quinta-feira, 17 de julho de 2014

DIE FRAU OHNE SCHATTEN (A MULHER SEM SOMBRA), Bayerische Staatsoper, Munique, Junho 2014/ Munich, June 2014.

(Capa do Programa : Divã do Dr. Sigmund Freud, Museu Freud, Londres)

( English version below)

Autor: De Moura MC, Lisboa

Assisti a Die Frau ohne Schatten na Bayerische Staatsoper, integrada no Festival de Ópera de Munique, 29 de Junho de 2014.


Esta ópera de Richard  Strauss foi escolhida para a reabertura do Teatro Nacional em 1963 depois da sua reconstrução na sequência do bombardeamento de 1943. Regressa em 21 Novembro de  2013, 50 anos da data histórica,  produção do realizador  Krzysztof Warlikowski e apresentação do novo director musical Kirill Petrenko. Ópera em 3 actos, com libreto de Hugo von Hofmannsthal,  foi estreada em Viena, 1919. A versão escolhida por Petrenko é a partitura completa, diferente do hábito corrente de usar versões com cortes.


O enredo situa-se num passado mítico e desenrola-se em três níveis de existência. A filha do Rei dos Espíritos (Keikobad) foi conquistada pelo Imperador; ela não é espírito nem humano. Não tem sombra (o que significa que é infértil). Uma grande ameaça paira sobre ambos: se não se tornar humana, o Imperador transformar-se-á em pedra. A Imperatriz pede ajuda à enfermeira que a acompanha e descem ao mundo dos humanos. Procuram uma mulher infeliz que recusa o marido (Barak, o tintureiro) e pensa vender a sua sombra. A ideia não agrada à Imperatriz que acaba por recusar. Esta recusa torna a Imperatriz humana. O imperador regressa à vida e ela adquire uma sombra. Os dois casais reúnem-se, e ouvem-se as vozes das crianças que esperam nascer num futuro distante.

O elenco de cantores é do melhor que se consegue actualmente. Adrianne Pieczonka (Imperatriz) , excelente soprano canadiana tem uma voz de belo timbre, enorme flexibilidade vocal, e constrói uma emocionante “Kaiserin”. A cena com Keikobad (julgamento ?) no  Acto 3 em que pronuncia as palavras fatídicas “ Ich will nicht “ é de antologia.


 Um caso á parte, a soprano dramática russa Elena Pankratova (Mulher de Barak), que teve uma interpretação superlativa, de incrível domínio vocal e cénico. Grande impacto na expressão de descontentamento e nas cenas de sedução do Acto 2 ,  ternura e desespero na extraordinária ária de arrependimento do  Acto 3. A beleza do canto distingue toda sua prestação.


 Johan Botha (Imperador), heldentenor reconhecido, a voz de timbre bonito é imponente em todos os registos. Certa rigidez cénica que empresta a um personagem que vai petrificar.


 John Lundgren (Barak), barítono sueco, foi notável. O timbre de um cantor de Lied, tem a presença e a simpatia do personagem humano (é a única figura da opera com um nome real). A mezzo americana Deborah Polaski (Enfermeira) é reputada em Strauss e Wagner. A sua voz revela já alguma fragilidade, mas manteve a tessitura adequada. Grande actriz, foi excelente a composição cénica da personagem ambígua, sensacional na loucura do fim. Os outros papeis estiveram muito bem, Sebastian Holecek, poderoso Mensageiro dos Espíritos, Eri Nakamura, bela Voz do Falcão, Okka von der Damerau, serena Voz do Além e Hanna-Elisabeth Müller, seguro  Guardião do Limiar do Templo. A actriz Renate Jett, represnta Keikobad (papel não falado).

 (Photo Wilfried Hösl, Bayerische Staatsoper)

Bayerischen Staatsorchester (BSO), Coro da BSO e Coro Infantil da BSO interpretações brilhantes. Com Strauss no seu ADN, os músicos foram os primeiros heróis da noite, revelando toda a grandeza e requinte musical desta partitura maior e complexa. Sebastian Weigle, maestro alemão, recebeu a orquestra preparada por Petrenko (ausente em Bayreuth para o “Anel” de Wagner) mas teve o mérito da direcção transparente e dinâmica que conferiu coerência ao todo. Revelou elegância e inteligência na condução dos cantores. Foi esmerado nos detalhes, como o monólogo do Imperador no Acto 2, e o solo do primeiro violino no Acto 3.


 A orquestra teve grandes momentos, como a explosão dramática do final cataclísmico do Acto 2 e nos tutti que encerram o conto. 
A régie superior do grande realizador polaco merece nota máxima. Inspirado no filme de Alain Resnais, “L´Année Dernière à Marienbad“(1961), são projectadas várias sequências, desse labirinto surreal de sonhos e memórias, antes de se ouvir o motivo de Keikobad que inicia a opera. A soberba cenografia da grande decoradora Malgorzata Szczesniak modula um espaço poético e onírico, de espectacular beleza plástica. Warlikowski consegue a integração dos cantores no seu conceito de “teatro completo“.

