quinta-feira, 10 de junho de 2010

Die Walkure - Opera de Paris (Bastille) - 9 de Junho 2010



A temporada 2009-2010 da Ópera de Paris inclui o início de um novo ciclo de Anel do Nibelungo em Paris.

Depois de o Ouro do Reno em Março, chegou agora a vez de A Valquíria que, como penso que todos concordam, se trata (muito provavelmente) da melhor ópera do ciclo (para mim é de certeza a melhor).

Tive então a oportunidade de assistir ontem a uma das diversas récitas desta nova produção parisiense.

Com um elenco, à partida, de grande classe (embora não possa dizer de topo), seria de esperar um espectáculo melhor do que aquele a que assisti. Tentarei relatar e comentar como se estivessem a assistir...

O primeiro acto incia-se na casa de Hunding. Esta produção oferece-nos uma sala com duas colunas brancas revestidas de crânios que me pareceram de carneiros (encontrava-me na 23ª fila da plateia... lugares sobrevalorizados do ponto de vista de custo...). Numa das colunas um pano negro que deixa em dúvida aquilo que esconde. Uma fogueira, um local onde não se consegue perceber mas corresponde a uma fonte (só perceptível quando alguém a utiliza e se vê ter como conteúdo água) e, como fundo, um painel a preto que no decorrer do acto se eleva e deixa transparecer um vidro amplo como se de uma janela se tratasse.

No prelúdio, em vez da simulação do casamento de Hunding e Sieglinde, como assistimos em São Carlos, e em vez de uma ausência de acção relevante como a que pude ver no Anel de Covent Garden, Londres, 2005-2007, assistimos à sanguinária acção de Hunding e dos seus homens, mais tarde relatada por Siegmund. Hunding e os seus capangas aqui vestidos como se soldados de tropa se tratassem, matam e violam, com esguichos de sangue evidentes mesmo à distância a que me encontrava. Ali ficam depois, virados de costas para o público, aguardando a entrada de Hunding em "cena". Siegmund, também de tropa, entra e segue-se toda a acção que penso que conhecem.

Talvez aqui seja bom começar a minha avaliação dos cantores...

Robert Dean Smith foi Siegmund e Ricarda Merbeth Sieglinde. O que dizer?

Achei ambos como azeite e água em palco. Em todos os momentos que estiveram a interagir, tudo pareceu, do ponto de vista cénico, forçado e sem efeito.
Não se sentiu qualquer intimidade, qualquer sentimento, olhar escondido, de quem no fundo se está a apaixonar.
Mesmo quem não conhecesse o enredo acharia, como eu, que estes dois só podeiam ser uma coisa: "parvos"! Um correr de um lado ao outro de cena por Merbeth, o cantar de Smith com a mão direita aberta de palma para o público, enfim... pouco eficaz.

Do ponto de vista vocal, Merbeth com voz aceitável, por vezes soluçando o canto encolhendo os ombros, mas sem sentimento na voz. Smith num registo que lhe é mais grave, com distorção tímbrica, e muito métrico, pouco melódico, num 1º acto que fica tão mais belo quando se assume como "bel canto" (posso afirmar tal sem pecar, FanaticoUm? :)).

Tudo melhorou quando Gunther Groissbock entrou. Clarificado nas suas posições em cena, com uma voz de timbre perfeito para o papel, voz interpretativa com temor nas alturas certas, dominou a cena em pleno. Revistou Siegmund quando o encontrou (ponto interessante da encenação) e até ao final do acto esteve no seu melhor. Fiquei muito impressionado por este jovem cantor.

A chegada de Hunding revelou então a tal janela ampla. só de vidro, no fundo do palco, e a chuva a cair intensamente sobre essa mesma janela (como sabem, na história, chove no exterior, é isso que a entrada orquestral tenta simular no início da ópera...).

O relato de Siegmund manteve-se métrico demais...
Deixado só, o duplo grito com que chama o pai Walse que lhe havia prometido a espada foi afinado mas completamente incorrecto. Ambos os Walse foram demasiado longos e não houve grande diferença de duração entre ambos. Quando chamamos alguém que não nos ouve, tendencialmente aumentos intensidade e alguma duração no segundo chamamento, e o mesmo acho que se deve fazer em ópera. Não em igual intensidade e duração. Enfim... mais um ponto criticável e do qual não gostei.
Merbeth aparece, não cria qualquer entoação especial qual fala do desconhecido com um olho apenas que apareceu no casamento e deixou a espada cravada na árvore. Falamos de Wotan e não de um homem (ou melhor Deus...) qualquer. Não se pode cantar como se não fosse importante... aqui Philippe Jordan também não ajudou orquestralmente.
O referido pano negro tapava um quadro em tons de dourado onde era claramente perceptível uma árvore mas sem se ver a espada. Sieglinde tratou de cortar o quadro após o destapar e por baixo encontrava-se então Notung.

