domingo, 12 de março de 2017

TRISTAN UND ISOLDE – Centro Cultural de Belém, 09-01-2017


Assisti, no dia 9, à primeira das duas récitas do “Tristan und Isolde”, inseridas na temporada lírica de 2016/2017 do Teatro Nacional de São Carlos.
A récita teve lugar no Centro Cultural de Belém e repete no dia 12, pelas 15 horas.
As expectativas eram elevadas, por um conjunto de factores, que enuncio sem preocupação de hierarquização.
Em primeiro lugar, por se tratar de uma das mais importantes óperas de todos os tempos, cuja novidade musical e conceptual constituiu um verdadeiro marco que serve de fronteira delimitadora do que veio antes e do que veio depois.
Em segundo lugar, porquanto já não era ouvida no TNSC, em versão encenada, desde Janeiro de 1985 (em 2003 foi apresentada em versão de concerto, sob a batuta de Zoltán Peskó, segundo informação constante do programa de sala), o que é um lapso temporal anormalmente longo para uma obra seminal na história da arte lírica.
Em terceiro lugar, porque contava com a Isolde de Elisabete Matos, estrela maior do panorama lírico português e internacional.
Em quarto lugar, porque é uma das óperas do meu top 5.
Embora com menor grau de importância, também tinha alguma curiosidade em perceber como funcionaria uma ópera no CCB.



A encenação
Nesta produção, a encenação e cenografia estiveram a cargo de Charles Edwards, com figurinos de Susan Willmington e desenho de luz de Giuseppe Di Iorio.
Trata-se de uma nova produção do TNCS, em parceria com o CCB, como informa o programa de sala.
Embora toda a cenografia e figurinos tendam para uma dimensão abstracta, a encenação é bastante fiel à narrativa, não pretendendo apresentar uma visão alternativa e muito menos subversiva do significado primário do drama. Ao invés, toda ela assenta na oposição permanente entre a luz e a escuridão, entre o dia e a noite, que constitui um dos elementos centrais do discurso dos amantes, aqui corporizada em cenários onde as zonas brancas e as zonas pretas se encontravam estritamente delimitadas, embora confinantes.
Contraste que se prolongou nas indumentárias de Isolde e Tristan: ela sempre de negro e ele essencialmente de branco (excepto quando enverga o casaco da marinha). A quebrar essa dicotomia, apenas um lenço verde de Isolde, suponho que numa alusão às suas origens irlandesas.
No 1º acto vemos o interior do barco, num corte longitudinal. Isolde e Brangäne no lado esquerdo, numa zona toda ela branca, pontuada pela presença de inúmeras cadeiras encostadas às paredes e dispersas pelo espaço (o que me fez lembrar o cenário do Café Müller, de Pina Bausch). Na parede, uma escotilha permitindo ver o mar. No centro do espaço, um esquife em madeira tosca, transmitindo, penso, a ideia de um barco que conduz Isolde em direcção à sua morte. Separado por uma parede transversal com uma porta, o lado direito do barco, todo em preto, o escritório de Tristan, onde este, em mangas de camisa branca e numa postura algo titubeante, aguarda sentado à frente de uma secretária coberta de papéis soltos, simbolizando talvez a confusão e desordem em que os seus sentimentos se encontram.
Em cima da linha divisória entre as zonas branca e preta, o baú contendo os filtros, designadamente a poção da morte e a do amor. Poção esta que irá desencadear a tensão entre esses dois mundos e que permitirá o seu franqueamento pelos amantes.

No 2º acto, mantém-se a estrita demarcação entre as zonas branca e preta, embora agora sem a parede divisória. Aparentemente, os amantes já ultrapassaram uma das barreiras que os separavam, embora ainda subsista uma zona de fronteira, a da não consumação do amor, representada por uma faixa de luz branca e pura, engenhosamente desenhada pelo jogo de luzes.
Pela abertura redonda, que antes serviu de escotilha do barco, vemos agora o negrume da noite. Durante o dueto de amor, por passam Melot e o Rei Marke, ilustrando os avisos de Brangäne.
Aspecto que me pareceu menos bem conseguido foi a harpa irlandesa que Tristan indolentemente dedilha enquanto Brangäne adverte os amantes, que me pareceu não trazer nada de novo e não desempenhar qualquer função útil.
Um outro aspecto me suscitou, durante a récita, alguma perplexidade: o traçar de uma cruz na parede por Isolde, debaixo da qual os amantes se juntam durante a parte final do dueto. A evidente referência cristã pareceu-me algo deslocada na altura. Todavia, depois de ter reflectido um pouco sobre o assunto e na sequência da leitura do interessantíssimo texto de Yvette Centeno, constante do programa de sala, creio ter aí percebido a subtil referência às feridas de Tristan (a primeira, desferida por Morold, a segunda por Melot), que marcaram o primeiro encontro dos amantes e, a final, a morte deste e a sua separação em vida, e a ferida de Cristo na cruz, produzida pela lança de Longinus.



