quinta-feira, 5 de junho de 2014

DIE WALKÜRE / A VALQUÍRIA, Liceu, Barcelona, Maio de 2014 – Elenco 1

(review in english below)

Assisti em Barcelona a duas récitas da ópera Die Walküre de R. Wagner, com elencos distintos. Neste primeiro texto relato as minhas impressões sobre uma delas.

A encenação de R Carsen, desinteressante e austera, traz a acção para a segunda guerra mundial. Tudo se passa em diferentes cenários do campo de batalha, com excepção do início do 2º acto, num imponente salão de inspiração nazi. A ópera é desprovida de qualquer misticismo, quase todas as personagens são figuras militares (apenas Fricka e Brünhilde são civis).
As incoerências cénicas são muitas. A espada Nothung está num tronco totalmente a despropósito no contexto (um acampamento militar), dado todos usarem metrelhadoras e outras armas de fogo. O início do 3º acto é muito mau. As valquírias, vestidas de senhoras e ensaiando brincadeiras de criança, beijam os heróis estropiados e mortos e estes a levantam-se, tipo zombies, e sobem umas escadas ao fundo do palco. Mas o pior é o fogo sagrado, dividido entre uma pequena vela pífia colocada a meio do palco (que numa das récitas se apagou de imediato) e uma pequeníssima linha de chamas ao fundo, de intensidade tipo “campingás” (que nem se via das primeiras filas da plateia, segundo me disse um amigo).

A Orquestra Sinfónica do Liceu esteve aquém do desejável, muito por culpa do maestro Josep Pons. As notas falhadas e fora de tempo foram uma constante (e não apenas nos metais), o ritmo foi quase sempre empastelado, sem variações rítmicas significativas e, sobretudo, sem transmitir emoção.


 Klaus Florian Vogt foi um Siegmund de grande qualidade vocal e cénica. O tenor alemão tem uma voz belíssima e muito clara, à partida menos adequada para uma personagem viril como é Siegmund. Mas, graças às suas qualidades técnicas e cénicas, foi muito credível, a ligação com a Sieglinde foi excelente (apesar da encenação desfavorável) e brindou-nos com uma interpretação de qualidade superior. Foi muito convincente quando chamou por Wälse e o no Winterstürme foi tocante.


 A Sieglinde de Anja Kampe esteve ao mesmo nível. A soprano (lírica) alemã foi sensacional na interpretação. Voz poderosa, harmoniosa, cheia de nuances enriquecedoras que proporcionaram uma interpretação de elevada qualidade, também muito apoiada nas excelentes capacidades cénicas.


 O Hunding de Eric Halfvarson completou um primeiro acto excelente. Uma personagem de voz cavernosa, potente e assustadora, como se exige neste papel.




 O mezzo japonês Mihoko Fujimura fez uma Fricka com classe mas não perfeita. Revelou alguma instabilidade vocal, sobretudo no início, mas cantou o papel de forma convincente e com boa projecção vocal.


 Albert Dohmen impôs-se como Wotan e mostrou que a idade não significa menor qualidade interpretativa. O cantor alemão pode estar em fim de carreira mas tem um timbre muito bonito, canta sempre sobre a orquestra e só no registo mais agudo quebra ligeiramente. Foi excelente e transmitiu toda a força interpretativa de uma personagem vencida e, no final, rendida à filha Brünhilde.


 Irene Theorin foi soberba como Brünhilde. Vocalmente fabulosa, a soprano sueca fez uma interpretação de referência. Segura e alegre no início, gélida no anuncio da morte a Siegmund, e frágil, assustada e resignada no final, no diálogo com o pai. A voz é magnífica, apiana com uma qualidade invulgar nos sopranos dramáticos e esteve sempre ao mais alto nível.


 Nas Valquírias as interpretações foram muito distintas no que à qualidade respeita, mas saliento a voz magnífica de Daniela Köhler (Helmwige) que cantou os Hojotoho com uma qualidade superior à que já tenho ouvido a algumas Brünhildes.


 Uma récita em grande, ao contrário da que ouvi ao outro elenco, sobre a qual escreverei algo posteriormente.









*****



Die Walküre, Liceu, Barcelona, May 2014 - Cast 1

I saw in Barcelona two performances of the opera Die Walküre by R. Wagner , with different casts .
In this first article reporting my impressions of them .

