domingo, 15 de dezembro de 2013

FALSTAFF de G. Verdi — Met Live in HD, Culturgest, 15.12.2013

(Review in English below)


Giuseppe Verdi tinha 80 anos quando estreou a sua última ópera — Falstaff. Cidadão italiano distinto, dado o seu percurso artístico e político, a estreia de Falstaff em 1893 no Scala gerou uma enorme expectativa entre os críticos e amantes da ópera, não só por ser Verdi, mas pela sua ousadia. Seria Verdi capaz de escrever uma ópera cómica? Em 1853, Un giorgno de regno — a única ópera cómica que Verdi escreveu pouco depois da morte de dois filhos e da esposa — foi um massivo fracasso. Desde aí, Verdi dedicou-se à transposição musical do sentir e ser-se humano e da sua tragédia, transformando-as em arte tangível, vivencial, credível e a puxar ao sublime. Oiçamos, como exemplos acabados dessa arte, Otello, Don Carlo ou La Traviata.


Mas a resposta à pergunta que colocámos é: SIM! E fê-lo com o contributo de Arrigo Boito, libretista com quem já colaborara em Otello e em Un Ballo in Maschera. Este baseou-se na comédia As Alegres Comadres de Windsor de William Shakespeare.

A recepção entusiástica de Falstaff desde a sua estreia espelha o génio levado ao extremo de Verdi. Falstaff é uma simbiose: a perfeita ligação da palavra com a música. Se há quem considere Falstaff a mais genial ópera de Verdi, outros há também quem não a apreciam de tal forma. O que é legítimo, pois nem tudo o que é genial nos toca a alma. Mas quem oiça esta ópera, mesmo que num dia de humor mais sombrio, não deixará de esboçar um sorriso. Para isso, basta existir. É que Falstaff é um pouco do que há em todos nós de desejo, da mera busca do sensório e do prazer, que deixa para trás a honra (“Può l'onore riempirvi la pancia? 
No./ (…)/ Che é dunque? Una parola. 
Che c'é in questa parola? C'é dell'aria che vola”) para sobreviver e poder dizer, por entre sorrisos, que “tutto nel mondo è burla. Ma ride ben chi ride la risata final”.
A história da ópera é conhecida dos amantes da ópera, ou de Shakespeare, pelo que vos deixamos o link para o programa de sala desta transmissão, e outro para um excelente texto de contextualização de FranciscoSasseti.


A produção de Robert Carsen é magnífica. Coloca a acção nos anos 50. O pano abre com o “imenso Falstaff” numa condizente imensa cama. A segunda cena foi inteligentemente transportada para um luxuoso restaurante onde, em mesas distintas, as comadres engendram um plano para tramar Falstaff e Ford procura vingança.


A terceira cena é alojada num distinto bar britânico com alusões à caça e nem o perfume das luvas é esquecido depois de Falstaff ir Vado a farmi bello (o pai de Shakespeare era um fabricante de luvas).

A quarta cena, passada numa cozinha, é hilariante e termina com Ford encharcado, tal foi a quantidade de água do Tamisa que se elevou com a queda desse meteorito que era o cavaleiro inglês. A quinta cena, às portas da hospedaria, é um estábulo onde um imundo Falstaff canta para um cavalo que riempia la pancia.

À última cena, nos jardins de Windsor, não faltam enormes cornos ou a mesa comprida (elemento recorrente em Carsen) onde Falstaff desfila as suas desculpas e pede que lhe salvem o abdómen (“Ahi! Ahi! mi pento!” e “Ma salvagli l'addomine”). O guarda roupa, os cenários e a direcção de actores é estupenda. Esta encenação coloca a música num patamar ainda mais elevado e fica na memória como geradora de excelentes momentos de comicidade. Uma boa encenação é... é isto!


Este foi também o regresso à internacionalidade do carismático maestro James Levine. Admirador profundo desta ópera, a sua alegria foi bem notória no brilhantismo com que fez soar a “sua” orquestra. Buon auguri, Maestro!


Sir John Falstaff “é” o barítono italiano Ambrogio Maestri. Foi cénica e interpretativamente muito convincente, tendo cumprido as exigências cómicas da sua personagem até pela sua figura física que é perfeitamente compatível com a descrição de Falstaff: é enorme e, se as Alegres Comadres conseguissem aprovar o imposto sobre a gordura de que falam na ópera para castigar Falstaff, não temos dúvidas de que não lhe conseguiria fugir. Tem uma voz com um timbre lindíssimo, fresco e jovial, onde se desenvolvem uns agudos estratosféricos e brilhantes de uma clareza e dicção raras. O seu “L’Onore” foi perfeito e a sua entrevista a Renée Flemming no intervalo foi hilariante!