(Photo Wilfried Hösl, Bayerische Staatsoper)

 Vídeos e trabalho de animação notáveis, de Denis Guéguin e Kamil Polak, projectados nas paredes de tijolo branco de um sanatório  (ou hospital ?). Clareza na definição dos espaços: divã da Imperatriz num ambiente confortável face à simples cama e máquina de lavar roupa dos Barak. Um elevador faz a ligação entre os dois mundos: o cunho pessoal de Warlikowski. As sequências alucinantes de vídeos da Floresta e Debaixo de Agua (deflagração de uma guerra?) introduzem a magia inesperada nesta ópera fantástica. Na cena do Imperador no pavilhão dos Falcões no Acto 2 as crianças usando grandes máscaras de Falcão evocam o mundo dos sonhos e do subconsciente que a musica potente de Strauss e o texto de Hofmannstahl sugerem. A menina loira que acompanha a Imperatriz pela mão (a Kaiserin na infância) lembra o mundo onírico em que a Imperatriz parece viver. Keikobad, um velho muito curvado faz aparições regulares, apoiado numa bengala.

(Photo Wilfried Hösl, Bayerische Staatsoper)

Na grande cena final é interessante a dicotomia: ao fundo um muro azul onde se projectam as sombras e o movimento das crianças que esperam nascer, de grande beleza. No proscénio ocorre o brinde de champagne dos pares reencontrados, a acidez da realidade burguesa. Para Warlikowski o trajecto dos casais que se tornaram finalmente humanos é complexo e provavelmente não tem  “happy ending“. Partilho a sua visão. O final que se segue ao reencontro dos dois casais pode ser um grande ponto de interrogação. Na mesa onde está o quatuor jubilatório, três têm uma criança ao colo, a Imperatriz não?

 (Photo Wilfried Hösl, Bayerische Staatsoper)

Warlikoski mantem-se fiel à história original, deixa intacta a grande obra dramática. A qualidade e a seriedade da encenação, a sua concentração no essencial conferem unidade e força dramática a esta grande noite de ópera. Na utopia do Acto 3 o uso superior dos vídeos e a sua beleza poética, criam simplicidade e inteligência inesquecíveis. “Chapeau”!
Die Frau Ohne Schatten”, encenação extraordinária que salienta a complexidade intelectual e a sumptuosidade musical e vocal. Indiscutível triunfo de uma obra única de Strauss e certamente um dos maiores espectáculos do aniversário dos 150 anos.





THE WOMAN WITHOUT A SHADOW, Bayerische Staatsoper, Munich, June 2014.

I saw the performance of the DIE FRAU OHNE SCHATTEN  at the Munich Opera Festival,  29th June 2014.  This opera from Richard Strauss was chosen for the reopening of the National Theatre in 1963, after his reconstruction after the II World War. Celebrating  50 years of the historic date, a new production by Krzysztof Warlikowski and the presentation of Kirill Petrenko as the brand new musikdirector. Opera in three Acts, to a libretto by Hugo von Hofmannsthal, first performed in Vienna, 1919. Petrenko selected the complete uncut score, against the current trend of using shortened versions.

Set in the mythical past the plot takes place in three levels of existence. The daughter of the King of the Spirits (Keikobad) has been floating in an in-between state since the human Emperor conquered her: She is neither a spirit nor a human. A woman without a shadow – which means a woman who is infertile.  A threat hangs over the Empress and Emperor : If she does not become fully human, he will turn to stone.  The Empress asks help from the nurse that accompanies her to search for a shadow. They descend to the human world, and the nurse takes the Empress to an unhappy woman who refuses her husband's (Barak, the Dyer) advances.  She is prepared to sell her shadow. However, the prospect of the transaction does not make the Empress happy. She declares her wish to belong to the humans. With this renunciation, Keikobad´s spell is broken: the Emperor comes back to life , she herself casts a shadow. The couples reunite and the voices of unborn children  can be heard, a possibility for a distant future

The singers cast is one of the best that could be assembled today. Adrianne Pieczonka (The Empress), excellent Canadian soprano, has a voice with a beautiful timbre, great vocal flexibility and offered us  a very moving Kaiserin. The scene with Keikobad (a judgment ?), Act 3 , in which she pronounces  the terrible words “Ich will nicht“ is truly impressive. But the outstanding performance  was Elena Pankratova (the Dyer’s Wife). 

The Russian dramatic soprano sang with a thrilling radiance,  incredible vocal and scenic qualities. She can shade her voice to express many nuances of the role, and never seemed to have to push very hard. A compelling performer she had great impact on the expression of her naggishness and the seduction  scenes in Act 2, specially riveting in her Act 3 aria of repentance. It was the beauty of her singing that marks an unique performance. 

Johan Botha (The Emperor), a well known heldentenor, beautiful singing , vocally impressive, effortless power. His scenic rigidity seems appropriate as the figure will turn into stone. 