The staging by R Carsen, uninteresting and austere, brings the action to the second world war. Everything happens in different scenarios of the battlefield, with the exception of the beginning of the 2nd act, an imposing hall with nazi inspiration. The opera is devoid of any mysticism, almost all the characters are military figures (only Fricka and Brunhilde are civilians).
The staging inconsistencies are frequent. The sword Nothung is on a trunk not adequate to the context (a military camp) because everyone uses machine guns and other firearms  The start of the 3rd act is very bad. The Valkyries, dressed as ladiesm rehearse children's games, kissing the dead heroes and these arise, like zombies, and go up some stairs to the back of the stage. But the worst is the sacred fire, split between a small and ridiculous candle placed in the middle of the stage (in one of the performances it went out immediately) and a tiny line of flames in the background,(which is not even seen from first rows of the audience, a friend told me) .

The Symphony Orchestra of the Liceu was below desired level, much because of the conductor Josep Pons. Wrong notes and timings were constant (not only in the metals), the rhythm was often jammed, without significant variations, and especially without transmitting emotion.

Klaus Florian Vogt was a Siegmund of great vocal and scenic quality. The German tenor has a beautiful and very light voice, less suitable for a strong character like Siegmund . But thanks to his technical and scenic qualities, he was very credible, the connection with Sieglinde was excellent (despite the unfavorable staging) and presented us with a performance of superior quality. He was very convincing when calling Wälse and in Winterstürme he was touching.

Anja Kampe 's Sieglinde was at the same top level. The German soprano was sensational in the performance. She has a powerful, harmonious, full of enriching nuances voice that provided an interpretation of top quality, very well supported by her excellent acting capabilities.

The Eric Halfvarson’s Hunding completed an excellent first ac . A performer of cavernous, powerful and scary voice, as required in this role.

Japanese mezzo Mihoko Fujimura was
​​a Fricka with class but not perfect. She revealed some vocal instability, especially at the beginning, but she sang the role convincingly and with good vocal projection .

Albert Dohmen was imposing as Wotan and showed that age does not mean lower performance quality. The German singer may be close to the end of his career but nevertheless he has a very beautiful timbre, always sings about the orchestra and only in the very top notes he breaks slightly. He was excellent and conveyed all interpretive power of an unsuccessful Wotan and, in the end, rendered to his daughter Brünhilde .

Irene Theorin was superb as Brunhilde. Vocally fabulous, the Swedish soprano was a reference in the role. She was confident and happy at the beginning, icy when announcing the death to Siegmund, and fragile, scared and resigned at the end, in the dialogue with her father. The voice is magnificent, she reaches piano notes with an unusual quality in the dramatic sopranos, and has always been at the highest level.

In the Valkyries interpretations were very different in regards to quality, but the magnificent voice of Daniela Köhler ( Helmwige ) who sang the Hojotoho better than some Brünhildes I have heard before deserves a special reference

An excellent performance, unlike that of the other cast, on which I will write something in a few days.

*****

quarta-feira, 4 de junho de 2014

CARMEN, Theatro Municipal de São Paulo

CARMEN, ACERTOS E MAIS ACERTOS NO THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO. CRÍTICA DE ALI HASSAN AYACHE NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
   


Carmen de Bizet é sucesso há mais de 100 anos por diversos fatores. Usa tema exótico, a Espanha onde desfilam toureiros, contrabandistas, ciganas, mocinhas indefesas, bêbados e soldados. A música de Bizet é do início ao fim da ópera contagiante, uma miscelânea de temas que tem a cor espanhola como a Habanera, a Seguidilha, o Quinteto dos Contrabandistas e a música da Plaza dos Touros. Empolgante também é o lirismo da ária de Micaëla e a força da Canção do Toreador. Avança no tempo ao mostrar uma mulher independente que segue seus princípios de liberdade, mais que volúvel Carmen é uma mulher que vive intensamente sempre buscando novas aventuras e amores.

Opéra-comique é um gênero de ópera que mistura diálogos falados com recitativos cantados, cuidado leitor, nem toda Opéra-comique é engraçada ou cômica. Carmen de Bizet é uma Opéra-comique completamente trágica. Existe versão de Carmen, feita após a morte do compositor, somente com recitativos que exclui os diálogos, esta versão descaracteriza a ópera. Acertadamente o Theatro Municipal de São Paulo utiliza a versão original com os diálogos falados em francês e mantém quase toda a estrutura da ópera.