Sir Ford foi o barítono italiano Franco Vassallo. Tem uma voz com um timbre bonito e adequado ao papel, sem que todavia seja transcendente. Ofereceu-nos uma boa interpretação do “È sogno, o realtà?” e foi cenicamente convincente.

O tenor italiano Paolo Fanale foi Fenton. O papel é relativamente pequeno, mas muito lírico. O seu timbre é bonito e tem uma excelente presença em palco. Fez um bom par amoroso com Nannetta e vocalmente esteve em bom nível no seu arioso “Dal labbro il canto estasiato vola”. O meu único problema é que acho que Verdi “profetizou” a existência de Juan Diego Florez com este papel...

O tenor italiano Carlo Bosi foi Dr. Caius e esteve bem. O tenor americano Keith Jameson foi Bardolfo, enquanto que o baixo americano Christian Van Horn foi foi Pistola. Gostámos igualmente de ambos, tendo os dois funcionado muito bem cenicamente sendo as suas vozes de qualidade.


Alice Ford foi encarnada pelo soprano americano Angela Meade. Gostámos muito da sua prestação. Tem um papel central na ópera e conseguiu sê-lo efetivamente, quer ao nível da sua capacidade vocal, quer no campo da interpretação cénica.

O soprano cubano-americano Lisette Oropesa foi Nanneta. Tem um timbre muito bonito e agradável e esteve bem cenicamente. Projetou muito bem a voz, sempre com agudos muito bem sustentados e melódicos. A sua “ária” “Sul fil d’un soffio etesio” foi óptima. Uma voz a estar atento.

Stephanie Blythe, meio-soprano americano, foi Mrs. Quickly. Com o seu timbre grave, escuro e cheio, foi uma Mrs. Quickly de enorme qualidade com um carácter muito cómico. Contracenou muito bem com Falstaff quando surge na taberna para lhe dar conta do “interesse” de Alice e de Meg Page no amor que Falstaff lhes oferecera. “Reverenza!”...

Meg Page foi interpretada pelo meio-soprano americano Jennifer Johnson. O papel é praticamente irrelevante do ponto de vista vocal. Entre o quarteto de vozes feminino não tem qualquer destaque individual, ao contrário das outras três personagens. Ainda assim, esteve bem, conquanto não possamos fazer uma apreciação muito concreta da sua voz.


Em suma, foi uma récita de elevadíssima qualidade, o mais divertido momento do fim-de-semana e a melhor maneira de celebrar o fim do ano do bicentenário do nascimento desse mestre que foi e é Giuseppe Verdi.

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(Review in English)

Giuseppe Verdi was 80 years old when he debuted his last opera — Falstaff. Distinguished Italian citizen, given his artistic and political life, the premiere of Falstaff at La Scala in 1893 generated a huge expectation among critics and opera lovers, not only for being Verdi, but also by his audaciousness. Would be Verdi able to write a comic opera? In 1853, Un giorgno di regno — his only comic opera he wrote shortly after the death of two children and wife — was a massive failure. Since then, Verdi devoted himself to musical transposition of what is feeling and being human and its tragedy, turning them into tangible, experiential, credible and sublime art. Let us listen, as finished examples of this art, Otello, Don Carlo and La Traviata.

But the answer to the question we posed is: YES! And he did it with the help of Arrigo Boito, the librettist with whom he collaborated in Otello and Un Ballo in Maschera. This was based on the comedy The Merry Wives of Windsor by William Shakespeare.

The enthusiastic reception of Falstaff since its debut reflects Verdi’s genius taken to the extreme. Falstaff is a symbiosis: the perfect connection of the word with music. If some consider Falstaff the most brilliant of Verdi’s operas, there are also others who do not appreciate it as such. This is legitimate because not everything that is brilliant touches our soul. But who hears this opera, even in a more somber mood day, will not fail to smile. Simply because we exist. Falstaff is a bit of what are in ourselves of desire, of the mere pursuit of sensory and pleasure, of what of us leaves behind the honor (“Può l'onore riempirvi la pancia? 
No./ (…)/ Che é dunque? Una parola. 
Che c'é in questa parola? C'é dell'aria che vola”) to survive and be able to say, amid smiles, that “tutto nel mondo è burla. Ma ride ben chi ride la risata final”.

The history of this opera is well known to lovers of opera or Shakespeare, so we leave you the link to the program of this broadcast, and another for an excellent contextualization text by Francisco Sasseti.