Um pormenor interessante foi, quando Siegmund diz que "ninguém entrou nem saiu da casa mas é sim a Primavera que os vem cumprimentar", a janela fica totalmente descoberta com um luar cheio de luz, revelando então árvores com folha branca. Só no Wintersturmme deixa de chover o que realmente tem um efeito cénico muito bem conseguido (na altura pareceu-me demasiado tardia a interrupção da chuva mas ao escrever estas palavras compreendo agora o timing ideal).

Alguma magia (exceptuando a do papel de Hunding) apenas se viu apartir do "Siegmund heiss ich...". O andamento imprimido por Jordan e o acordar de Smith permitiram um final que se desejava ter visto durante todo o acto. Aqui, por um breve momento, os gémeos agora amantes funcionaram bem cenicamente, com o acto a terminar com ambos a sairem da casa e a serem vistos, através da janela, correndo pelas árvores, fugindo no seu amor.

O segundo acto foi, sem dúvida, o melhor de toda a récita.

Abre com uma mesa cheia das maças de Freia, onde as 9 valquírias se sentam e brincam com as mesmas. O fundo é agora substituído por um espelho que revela a escadaria que dá acesso ao palco. Umas letras escrevendo GERMANGEJ (com mais uma letra mas que não consegui perceber se era um I ou não...) não me transmitiram ideia nenhuma... German sim mas as restantes seriam de?

Katarina Dalayman como Brunnhilde parecia embalar-se para uma noite de glória. Potência na voz, sobre a orquestra, e muito confiante com à vontade cénico.

O Wotan (esperava o grande Falk Strukmann, mas aparentemente ainda adoentado) foi de um desconhecido para mim: Thomas Johannes Mayer. Entrou bem, com voz embora pouco forte em potência e com timbre pouco "à baixo" para o papel, passeava cenicamente convincente e com alma e entoação eficaz na voz. A Fricka de Yvonne Naef foi espectacular. Timbre perfeito, viu-se no espelho a subir a escadaria até se encontrar com Wotan, num vestido escarlate incapaz de nos deixar indiferente. Quando diz a Wotan: "Olha-me nos olhos..." obriga-o com um gesto de autoridade com a mão na face do Deus. Toda a passagem musical que procura transmitir o tormento psicológico de Wotan ao ver que Fricka tem razão e que ele não pode ajudar Siegmund, foi cenicamente fenomenal por Mayer, acabando num "mas ele encontrou a espada" sublime. Bom momento de ópera este dueto Fricka-Wotan.

O monólogo de Wotan foi também muito convincente quer cenica quer vocalmente. Terminou com as 3 primeiras letras do palco a serem empurradas escadaria abaixo e com um voltar da mesa com as maças de pantanas quando afirma que só lhe resta esperar por uma coisa: o FIM!

À frente do palco durante todo este tempo do 2º acto temos a lança de Wotan, prateada e extremamente luzidía, e o capacete e colete de Brunnhilde.

A passagem para Siegmund e Sieglinde trouxe novamente o que se assistiu no 1º acto: ausência completa de interacção cénica entre os dois. Tudo melhorou quando no dueto de Siegmund com Brunnhilde. Orquestra sublime, Smith transfigurado na voz, sem distorção tímbrica, convincente nos movimentos em relação com Dalayman segura como até então, arranjando em círculo as maças incialmente desordenadas no chão. Como fundo, já sem espelho, voltamos a ver as árvores do 1º acto, agora com as 8 restantes valquírias entre as mesmas.

Os capangas de Hunding chegam, envolvem Siegmund num círculo denso enquanto Merbeth canta de forma convincente e sem maneirismos cénicos fúteis.

Brunnhilde agarra na lança que sempre esteve no palco sem a mover mas ao aparecer Wotan dizendo para a largar ela foge assustada e termina o duelo com ambos os intervenientes lesados, Siegmund e Hunding (mais uma vez com um jacto de sangue à mistura). Fricka assiste a tudo.