Dito isso o que dizer da estreia da Carmen apresentada no Theatro Municipal de São Paulo. Uma sucessão de acertos e mais acertos. A começar pelo elenco, a escalada para dar vida a cigana que adora excitar a macharada foi Rinat Shaham. O mezzo-soprano mostrou excelentes dotes vocais: Voz quente, sensual com graves profundos e encorpados. Atuação que esbanja na sensualidade e deixa os homens de queixo caído, uma Carmen na medida com qualidade vocal do início ao fim da récita. Desempenho dramático espetacular que mostra todas as facetas da personagem.



                                                Cena Carmen , foto Internet
  
Thiago Arancam mostrou o porquê de seu sucesso internacional. Tenor com técnica refinada de agudos com brilho e de extrema beleza em uma voz bem projetada e penetrante. Pode ter pecado no fraseado, mas nada que atrapalhasse em demasia. Exibição cênica que prima pela qualidade onde sua melhor participação se concentrou no terceiro e quarto atos. Na cena final colocou intensidade ao personagem mostrando um homem desesperado pela paixão arrebatadora da cigana. Grande Don José.

O Escamillo de Rodrigo Esteves não mostrou graves a altura do personagem, na falta deles colocou bons médios e abusou dos agudos. Soltou um bom agudo no final da canção do Toreador inexistente na partitura que levanta o público. Atuação cênica correta que demonstra a valentia e o caráter conquistador do personagem.



                                                   Cena Carmen, foto Internet

Quando se fala em Micäela se pensa em uma personagem doce e apaixonada e por isso os sopranos que a interpretam costumam ter voz lírica com pouco peso. Eu fazia parte desse grupo, agora vejo que Micäela é uma personagem forte que tem a coragem de enfrentar o perigo de se aventurar nas matas correndo o risco de ser trucidada por contrabandistas inescrupulosos, tudo isso atrás de Don José, para lhe dizer que sua mãe está morrendo. Lana Kos faz uma Micäela forte vocal e cenicamente, seu dueto no primeiro ato e sua ária no terceiro são um primor de canto. Voz forte, encorpada e quente com um timbre que atinge vigor nas notas médias. Uma Micäela que não estamos acostumados a ver e que nos surpreende pelo talento vocal.

Os personagens Frasquita, Mercedes, Dancaïre, Remendado, Zuniga e Morales mostraram boas vozes em suas pequenas intervenções, isso não justifica a vinda deles de diversos países do mundo. Cantores brasileiros fazem o que eles fizeram igual ou melhor, sou capaz de lembrar sem consulta uns 3 ótimos solistas para cada papel citado.

Em uma rede social John Neschling faz uma crítica de sua própria montagem (até crítico ele virou agora, no que será que ele é formado?) sobram palavras de elogios a todos: Excelência, qualidade superior, pronuncia impecável e fenomenal interpretação são termos que utiliza para elogiar a ópera que ele mesmo produziu. Diz que os comprimários de fora são importantíssimos para uma Carmen de qualidade, cita escritores e compositores (ele adora uma citação, se for em inglês melhor ainda). Tudo conversa para justificar o injustificável.

A Orquestra Sinfônica Municipal dirigida por Ramón Tebar mostrou ótima sonoridade com tempos e sonoridade perfeitos. Toda a beleza melódica da partitura foi explorada em diversas cores e nuances. Tebar exibiu respeito aos cantores fazendo com que música e voz estivessem em harmonia. O Coro Lírico Municipal nas mãos de Bruno Greco Facio mostrou vozes afinadas e sincronizadas, destaque para a petizada do Coral da Gente, Silmara Drezza extraiu ótima afinação dos guris.



                                               Carmen, foto Internet
  
A direção cênica de Filipo Tonon opta pelo tradicional, não inventa soluções mirabolantes e consegue dar dinâmica a ação. Sua Carmen explode em sensualidade e em paixões arrebatadoras, o diretor caracteriza os personagens conforme o libreto até nos pormenores. O cenário de Juan Guillermo Nova todo em madeira exibe grande beleza visual e se apresenta adequado a ideia da direção. Os figurinos confeccionados por Cristina Aceti elevam ainda mais o nível da produção com acertos. O único senão é a Carmen estar vestida igual a todas as moças do coro no primeiro ato. Pode-se dizer que ela é igual as outras, trabalhadora na fábrica de cigarros como elas e tem que estar com a mesma roupa. O problema é que no palco essa saída não funciona, devido ela estar igual as demais gera confusão no espectador, Carmen é protagonista e tem que se destacar na multidão.