The production of Robert Carsen is magnificent. He placed the action in the 50s. The curtain opens with "immense Falstaff" befitting a huge bed. The second scene was cleverly transported to a luxurious restaurant where, in separate tables, the merry wifes engender a plan to plot Falstaff and Ford seeks revenge. The third scene is housed in a distinctive British pub with allusions to hunting and even the scent of the gloves isn’t forgotten after Falstaff go "Vado a farmi bello" (Shakespeare's father was a glove maker). The fourth scene, past a kitchen, is hilarious and ends with a soggy Ford, such was the amount of water of the Thames, which came with the fall of this meteorite that was the English knight. The fifth scene, at the doors of the inn, a filthy Falstaff sings to a horse that is “riempia la pancia”. In the last scene, in the gardens of Windsor, that are not lacking horns or a huge long table (recurring element in Carsen) where Falstaff parades his apologies and asks to save his abdomen ("Ahi ! Ahi ! Mi pento!" and "Ma salvagli l' addomine"). The wardrobe, the sets and direction of actors is stupendous. This production puts music to an even higher level and stays in memory as generating moments of great comedy. A good production is... is this!

This was also the return to the internationality of the charismatic conductor James Levine. Great admirer of this opera, his joy was evident with the brilliance "his" orchestra sounded. Buon auguri, Maestro!

Sir John Falstaff "is" Italian baritone Ambrogio Maestri. He was very scenic and interpretively compelling, having fulfilled the requirements of his comic character even because of his physical figure which is perfectly compatible with the description of Falstaff: he is huge, and if merry wifes could approve the tax on fat they are talking about in the opera to punish Falstaff, we have no doubt that he could not escape. He has a voice with a beautiful, fresh and youthful timbre, where he develops a stratospheric and bright treble with rare clarity and diction. His "L' Onore" was perfect and his interview with Renée Fleming was hilariouss!

Sir Ford was the Italian baritone Franco Vassallo. He has a voice with a beautiful and timbre suited to the role, without however transcendent. Offered us a good interpretation of "È sogno, o realtà?" and was theatrically convincing.

The Italian tenor Paolo Fanale was Fenton. The role is relatively small but very lyrical. His timbre is beautiful and he has a great stage presence. Making a good loving couple with Nannetta, he was vocally in good level in his arioso "Dal labbro il canto estasiato vola". My only problem is that I think Verdi "prophesied " the existence of Juan Diego Florez with this character...

The Italian tenor Carlo Bosi was Dr. Caius and he did well. The American tenor Keith Jameson was Bardolfo, while American bass Christian Van Horn was Pistola. We liked both equally, and the two worked very well theatrically and had quality voices.

Alice Ford was incarnate by the American soprano Angela Meade. We very much enjoyed her performance. She plays a central role in this opera and was so effectively, both in terms of her vocal ability, whether in the field of scenic interpretation.

The Cuban-American soprano Lisette Oropesa was Nanneta. She has a very beautiful and pleasant timbre and was well theatrically. Designed to fine voice, always very well supported and melodic treble. Her "aria" f” Sul fil d’un soffio etesio”. A voice to be aware.

Stephanie Blythe, American mezzo-soprano, was Mrs. Quickly. With her serious, dark and full timbre, Mrs. Quickly was one of great quality with a very comedic character. Opposite nicely with Falstaff when she arrives to the tavern to give account of the "interest" of Alice and Meg Page in Falstaff love. "Reverenza!"...

Meg Page was interpreted by American mezzo-soprano Jennifer Johnson. The role is practically irrelevant from the point of view voice. Among the quartet of female voices she does not have any prominent individual moment, unlike the other three characters. Still, she was good, although we cannot make a concrete assessment of her voice.


In short, it was a performance of very high quality, the most fun time of the weekend and the best way to celebrate the end of the year of the bicentenary of the birth of this master who was and is Giuseppe Verdi.

1 comentário:

  1. Mesmo depois de ler este magnífico e empolgado texto, confesso que me conto entre aqueles que não vibram com esta ópera. Sei que é uma opinião politicamente incorrecta, mas é assim.
    Hoje gostei da encenação e houve dois intervenientes excepcionais, James Levine (que já fazia muita falta) e Ambrogio Maestri que foi o melhor Falstaff que vi até hoje. Também ele protagonizou um dos momentos mais altos da tarde, a entrevista à Renée Fleming, já aqui salientada.
    Se as senhoras estiveram bem, o mesmo não diria dos homens. Achei que Franco Vassallo como Ford esteve aquém do desejável (cénica e vocalmente) e Paolo Fanale como Fenton cantou muito em esforço, perdendo alguma qualidade nas notas mais agudas. Como o camo_opera referiu, depois de se ouvir Juan Diego Florez neste papel…

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