faceta jocosa de comediante, demonstrando o seu bom humor e a capacidade de "brincar" com a voz.

Foi, sem dúvida, um momento memorável para todos aqueles que tiveram a oportunidade e o privilégio de estar presentes neste concerto de "Die Gruberova" - A Gruberova - como é muitas vezes referida na Alemanha e Áustria. Todos puderam confirmar que o nome da Raínha do Belcanto é Edita Gruberova. Brava!

sábado, 3 de julho de 2010

MANON – Royal Opera House, Londres, Julho de 2010

Manon de Jules Massenet é uma ópera baseada no romance de Antoine-François Prévost L´Histoire du Chevalier Des Grieux et de Manon Lescaut, novela que também serviu de base à ópera Manon Lescaut de Puccini.
Manon, uma jovem que vai entrar para o convento, é desejada por Guillot de Morfontaine, um velho rico e devasso, mas é protegida das suas investidas pelo primo Lescaut. Guillot e De Brétigny estão acompanhadaos de 3 jovens cortesãs, Poussette, Javotte e Rousette. Manon admira as suas roupas e estilo de vida. Des Grieux conhece-a, apaixona-se e convence-a a ir viver com ele em Paris. Escreve uma carta ao pai a pedir autorização para casar com Manon. Aparecem Lescaut e De Brétigny e este diz a Manon que o amante vai ser raptado a mando do pai e que, se ela quiser, poderá ter uma vida de luxo com ele. Se o impedir, viverá pobre para sempre. Manon cede e Des Grieux é levado. Manon vive agora rodeada de dinheiro e luxo, como amante de De Brétigny, quando fica a saber pelo pai de Des Grieux que ele decidiu dedicar-se à vida religiosa depois do desgosto de amor. Manon vai procurá-lo a Saint Sulpice e, após confirmarem o amor que sentem um pelo outro, decidem fugir juntos. Manon, na sua ânsia de vida luxuosa, convence Des Grieux a jogar com Guillot para ganhar mais dinheiro. Guillot perde, acusa Des Grieux de fazer batota, promete vingança e chama a polícia que prende Manon e lhe dá ordem de deportação para a Louisiana. Des Grieux, com a ajuda de Lescaut, consegue subornar os guardas e libertar Manon no porto de Havre. Ficam novamente juntos, reafirmam o seu amor, fazem planos para o futuro mas Manon, doente e exausta, não chega a ser deportada e morre nos braços de Des Grieux.
Nesta encenação de Laurent Pelly, simples e vazia, mas eficaz, a acção é trazida para o período da Belle Époque, cerca de século e meio após o romance ter sido escrito. No primeiro acto o cenário está encimado de casas em miniatura e uma escadaria que dá acesso à zona central do placo, sem adereços, onde grande parte da acção decorre. Na cena seguinte o quarto simples de Manon e Des Grieux está também colocado ao cimo de vários troços de escadas. Na primeira parte, Manon é uma jovem vestida de forma muito humilde e inocente mas, nesta produção, comporta-se como uma mulher sedutora e sedenta de emoções e, aparentemente, sem a ingenuidade que as palavras transmitem. No 3º acto, nas margens do Sena, a encenação lembra um quadro de um pintor impressionista. Manon aparece na máxima exuberância (vestido, joias e postura). Na cena seguinte, em Saint Sulpice, talvez a mais notável de toda a produção, dá-se o reencontro com Des Grieux, agora padre. Depois de uma reacção de rejeição inicial, Manon admite a culpa e reafirma o seu amor. Des Grieux não resiste e dá-se a reconciliação, deitando-se Manon na cama austera do amante e despindo-lhe o hábito. Segue-se a cena do jogo, onde apenas há as mesas como objectos no palco, com as interpretações vocais a superarem as cénicas, mas o glamour mantém-se. Finalmente, o último quadro, é um contraste total com os anteriores. Manon, desfigurada, é arrastada pelo chão, pontapeada e ultrajada pelos guardas. Apenas uns candeeiros sóbrios de rua estão no palco. Morre nos braços de Des Grieux.
Numa nota de humor bem conseguida, ao longo de toda a récita são frequentes os momentos em que homens velhos perseguem mulheres jovens. Em Saint-Sulpice há um elevado número de mulheres de negro a rezar, mas que estavam afinal interessadas em ver e seguir o jovem padre.
A direcção musical foi do maestro titular, Antonio Pappano que conseguiu fazer brilhar a excelente orquestra da Royal Opera em todos os monentos, dando-nos uma interpretação sublime e electrizante da música de Massenet. Também o coro teve uma prestação excelente.
E passemos aos cantores:

