segunda-feira, 9 de abril de 2018

MACBETH de Giuseppe Verdi na Royal Opera House, London, 7.04.2018

(review in English below)

A ópera Macbeth foi estreada em 1847 em Florença depois de mais uma colaboração entre Francesco Maria Piave e Giuseppe Verdi. Mais tarde, em 1865, a ópera foi extensamente revista para a Ópera de Paris. Actualmente, é esta última versão aquela que é regularmente apresentada nos teatros.

A história é baseada no drama homónimo de William Shakespeare, dramaturgo de referência para Verdi e que lhe inspirou outras óperas: Otello e Falstaff. É uma história de ambição, poder, crime e da culpa levada ao extremo da loucura. O libreto segue o drama inglês de forma muito próxima, sendo a alteração principal a transformação das três bruxas num conjunto de 3 coros femininos que, ainda assim, cantam cada um deles como uma personagem.

A encenação de Phyllida Lloyd é muito rica e interessante, tendo sido estreada na ROH em 2002. Aqui foi retomada por Daniel Dooner.

Imagens da ROH

A acção não é situada num século particular e a encenadora pretende dar relevo à atribuição de significados simbólicos a diversos elementos cénicos. Desde logo pela caracterização das bruxas. Sendo estas encaradas ao longo de séculos como símbolo demoníaco e maléfico, Lloyd caracteriza-as ao estilo de Frida Kahlo, quer na maquilhagem, quer no guarda roupa preto com turbante vermelho vivo. Se habitualmente a mulher em Macbeth é um ser maléfico nas suas acções, nesta encenação a mulher não é entendida exclusivamente como um símbolo do mal, demoníaco ou mágico. É-lhe, antes, atribuído um papel activo, um cunho irreverente, funcionando com um símbolo da emancipação da mulher que deve poder decidir as suas acções, sejam elas boas ou más. Para tal contribui o papel que é dado a uma bruxa que, como figurante, ajuda ao desenrolar da acção: por exemplo, é ela quem entrega a coroa de Duncan a Macbeth, é ela quem ajuda o pequeno Fleance a fugir de ser assassinado. 

Imagens da ROH

Igualmente interessante é o uso da água: há uma espécie de lavatório no canto direito do palco que é usado com frequência para a lavagem das mãos, como se a necessidade de purificação das mãos manchadas pelo crime fosse permanente. Apesar dessa limpeza ser, como sabemos, ineficaz, a verdade é que há essa procura de purificação ou, antes, de ocultação do mal pela água.

Imagens da ROH

O uso de uma caixa em forma de gradeamento dourado também é interessante. É como se o poder estivesse sempre simbolicamente aprisionado: nessa caixa aparece Duncan a cavalo e é nela que  é, posteriormente, assassinado. A caixa funciona também como a sala do trono, sala onde Macbeth é coroado e assassinado, e onde Malcolm retoma o poder.

Imagens da ROH

Para vincar essa ideia, a coroa de Macbeth surge encerrada numa pequena réplica dessa caixa quando, depois de coroado, Macbeth procura descansar no seu quarto. 

 Imagens da ROH

Do ponto de vista visual a encenação é impactante, apesar de escura, como aliás é habitual nas encenações de Macbeth. O cenário global é uma estrutura em madeira aos quadrados (como uma tablete de chocolate) pintada a negro matte. Esta estrutura vai aparecendo e desaparecendo, colocando os cantores num cenário sombrio e de algum modo claustrofóbico, como que a limitar no espaço a ambição pelo poder. A cama dos Macbeth é uma réplica dessa estrutura, cuja colcha reproduz esse padrão, mas com quadrados negros brilhantes. A forma como as alucinações e visões  de Macbeth são apresentadas é convencional, mas muito eficaz. E não faltam os pormenores cénicos especificados no libreto: Duncan banhado em sangue, as diferentes visões, a lanterna de Lady Macbeth, os ramos da floresta de Birman.

O ponto negativo, a realçar algum, é a direção de actores que é, mais do que monótona, algo artificial, não impedindo, contudo, o desenrolar da acção de forma fluída.


A Orquestra da ROH apresentou-se ao mais alto nível sob a direção de Antonio Pappano, cuja capacidade para explorar as dinâmicas musicais da partitura foi magistral, assim como a expressividade que consegue nos diferentes momentos da ópera: é dramático, lírico, religioso ou pungente sempre que tal é exigido. 


O Coro da ROH teve igualmente uma prestação de elevada qualidade, quer os três conjuntos das bruxas — sempre com um tempo e intensidade magníficos —, quer todo o coro nas suas diversas intervenções com destaque natural para o coro dos refugiados Patria oppressa.