John Lundgren, a Swedish baritone, was a notable Barak. The voice of a Lieder singer, he has the presence and the sympathy of this figure humanity (only character  with a real name). American mezzo Deborah Polaski (The Nurse),  an experienced Straussian and Wagnerian singer, throws everything at her performance. Her dramatic voice is certainly frailer than it was, but she kept her  tessitura adequate. Great actress, she was excellent in portraying this ambiguous personage, sensational in the final madness. The other parts were well taken, notably so Sebastian Holecek as the powerful Spirit Messenger, Eri Nakamura sang the Voice of the Falcon, Okka von der  Damerau delivered a serene Voice from the Above and Hanna-Elisabeth Müller was a secure Guardian of the Threshold. Renate Jett, Austrian actress, represents a mute  Keikobad.

Bayerischen Staatsorchester BSOChoir of BSO e Children Choir da BSO were brilliant. Sebastian Weigle took over from Kirill Petrenko (in Bayreuth for the Wagner´s Ring). Weigle led a solid, well-paced and superior performance, and the BSO (on its finest form) responded beautifully. He had his own merit in the transparency and dynamic direction that gave coherence to all the massive ensemble. Weigle´s handling of everything from the magical, intimate textures to the visceral exciting climaxes was masterful.  With elegance and intelligence he gave ideal support to the singers. Especially notable were the Emperor´s monologue and the solo violin of Act 3. Great moments were the dramatic explosion of the cataclysmic final of the Act 2 and the tutti that end the opera.

The superior new staging of the Polish director deserves the highest mark. Inspired in Alain Resnais ´s movie “L´Année Dernière à Marienbad “(1961), several clips were projected “ohne musik”, a surreal labyrinth  of dreams and remembrances,  before the strong Keikobad motif with which Strauss called the audience to attention. The superb scenario of the great decorator Malgorzata Szczesniak modulates a dreamlike and poetic space. 
Visual spectacular and plastic beauty and the integration of the singers into Warlikowski “ total theatre “ concept, which included spell-binding video and animation work- by Denis Guéguin and Kamil Polak – projected onto the white-tiled walls of a sanatorium (or hospital ?) set. Clear definition of the spaces : the Empress´s couch in a comfortable décor face to the simple bed and washing-machines of the dyers’ home. An elevator makes the connection between the two worlds,  with a personal touch of the director.  The Forest and Underwater video sequences brought breath-taking magic to this fantasy opera. 
In the big scene in Act 2 with the Emperor at the “Falkenhaus”, with child actors wearing huge falcon masks, evoked the word of dreams and the unconscious as potently as Strauss´s music and Hofmannsthal’s text do. The blonde little girl that accompanies by the hand the Empress (the Kaiserin in infancy?) recalls the dreamlike world in which the Empress seems to live.
Keikobad, an old man very curved made regular appearances propped up on a walking stick. The final scene is dominated by a large number of children whose playful actions are shown as shadows on the back blue wall, great beauty , on the proscenium the reunited couples toast champagne, the acid reality of the bourgeoisie.
For Warlikowski the journey of the couples that have assumed humanity is complex and mostly probably does not have a happy ending. I agree with his artistic vision. What happens after the final encounter of the beautiful two couples can be a great question mark. In the round table where the jubilatory quatuor feasts, three have a child seated on the lap, but the Empress has not?
Warlikovski  keeps his fidelity to the original plot, and leaves intact the great dramaturgic work. The quality and seriousness of the staging, his focus on the essential, give unity and strength to this great opera evening. In the utopia of Act 3 the superior use of videos and the poetic beauty, create simplicity and intelligence.” Chapeau”! 

Die Frau ohne Schatten , an extraordinary staging that enhances the intellectual complexity and the musical and vocal sumptuosity. Great triumph of Richard Strauss most complex and enigmatic opera, this will certainly be one of the major achievements of the Strauss anniversary year.

4 comentários:

  1. É com enorme satisfação e grande orgulho que colocamos este magnífico texto (e fotografias) sobre “Die Frau ohne Schatten” na Bayerische Staatsoper, da autoria de MC de Moura. A qualidade do texto deixa transparecer, inequivocamente, a expertise do autor, que pela primeira vez enviou uma crítica para o “Fanáticos da Ópera” que, assim, ficou mais rico. Em nome dos “Fanáticos”, Muito Obrigado!

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    1. Agradeço o seu amável comentário e fiquei naturallmente sensibilizado. Foi um prazer e uma honra colaborar no " Fanáticos da Ópera " que muito admiro e que regularmente acompanho. Aprecio a diversidade e a qualidade das obras abordadas e dos comentarios.

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  2. Caro MC de Moura, Muito obrigado pela sua colaboração no seu/nosso blogue. O seu óptimo texto espelha inequivocamente a qualidade da récita a que teve oportunidade de assistir. Realmente, com encenações e elencos de excelência não há como negar a vitalidade que a ópera tem hoje em dia. Espero que continue a brindar-nos com a sua superlativa colaboração. Pena que não seja versado em Strauss: confesso que me aguçou o desejo de conhecer mais a fundo esta ópera. Obrigado.

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    1. Agradeço o comentário que faz à minha apreciação da grande ópera de Strauss , pouco conhecida e que tive a oportunidade de ver pela primeira vez nesta produção superior que aonselho. Na programação 2014/2015 Munique retoma " Frau Ohne Schatten " em Dezembro com Petrenko e um novo elenco mas mantem a soprano Pankratova.

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