Manon foi interpretada por Anna Netrebko. O papel é muito a seu jeito, começando por uma rapariguinha pobre que inveja a riqueza e o luxo, passa por essa fase e acaba como um farrapo arrastado pelo chão. Cenicamente esteve irrepreensível, a produção ajuda muito e recuperou uma forma física que lhe possibilita mostrar novamente as pernas de forma muito sensual, na cena no quarto com Des Grieux. Mas tudo isto passa para um plano muito recuado quando é o canto que mais importa. E foram mais de duas horas de magia em que se ouviu uma cantora fabulosa e expressiva, actualmente sem rival. A voz está maior do que nunca, mais escura, mas mantém todas as qualidades que sempre apreciei na Netrebko, entre elas uns agudos estratosféricos, os pianíssimos que mais nenhuma cantora actual consegue igualar, um timbre de uma beleza invulgar e, agora, uma potência avassaladora que, mesmo em fortissimi, nunca resvala para a estridência. A aria Adieu, notre petite table no 2º acto, foi particularmente marcante. Só a interpretação da Netrebko teria valido a récita e, repito, considero que na actualidade não há nenhuma outra que consiga igualá-la neste registo! E, com a evolução que a voz está a revelar, não sei que surpresas poderão surgir no futuro. Avassaladora!

Des Grieux foi interpretado por um jovem tenor italiano que não conhecia, Vittorio Grigolo, em substituição (anunciada há largos meses) de Rolando Villazon. Ter um papel de protagonista em Covent Garden é, à partida, garantia de qualidade (contudo, já tive no passado algumas surpresas desagradáveis) mas eu estava longe de imaginar que iria ver e ouvir outro cantor que irá dar muito que falar, estou certo. Grigolo é muito jovem, tem uma figura excelente e mexe-se com muita agilidade, o que o torna muito credível em cena. As expressões faciais pareceram-me menos boas que o resto, mas não estava suficientemente perto para uma apreciação mais correcta. A voz é também excelente, revelando grande potência e segurança, sem nunca quebrar até ao fim. A cor não é invulgarmente bela mas a técnica é notável e, sobretudo, é capaz de produzir uma belíssima mezza voce. Se na aria Ah! Fuyez, douce image no 3º acto foi arrebatador, os duetos com a Netrebko foram arrepiantes e inesquecíveis, sobretudo em Saint Sulpice, (N'est-ce plus ma main foi superlativo!). Nos momentos finais da ópera, após a morte de Manon, o desespero final de Des Grieux foi outra nota interpretativa impressionante.
No final, o público prestou-lhe uma ovação próxima da histeria.
Para além dos dois intérpretes principais, os papeis secundários foram também interpretados por cantores / actores de elevada qualidade. Guillot de Morfontaine foi encarnado pelo barítono francês Christophe Mortagne, De Brétigni pelo barítono William Shimell, Lescaut pelo barítono canadiano Russel Braun e o Conde Des Grieux pelo baixo alemão Christof Fischesser. Todos estiveram bem tanto cénica como vocalmente, merecendo destaque a interpretação de Guillot de Morfontaine, muito viva em palco e cheia de momentos de humor, muito à maneira interpretativa da opereta.
Finalmente as três”meninas”, Simona Mihai (Poussette), Louise Innes (Javotte) e Kai Rüütel (Rosette) deram boa nota nos papeis que encarnaram.
(Grande parte das fotografias apresentadas são de Bill Cooper)

No seu total, um espectáculo excepcional, daqueles que nos marcam e que nos revelam que a ópera é a forma mais superlativa das artes musicais.
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domingo, 20 de junho de 2010