 Imagens da ROH

Quanto aos cantores, o elenco era dominado pela presença de Anna Netrebko. A sua presença magnética, carisma e voz sem paralelo no mundo lírico actual catapultaram-na para uma prestação de absoluta excelência. A voz está enorme e Netrebko sabe usá-la em toda a sua extensão: os agudos são estratosféricos, os graves sublimes, as passagens em piano ou as entradas em forte inatacáveis, e apresentou uma coloratura impecável. A sua Lady é maléfica e manipuladora e cambia a forma como faz e diz em perfeita consonância com a acção. A leitura da carta, passagem de grande dificuldade na atribuição de um cunho dramático e anunciador da trama trágica que se vai seguir, foi perfeita, assim como todas as intervenções seguintes, podendo destacar a ária La luce langue cujo A loro um requiem, l’eternita foi arrepiante. Netrebko é um espanto e, no meu entender, ninguém canta ou cantou o papel de Lady Macbeth melhor. Que privilégio!

Imagens da ROH

Željko Lučić, como Macbeth, foi a figura central do elenco masculino. A sua voz é, indubitavelmente, bonita e grande e, creio, ter tudo para ser a de um verdadeiro barítono verdiano. Todavia, sucede que está a milhas de o ser. A sua interpretação cénica é estática, coisa que perdoaria não fosse a sua interpretação vocal de uma monotonia exasperante. É incapaz de transmitir emoções: por isso canta Iago tal como canta Rigoletto ou Macbeth. Por exemplo, quando a alucinar  diz Ma fuggi, deh, fuggi, fantasma tremendo! parece tão desesperado quanto eu estaria a relaxar num esteira de uma piscina com um mojito na mão. Em jeito de comparação, é como um computador a tocar piano: tem voz, mas não tem vida! Uma frustração porque vocalmente não falha uma.

Imagens da ROH

Ildebrando D’Arcangelo foi um Banquo de grande categoria, apresentando uma excelente forma vocal e uma projeção irrepreensível. O papel é pequeno, mas bonito, e D’Arcangelo, como habitualmente, engrandeceu-o com uma magnífica interpretação de Come dal ciel precipita.

David Junghoon Kim foi um Macduff de voz cheia e com excelente projeção, tendo cantado a famosa ária O figli, o figli miei! de forma expressiva e elegante.

Konu Kim foi um Malcolm de qualidade. Foi engraçado que quer Macduff, quer Malcolm tivessem sido cantores asiáticos: parecia que a Escócia ia ser tomada de assalto pela Coreia do Sul.

As restantes personagens, nos seus pequenos papéis, estiveram em muito bom nível, destacando Francesca Chiejina como aia de Macbeth pela beleza do timbre.


A deslocação a Londres ficou totalmente justificada. Assistiu-se a uma récita de elevadíssimo nível qualitativo, a começar pela encenação que se destaca pela riqueza simbólica, passando pela orquestra de musicalidade sumptuosa e terminando nos cantores de nível global muito alto. E faço duas menções: uma negativa para Lučić, pela frustração que causa a sua monotonia; uma tremendamente positiva para Netrebko, pela incomparável qualidade como intérprete. Diria mesmo que quando Netrebko participa em récitas de Macbeth a ópera dever-se-ia chamar Lady Macbeth!




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(Review in English)
The opera Macbeth was premiered in 1847 in Florence resulting from another collaboration between Francesco Maria Piave and Giuseppe Verdi. Later, in 1865, the opera was extensively reviewed for the Paris Ópera. Nowadays, it is this last version that is regularly presented in the theatres.

The story is based on the homonymous William Shakespeare’s drama, playwright of reference for Verdi and that inspired to him other operas: as Otello or Falstaff. It is a story of ambition, power, crime and guilt taken to the extreme of madness. The libretto follows the English drama closely, the main alteration being the transformation of the three witches into a set of three female choirs that still sing each of them as a solo character.

Phyllida Lloyd's staging is very rich and interesting, having premiered at ROH in 2002. This time, it’s revisited by Daniel Dooner.

The setting is not situated in a particular century and the stage director intends to attribute symbolic meanings to various scenic elements. First of all, the characterisation of witches. Witches has been regarded for centuries as a demonic and malefic symbol. Lloyd characterises them in the style of Frida Kahlo, both in their make-up and in the black wardrobe with a bright red turban. If usually the woman in Macbeth is an evil being in her actions, in this scenario the woman is not understood as a symbol of evil, demonic or magical powers. Rather, she is given an active role, an irreverent character, functioning as a symbol of the emancipation of the woman who must be able to decide her actions, being they good or bad. For this, the role that is given to a witch who, as an assistant, helps in the unfolding of the action: for example, it is she who delivers the crown of Duncan to Macbeth, it is she who helps little Malcolm to escape being assassinated.

Equally interesting is the use of water: there is a kind of lavatory on the right-hand corner of the stage that is often used for hand-washing, as if the need to cleanse the hands stained by crime was permanent. Although this cleansing is, as we know, ineffective, the truth is that there is this quest for purification or, rather, for hiding evil through the water.