O acto termina de forma aceitável mas penso que poderia ter mais impacto de outra forma. Em vez de Wotan fica de braços abertos para Fricka como quem diz "aqui está o que querias" ao apontar para ambos os corpos mortos (no fundo sem deixar transparecer qualquer sentimento em relação à morte do filho), poderia ter olhado para Siegmund com tristeza, aproximado de Fricka lançado-lhe olhar de reprovação em relação ao que se assistiu e acabar o acto a sair de cena atrás de Brunnhilde para a castigar. Isto acaba por ser a minha visão cénica, "armado" em encenador de ópera ultra-amador mas... deixem-me sonhar! Eu especialmente acho deliciosas as encenações em que Fricka aparece fisicamente neste final de acto...

O terceiro acto desiludiu vocalmente...

Inicia-se a "Cavalgada" com projecção de texto que me pareceu alemão, em que (traduzido no placar electrónico sobre o palco) se diz, resumindo...: "nós somos as Valquírias e andamos a reunir homens guerreiros heróis para fortalecer Walhalla". Entretando um grupo de pessoas vestidas de Samurais fazem movimentos de guerra sincronizados. À frente, quatro mesas têm sobre elas indivíduos do sexo masculino, completamente desnudos, manchados de sangue, os quais vão sendo lavados pelas valquírias; a certa altura, com um movimento de braços, como que transferem vida a estes homens e estes saem de palco, voltando outros nas mesmas condições para serem lavados, etc... alguns vêm puxados por elas em cobertores, arrastados pelo chão e amontoados a um canto antes deste procedimento purificador. Achei muito original embora houvesse alguns risos e comentários sonoros (do senhor à minha frente para a acompanhante) de possível reprovação...
Sieglinde e Brunnhilde chegam e Dalayman começa o show de gritos. Embora baptize o filho dos gémeos cantando claramente Siegfried, em vez do muitas vezes ajustado para facilitar "Saigfried", o final das frases no agudo terminavam com gritos e assim se manteve até ao final.
Wotan entra trazendo a lança e Siegmund enrolado num cobertor e coloca-o em cima de uma das mesas, central ao palco. Toda a cena de explicação do castigo a Brunnhilde é feita metricamente por Mayer, numa voz que se agrava em termos de ausência de força suficiente para se ouvir sobre a orquestra e que progressivamente se torna gutural em vez de visceral. Muito fraco.
O interlúdio orquestral que se ouve após a saída de cena das 8 valquírias é cortado com descida de pano de palco o que, no meu entender, distrai muito o seguimento da acção. Mas, no fundo, os Samurais tinham de sair bem como mais alguns acessórios de palco. Acho que não foram felizes neste aspecto.
Até ao final, Wotan e Brunnhilde, embora cenicamente aceitáveis, vão transmitindo a degradação da voz em progressivo, Dalayman com gritos, Mayer com som gutural, o que acabou por comprometer também a alma vocal que havia distribuído no 2º acto. A última interveção de Wotan não me fez ter medo nenhum da ponta da sua lança... completamente fora de tom, voz gasta de esforço. Ponto forte foi o sincronismo do "Der Gott" com a Orquesta e alguns aspectos cénicos: o colocar de Brunnhilde, por Wotan, ao lado do corpo de Siegmund envolto em cobertor - no fundo Wotan perde um filho pela morte e uma filha pelo castigo (muito bem conseguida esta visão); o passar de uma senhora vestida de luto de um lado ao outro do palco na passagem musical final - penso que seria Erda (também ela perdendo assim, de certo modo, uma das filhas - é a minha interpretação); e Brunnhilde acabado por acordar e se deitar debaixo da mesa como quem, com medo, se procura defender ainda mais. O palco revela cores vermelhas, ambiente de "pós-fogo" com alguns figurantes caracteristicamente humanos, talvez antevendo assim o fim dos deuses (a ver do modo como terminar o Crepúsculo) - Pode-se ver estes aspectos na foto que coloco.

Uma palavra final para Jordan que conduziu uma Orquestra bem oleada, por vezes empastada e sem ataque forte nas passagens importantes como a entrada com o tema de Hunding no primeiro acto mas globalmente bem nos restantes.

Não assisti ao Ouro do Reno mas, fazendo uma análise com base nesta A Valquíria, penso que não se trata de um Anel a considerar e a merecer seguimento (por quem pense fazê-lo) no Siegfried e Crespúsculo na próxima temporada (já revista por mim neste blog). A manter-se elenco semelhante, uma possível representação de ciclo completo no início da temporada de 2011-2012 soa-me pouco merecedor de investimento.

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