No terceiro acto, o cenário manteve a tónica da oposição entre o branco e o preto. Tristan, deitado no sofá onde os amantes haviam cantado o dueto de amor do acto precedente, agoniza envolto no manto verde de Isolde, manchado de sangue. Sofá que se encontra colocado em cima de uma superfície branca, como que a simbolizar a luz do dia que continua a cercar o herói ferido e caído. O restante palco é todo negro, pontuado apenas por uma cadeira ao fundo onde o pastor irá ficar sentado, vigiando o mar. À direita, um compartimento, em cuja parede negra se podem ler, traçadas a vermelho, como que com sangue, diversas palavras que ecoam ao longo de toda a ópera: liebe, licht, weise, ewig, tod, wahn, sehnen, Isolde, pein, Vater+Mutter. No seu interior, a porta que lhe dá acesso caída no chão, por cima de uma estátua de uma santa (Maria?), cujo significado me pareceu ambíguo. Representaria a transcendência e a pureza do amor? a consumação isenta de pecado? Ou, ao invés, a apologia de um amor integral, através da negação da mulher enquanto simples objecto de adoração, aqui representado por uma estátua caída e quebrada? Confesso que não consegui chegar a nenhuma conclusão.
No final, o encenador opta por um Liebestod que, mais do que a morte de Isolde, é o momento do encontro extra-terreno dos amantes, após a sua morte.

Em suma: uma encenação que, não sendo original nem pretendendo contribuir interpretativamente para uma nova visão da obra, serviu fielmente a música e a acção dramática, sem prescindir de alguns elementos interessantes a suscitar a reflexão do público.



A direcção musical
A Orquestra Sinfónica Portuguesa foi dirigida por Graeme Jenkins.
Num tempo bastante lento, a orquestra começou um pouco titubeante e com os naipes orquestrais algo desgarrados. Com o avançar da obra, porém, o desempenho orquestral foi subindo de nível, sendo de destacar a notável intervenção do corne inglês no início do 3º acto, que esteve perfeito.
Não posso dizer que tenha ficado muito impressionado com a prestação do maestro, que me pareceu rotineira e pouco inspirada. Para além de ter permitido alguns excessos dinâmicos nos metais, a submergir completamente as vozes dos cantores, o principal “pecado” que senti foi o pouco envolvimento emocional da orquestra, a pouca incandescência, a frequente quebra de tensão dramática.



Os cantores
Elisabete Matos é a grande cabeça-de-cartaz desta nova produção e creio que justificadamente. Creio que esta foi a melhor prestação que lhe ouvi, com envolvimento dramático muito bem conseguido, espelhando perfeitamente todo leque de emoções que atravessam a personagem. Não senti, da mesma forma que em ocasiões anteriores, problemas de vibrato demasiado largo. A voz esteve sempre focada, segura no registo mais grave e com assinalável facilidade no registo agudo, embora ocasionalmente com alguma estridência e dureza nos picos.



Embora cenicamente não tenha gostado muito da opção do liebestod (não da ideia, mas da concretização, em especial por estarem ambos sentados no sofá), Elisabete Matos esteve bastante bem, com controlo emocional forte e acentuando mais a componente de êxtase e de transfiguração do que a dimensão orgástica desse momento culminante de toda a ópera.



Não conhecia o tenor norte-americano Erin Caves, que foi uma excelente descoberta. O papel de Tristan é quase sobre-humano e exige não só uma excelente técnica vocal, como uma inteligente gestão do esforço e da voz. Exibiu um timbre sonoro, claro, límpido, com boa projecção vocal e assinalável potência. Não se poupou excessivamente no dueto de amor (notando-se até uma pequena falha da emissão na sua parte final), o que me causou alguma apreensão sobre como iria decorrer o 3º acto. Todavia, levou de vencida essa dura prova em bom nível, apenas se notando já um cansaço evidente da voz a partir do O diese Sonne!



O baixo islandês Kristinn Sigmundsson esteve excelente. A sua voz é profunda, cheia e ressonante, de sonoridade nobre; a sua figura gigantesca e imponente adequa-se perfeitamente ao papel do Rei Marke. No longo monólogo do 2º acto, em que surgiu como uma figura fragilizada, em robe de chambre e de pantufas, a sua voz soou marcada pelo azedume, pelo ressentimento, com inflexões irónicas. Não foi o Rei Marke magoado mas nobre e contido que por vezes se ouve noutras interpretações; essa vertente surgiu, sim, na sua intervenção do final do 3º acto, onde a dor se fez sentir, mas sem perda de gravidade.