The use of a box in the shape of a golden cage is also interesting. It is as if the power were always symbolically imprisoned: in this cage Duncan appears on his horseback and is in that cage he will be assassinated. The box also functions as the throne room, where Macbeth is crowned and murdered, and where Malcolm regains power. To emphasise this, Macbeth's crown is enclosed in a small replica of this cage when, after crowning, Macbeth seeks to rest in his room.

The staging is visually striking, although a bit too dark, as is usual in Macbeth's stagings. The overall setting is a wooden frame with squares (like a chocolate bar) painted in matte black. This structure appears and disappears, creating a dark and claustrophobic scenario, as if it was to limit in space the ambition for power. The Macbeth bed is a replica of this structure, whose quilt reproduces this pattern, but with shiny black squares. The way Macbeth's hallucinations and visions are presented is conventional, but very effective. And the scenic details specified in the script are all present: Duncan bathed in blood, the different visions, the lantern of Lady Macbeth, the branches of the Birman forest.

The negative point, to mention one, is the direction of actors that is, more than monotonous, a bit artificial. Despite this, it does not prevent the unfolding of the action in a fluid way.

The ROH Orchestra performed at the highest level under the Antonio Pappano’s baton, whose ability to explore the musical dynamics of the score was masterful, as well as the expressiveness it achieves in the different moments of the opera: it is dramatic, lyrical, religious or pungent where  required.

The ROH Choir also had a high quality performance, both the three sets of witches - always with a magnificent time and intensity - and the whole choir in its various interventions with a natural highlight for the refugees’ chorus Patria oppressa.

As for the singers, the cast was dominated by the presence of Anna Netrebko. Her magnetic presence, charisma, and unparalleled voice in today's lyrical world have catapulted her into a performance of absolute excellence. The voice is enormous and Netrebko knows how to use it in all its length: the highs are stratospheric, the basses sublime, the passages in piano or the fortes unassailable, and presented an impeccable coloratura. Your Lady is evil and manipulative and changes the way she does and says everything in perfect harmony with the action. The reading of the letter, a passage of great difficulty in the attribution of a dramatic and announcing tragic trait that is to follow, was perfect, as well as all the following interventions. I could emphasise the aria La luce langue whose A loro un requiem, l’eternita was amazing. Netrebko is an astonishment and, in my opinion, no one sings or sang the role of Lady Macbeth any better. What a privilege!

Željko Lučić, as Macbeth, was the central figure of the male cast. His voice is undoubtedly beautiful and great and, I believe, have everything to be that of a true Verdian baritone. However, it happens that it is miles away from being so. His scenic interpretation is static, which I would forgive, but his vocal interpretation is of exasperating vocal monotony. He is incapable of transmitting emotions: he sings Iago as he sings Rigoletto or Macbeth. For example, when hallucinating he says Ma fuggi, deh, fuggi, fantasma tremendo! it seems as desperate as if I would be to relax on a pool with a mojito in my hand. In comparison, he's like a computer playing the piano: he has the voice, but no life, which is a huge frustration because he does not fail a note vocally speaking.

Ildebrando D'Arcangelo was a Banquo of great category, presenting an excellent vocal form and an impeccable projection. The role is short but beautiful, and D'Arcangelo, as usual, magnified it with a magnificent interpretation of Come dal ciel precipita.

David Junghoon Kim was a Macduff with huge voice and with excellent projection, having sung the famous aria O figli, o figli miei! in an expressive and elegant way.

Konu Kim was a Malcolm of good quality. It was funny that either Macduff or Malcolm were Asian singers: it seemed that Scotland was going to be taken by South Korea.

The remaining characters, in their short roles, were at a very good level, highlighting Francesca Chiejina as Macbeth's lady-in-waiting for the beauty of the timbre.


The trip to London was totally justified. There was a recital of very high quality, starting with the staging that stands out for the symbolic richness, passing by the sumptuous orchestra of great musicality and ending up with the singers of a very high global level. And I must make two special mentions: a negative one to Lučić, by the frustration that causes his monotony; a tremendously positive for Netrebko, for her incomparable quality as an interpreter. I would even say that when Netrebko participates in recitals of Macbeth the opera should be called Lady Macbeth!

1 comentário:

  1. Obrigado por esta descrição pormenorizada, que nos permite imaginar minimamente o espectáculo que perdemos.
    Já tive o privilégio de assistir à Lady (Macbeth) Netrebko há cerca de 3 anos e ela foi arrasadora, tal como aqui referido. A melhor cantora da actualidade neste tipo de interpretações e uma das melhores de sempre. E esta podemos ouvi-la, ao contrário das divas do passado. Não subscrevo, de todo, a opinião de alguns que dizem que já não há cantores como antigamente, a Netrebko é um excelente exemplo de que não é assim!
    Estou roidinho de inveja de não ter assistido a este espectáculo...

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