Bizet compôs uma abertura para a ópera que é conhecida do grande público e compôs uma pequena abertura para cada ato. Não entendi por que colocaram a cena do coro na abertura do quarto ato primeiro e depois a abertura original. O Balé da Cidade de São Paulo mostrou excelente coreografia com passos que mostram o calor da música espanhola.

sábado, 31 de maio de 2014

SINFONIA N.º 9 DE BEETHOVEN na Fundação Gulbenkian, 30.05.2014

(Review in English below)

A Fundação Calouste Gulbenkian apresentou ontem uma das mais mais emblemáticas obras da música — Sinfonia n. º 9, op. 125, “Coral”, de Ludwig van Beethoven —, um verdadeiro património imaterial da humanidade, não apenas pela qualidade artística inegável de uma genialidade e inovação ímpares, como pela mensagem que o poema An die Freude (“À Alegria”) de Friedrich Schiller transmite e que deveria ser um mote para esta nossa Europa em cisão económico-política. De referir, que esta sinfonia assinala este ano os 190 anos da sua estreia.

(foto internet)

Sublinhar, uma vez mais, que Beethoven e a sua Sinfonia n.º 9 são geniais é desnecessário e revelar-se-ia um exercício tautológico desgastante para o leitor. Por isso, passemos à análise do concerto.

(fotos da FCG)

A primeira parte foi constituída por uma obra de Daan Janssens com o nome (...revenir dans l’oubli...), encomenda da FCG em estreia mundial. Não é particularmente interessante, explora uma sonoridade no vazio, éterea, com alguma estridência e angústia misturada.


A Sinfonia de Beethoven foi dirigida pelo maestro titular da FCG — o britânico e fleumático Paul McCreesh. Confesso, novamente, que, no meu entender limitado, é um maestro que transmite muito pouca energia e que parece pouco envolvido, o que se transmite à orquestra que, por regra, tem interpretações suficientes (Pedro Ribeiro em oboé esteve em destaque — é um dos melhores músicos da Orquestra!). Foi o que ontem se verificou: foi apenas suficiente. Não ajudaram em nada os solistas que se apresentaram a um nível manifestamente insuficiente para a dimensão da obra e qualidade exigível numa casa com a tradição da FCG.


Florian Boesch, barítono e o melhor dos quatro, teve algumas dificuldades no registo agudo; Noah Stewart, tenor, mal se ouviu; Virpi Raisanen, meio-soprano, não se ouviu de todo; e Ann-Helen Moen, soprano, fez soar as notas mais agudas de modo audível. O Coro Gulbenkian (maestro Jorge Matta) esteve, como lhe é habitual, em muito bom nível, tendo sido, o elemento artístico em destaque do concerto.


O público aplaudiu, pois, Beethoven!

Terminada que está a temporada de estreia de Paul McCreesh, lamento fazer um balanço negativo: não vi qualquer crescimento desta Orquestra, antes vi uma involução. Veremos o que nos reserva a temporada 2014/15...

----------------------
(Review in English)

The Calouste Gulbenkian Foundation presented one of the most emblematic works of music history - Symphony no. 9, op. 125 by Ludwig van Beethoven - a true heritage of humanity, not only because of the undeniable artistic quality of a genius and its unmatched innovation, but also by the message that the poem An die Freude ("To Joy ") by Friedrich Schiller conveys and that should be a motto for our Europe in fission. It should be noted that this symphony marks this year the 190 years of its premiere.

Emphasize once again that Beethoven and his Symphony no. 9 are remarkable is unnecessary and would prove to be an exhausting tautological exercise for the reader. So we move to the analysis of the concert.

The first part consisted of a work of Daan Janssens named (...revenir dans l' oubli…), an order of FCG in world premiere. It is not particularly interesting, explores an emptiness sound, ethereal, with some stridency and mixed anxiety.