O papel de Brangäne foi interpretado pela meio-soprano australiana Catherine Carby. A sua voz soou quente e texturada, fazendo um interessante contraste com Elisabete Matos. Sempre envolvida dramaticamente, cantando com dinamismo, teve o seu momento mais alto, na minha opinião, na primeira intervenção admonitória durante o dueto de amor (Einsam wachend in der Nacht), que soou etérea.



Luís Rodrigues foi um Kurwenal generoso e caloroso. Para mim, Luís Rodrigues é um cantor extremamente sólido e polivalente, sendo sempre garantia de alta qualidade artística. E mais uma vez o demonstrou. No 1º acto foi adequadamente “provocador” sem ser chocarreiro; no 3º acto foi lírico e desesperado, culminando no seu suicídio com a espada de Tristan. A voz foi sempre muito bem projectada e audível e a prestação cénica impecável.



Marco Alves dos Santos cantou adequadamente o antipático papel de Melot, o mesmo se podendo dizer das intervenções de João Terleira como pastor e João Oliveira como timoneiro.



Uma nota negativa para o grande auditório do CCB: estando eu no 1º balcão, senti de forma anormalmente alta um ruído de fundo permanente e intrusivo, suponho que do ar condicionado ou de sistema de arrefecimento dos projectores. Creio que é injustificável um tal nível de ruído.
Também me pareceu uma má opção a realização de um intervalo de uma hora entre o 2º e o 3º acto, por ser excessivamente longo, quebrando a unidade da obra e atirando o seu final para muito tarde, em especial num dia de semana.



Em suma, na minha opinião foi uma récita de qualidade artística bastante elevada e que valorizou a presente temporada do Teatro Nacional de São Carlos.

2 comentários:

  1. Que pena enorme. Não pude comprar os bilhetes em tempo útil e agora foi-se. Não se entende só duas récitas.

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  2. A encenação de Charles Edwards, transportando a acção para a actualidade, foi interessante e respeitou a obra. O primeiro acto fez-me lembrar a encenação da Metropolitan Opera de Nova Iorque da presente temporada. Não consegui fazer uma interpretação tão rica como a aqui relatada mas achei que houve uma abordagem muito aceitável, embora com componentes dispensáveis. O 3º acto foi para mim o menos conseguido. Não percebi a função da santa nem a interacção do Tristão com ela, não gostei do “chuto” de heroína porque não lhe reconheci mérito narrativo e as duas vezes em que o Tristão, antes de morrer, mergulha as mãos na tinta vermelha (sangue) também foram exageradas e um incómodo para o próprio cantor (estava sentado na terceira fila e isso foi muito notório).
    Gostei da direcção musical de Graeme Jenkins e gostei muito da Orquestra Sinfónica Portuguesa, em crescendo até um 3º acto esplêndido, numa das suas melhores interpretações em ópera nos últimos tempos.
    O Tristão de Erin Caves foi uma agradável surpresa no panorama actual em que escasseiam os “Tristãos” para as boas “Isoldas” actuais. Voz de timbre agradável e bem projectada, conseguiu resistir com qualidade no 3º acto. Houve umas pequenas falhas, é certo, mas no computo final foi uma boa interpretação.
    Elisabete Matos brindou-nos com mais uma boa interpretação. Fez uma Isolda segura e sempre bem audível sobre a orquestra. Só não gostei de algumas passagens do registo mais agudo para o médio. Foi um porto seguro para o tenor, sobretudo no 2º acto.
    O rei Marke de Kristinn Sigmundsson foi excelente. O cantor tem uma voz de timbre belíssimo, grande musicalidade e potência. Cenicamente foi também irrepreensível.
    Luís Rodrigues é um cantor que muito respeito mas acho que não foi o Kurwenal que eu esperava. A voz é de qualidade mas a interpretação do cantor não fez justiça à personagem. No 3º acto melhorou substancialmente, mas já foi tarde.
    A Brangäne de Catherine Carby foi agradável, embora em alguns momentos quase não se ouviu. Contudo, foi fabulosa durante o dueto de amor no 2º acto.
    Os jovens cantores portugueses nos papéis secundários foram todos óptimos, Marco Alves dos Santos como Melot, João Oliveira como timoneiro e, sobretudo, João Terleira como pastor.
    A opção pelo CCB foi muito acertada, a comodidade das cadeiras é incomparavelmente superior à das do São Carlos, mas associo-me ao protesto sobre o intolerável ruído do ar condicionado, inadmissível quando se apresenta um espectáculo de ópera.

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