YEVGENY ONEGIN (Eugene Onegin) – Teatro de São Carlos, Junho de 2010

Eugene Onegin de P. I. Tchaikovsky encerrou a temporada lírica (de muito má memória) do Teatro de São Carlos. A obra tem por base um poema de Puchkin e é um dos expoentes máximos do romantismo russo em ópera.
A história narra um duplo desencontro amoroso. A jovem Tatyana, sonhadora e amante da leitura de romances, conhece Eugene Onegin, amigo de Lensky, noivo da sua irmã Olga. Apaixona-se por ele e escreve-lhe uma longa carta de amor mas Onegin rejeita o casamento com Tatyana. Mais tarde encontram-se todos numa festa e Onegin dança e corteja Olga, o que leva Lensky a desafiá-lo para um duelo. Lensky despede-se de Olga e é morto pelo amigo. Anos depois, num baile, Onegin volta a encontrar Tatyana (agora casada com o príncipe Gremin) e declara-lhe o seu amor. Ela também admite que ama Onegin mas é uma mulher casada e pede-lhe que parta porque nunca trairá o marido. Onegin fica só.
A encenação, moderna, de Peter Konwitschny, foi muito eficaz. Logo no início a harpa colocada e tocada no centro do palco foi magnífica. Um jogo de espelhos em todo o palco, pilhas de livros de Tatyana e muitas cadeiras colocaram a acção num período intemporal e retiraram-na da Russia rural de finais do século XVIII. Foram também mais valias a criação de um corredor à frente da orquestra (e com o sacrifício da fila A da plateia) onde os cantores puderam projectar mais facilmente as suas vozes e, sobretudo, a utilização do camarote real no terceiro acto, onde apareceram, entre outros, Tatyana e o marido, o Príncipe Gremin. O guarda roupa foi muito diversificado e rico, o que trouxe encanto adicional ao espectáculo. Houve sempre boa movimentação no palco. Um aspecto negativo foi a falta de estabilidade das cadeiras (pequenas e articuladas) que provocavam facilmente o desiquilibrio dos cantores nas cenas em que tinham de estar (ou caminhar) em pé sobre elas. No segundo acto, o pobre Lensky, condenado por Tchaikovsky a morrer no duelo com Onegin, poderia ter tido o seu triste fim antecipado numa queda das cadeiras, tais os desiquilibrios que teve!
Também muito positiva foi a superior direcção musical do maestro russo Mikail Jurowsky.
E se a Orquestra Sinfónica Portuguesa esteve muito bem, o coro teve, em minha opinião, a melhor prestação do ano. Sempre afinado, nos tempos certos, proporcionou alguns dos momentos altos da tarde.
Nos cantores houve assimetrias importantes.
A soprano ucraniana Natalija Kovalova foi Tatyana. Começou mal mas rapidamente atingiu uma prestação muito aceitável tanto cénica como vocalmente. O papel é grande e exigente, em esforço mostrou alguma tendência para perder a harmonia e resvalar para a estridência, mas globalmente esteve bem. Na cena da carta, talvez a mais importante da ópera, ajudada pelo movimento cénico, foi bastante credível.
Vladimir Lensky foi interpretado pelo tenor sul-africano Musa Nkuna, um residente no Teatro de São Carlos. Acho que não tem envergadura para um papel como este. Cenicamente não foi convincente e vocalmente, se no registo mais agudo esteve razoável, revelou grandes fragilidades e dificuldades de emissão nos registos médio e baixo.
O barítono russo Albert Schagidullin interpretou o Eugene Onegin. Cenicamente esteve bem, mas vocalmente teve uma prestação muito aquém do desejável. Não desafinou mas tem uma voz pequena e anasalada que rapidamente deixa de se ouvir sempre que a orquestra toca mais alto. Foi pena porque a personagem e a produção mereciam melhor.
Nos papeis mais curtos, a mezzo portuguesa Maria Luísa de Freitas fez uma Olga pouco interessante, Laryssa Savchenco, mezzo ucraniana, foi uma Larina (mãe de Tatyana e Olga) com presença mas a voz tem vibrato excessivo, Viola Zimmermann fez uma Filipyevna banal, João Merino deu boa nota como Zaretsky e Carlos Guilherme foi um Triquet notável.
Chegados ao terceiro acto, quando pensei que tudo o que respeitava à qualidade dos cantores estava revelado, surge a grande surpresa da tarde – o baixo russo Alexei Tanovitsky no papel de Príncipe Gremin. Uma explosão de qualidade! Uma voz luminosa, potente e de enorme beleza – verdadeiramente um baixo russo a sério! Para mim, o melhor da tarde e talvez o melhor de toda a temporada.
(Fotografias do programa adquirido no Teatro de São Carlos)

E assim termina (ou quase, pois está ainda “pendurada” a Dona Branca) esta infeliz temporada do nosso São Carlos. Do que vi, começou muito bem, com o Crepúsculo dos Deuses, termina bem com este Eugene Onegin, mas tudo o resto foi muito muito muito fraco. Resta-nos a esperança de que a próxima seja melhor, o que não deverá ser difícil...(mas está ainda no segredo dos deuses o que, em finais de Junho, não é um bom indício!).
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