Principal conductor of FCG - British phlegmatic Paul McCreesh - led the Symphony of Beethoven. I admit, once again, that, in my limited understanding, he is a conductor that transmits very little energy and seems not very involved, which is transmitted to the orchestra that, as a rule, have only sufficient interpretations (Pedro Ribeiro on oboe was particularly at good level and he is one of the best musicians of the Orchestra!). That's what yesterday was found: it was just enough. Did not help the soloists who presented a grossly inadequate quality for the size of the work and required quality in a hall with the tradition of FCG. Florian Boesch, baritone and the best of the four, had some difficulties in the high register; Noah Stewart, tenor, was barely heard; Virpi Raisanen, mezzo-soprano, was not heard at all; and Ann-Helen Moen, soprano, sounded the higher notes audibly. The Gulbenkian Choir (conductor Jorge Matta) was, as usual, in very good level, being the artistic element highlight of the concert. I think the audience applauded Beethoven’s music!


Now that Paul McCreesh debut season is ended, I regret making a negative balance: not seen any growth in this orchestra but an involution. We'll see what the next 2014/15 season is bringing...

quinta-feira, 29 de maio de 2014

IPHIGÉNIE EN TAURIDE, Theatro de São Pedro, São Paulo

NÃO É TODO DIA QUE SE COMEMORA 300 ANOS, GLUCK E SUA IPHIGÉNIE EM TAURIDE. CRÍTICA DE ALI HASSAN AYACHE NO BLOG DE ÓPERA EBALLET.   


 Cena de Iphigéne en Tauride, foto Internet
                                         
  A comemoração dos 300 anos do nascimento de Christoph Willibald Gluck pelo Theatro São Pedro se deu com um título menos conhecido do compositor. Um melômano mais atento esperava ver uma de suas óperas mais famosas: Orfeu e Euridice ou Ifigénie en Aulide. Corretamente o teatro da Barra Funda muda o foco e apresenta Iphigénie en Tauride, última ópera composta por Gluck e com certeza uma das mais completas musicalmente.

   Compositor revolucionário e com estilo próprio, Gluck consegue em Iphigénie em Tauride uma fusão de estilos: o dramático, o sensual e o lírico se juntam em árias de força extraordinária, com uma escrita orquestral de rara beleza onde a coesão das cenas se encontra com música de qualidade ímpar. Teatro e canto unidos em cenas na medida exata sem os exageros do passado barroco. A ópera é um resumo de todas as virtudes musicais do compositor. Esses motivos enaltecem a ideia da direção do teatro de dar vida a esse título, uma raridade nas terras brasilis.

A direção cênica de Gustavo Tambascio usa elementos modernos da dramaturgia atual, explora o palco em sua plenitude deixando quase sempre e ação com dois níveis. Transpõe o libreto para o século XX e ao fundo mantém elementos da Grécia clássica. Usa painéis para realçar o cenário e os figurinos estão a contento. Tudo sintonizado com o que há de mais moderno na ópera mundial do século XXI. O problema é o público entender o enredo, quando a cortina sobe muito da ação já ocorreu, a história de Iphigénie en Tauride é apenas um trecho de um longo ciclo mitológico. O espectador menos informado fica perdido e a direção não ajuda em nada na descrição dos fatos. A montagem consegue ser harmônica: visagismo, luz, figurinos e cenários estão em harmonia onde ninguém aparece mais que ninguém.


 Cena de Iphigéne en Tauride, foto Internet  
   
As vozes oscilaram, a protagonista Monica Ferracani mostrou desequilíbrio vocal, soprano com agudos sem brilho que pecou e muito no fraseado e sempre apresentou um timbre áspero. Sua Iphigénie consegue fazer uma interpretação cênica mediana, vocalmente se mostra menor que a personagem desfilando uma voz opaca que não empresta credibilidade e que vai cansando com o tempo.

O Orestes de Luciano Garay teve bons momentos vocais, manteve a postura do início ao fim com graves e médios satisfatórios. Uma voz limpa e estável nas passagens complexas. Pena não poder dizer o mesmo de Flávio Leite, o rapaz penou para fazer Pílades, conseguiu pouco em suas intervenções com técnica deficiente e agudos fracos. Até no pequeno Theatro São Pedro sua voz se mostrou pequena e com um timbre abafado que assusta pelas emissões irregulares.

O personagem Thoas para Lício Bruno foi uma barbada, o calejado barítono tirou de letra e mais uma vez mostrou enorme talento vocal e cênico. Outra que não teve a menor dificuldade foi Luciana Bueno, sua Diana é um arraso, ela encarna a deusa grega em todos os sentidos. Em sua curta apresentação desfilou graves portentosos em timbre que sempre encanta pelo brilho.
  
A Orquestra do Theatro São Pedro nas mãos de Alessandro Sangiorgi mostrou musicalidade volumosa chegando a encobrir os solistas, no geral esteve adequada ao estilo da ópera embora se mostrasse romântica demais em diversos momentos. Um ou outro desencontro entre solistas e orquestra é natural e eles ocorreram em quantidade razoável. Destaco a atuação do coro feminino, conseguiram excelente musicalidade com sopranos e mezzos cantando em grande estilo.

sábado, 24 de maio de 2014

WRITTEN ON SKIN de George Benjamin — FCG, 23.05.2014

(Review in English below)

(Fotos da internet)

A FCG apresentou a ópera Written on Skin de George Benjamin. O compositor britânico compô-la em 2012 para o Festival Aix-en-Provence e recebeu uma óptima recepção da crítica especializada. Saíram críticas com frases como «a melhor ópera dos últimos 20 anos» ou descrições como «apaixonada, sensualmente bela, terrivelmente dramática». O libreto ficou a cargo de Martin Crimp que se baseou num manuscrito anónimo do século XIII.

O texto é rico e interessante, tratando temáticas como o poder, o género, a mulher como objecto, a submissão ou a fuga para a libertação. Mas também trata do amor, da arte, da morte, da violência física e verbal, ou do suicídio. É uma obra que se divide em Primeira, Segunda e Terceira partes sem intervalo, podendo ler-se uma sinopse e um interessante texto introdutório de Susana Duarte nesta ligação.


A Orquestra Gulbenkian apresentou-se num nível muito elevado sob direcção do próprio compositor — George Benjamin. A música é, no meu entender, interessante, explorando várias tonalidades harmónicas e com um elevado sentido dramático. É música contemporânea de inegável qualidade e que merece uma audição atenta e despreconceituosa. Penso que o pouco público presente lhe soube dar valor.

Os cantores estiveram num plano muito elevado. O canto não era tecnicamente fácil e a expressividade e dramatismo constantes exigiam uma presença e entrega totais. Isto para não falar de que, apesar de em muitos momentos o volume sonoro da orquestra não ser fácil de combater, os cantores revelaram sempre facilidade em ouvir-se.


Christopher Purves, barítono inglês, esteve num nível elevadíssimo. Expressividade dramática vocal e corporal excelentes, voz de colocação e potência magníficas, além de um timbre muito agradável. O melhor do trio de personagens principais.


Elin Rombo, soprano sueca foi uma Agnès também excepcional. Voz com um timbre bonito, óptima amplitude vocal, projecção de nível (a soar sempre por cima da orquestra: destaque para o final da Segunda parte). Tem, também, uma excelente expressividade corporal e ofereceu uma interpretação dramática intensa.


Tim Mead, contratenor inglês, fez de Anjo 1 e de Rapaz. A voz surpreendeu-me pela qualidade e timbre de beleza muito invulgar. Teve uma interpretação de muito elevada qualidade. Aliás, este trio esteve brutal!


Depois, em papéis mais pequenos, tivemos o meio-soprano Victoria Simmonds como Anjo2/Marie e o tenor Rupert Charlesworth como Anjo3/John em bom plano.


Foi, pois, uma récita bem interessante com destaque para a qualidade da Orquestra FCG e para o trio Purves, Rombo e Mead, além, obviamente, do compositor Benjamin.

Fica uma pequena entrevista do compositor para a ROH.



-------------
(Review in English)

The FCG presented the opera Written on Skin by George Benjamin. The British composer presented it in 2012 for the Festival Aix-en-Provence and received a great reception from critic. There were critics saying "the best opera of the last 20 years” or descriptions as "passionate, sensuously beautiful, terribly dramatic". Martin Crimp that was based on an anonymous manuscript of the thirteenth century did the libretto.

The text is rich and interesting, dealing with themes such as power, gender, woman as object, submission or escape to freedom. But comes to love, art, death, physical and verbal violence, or suicide. It is a work that is divided into First, Second and Third parties without intermission, and you can read a synopsis and an interesting introductory text by Susana Duarte at this link.

The Gulbenkian Orchestra has performed at a very high under the direction of the composer himself — George Benjamin. The music is, in my view, interesting, exploring various harmonics and high dramatic sense tonalities. It is contemporary music of undeniable quality and deserves an attentive and unprejudiced hearing. I think the little audience in the hall knew to value it.

The singers were on a very high level. The singing was not technically easy and dramatic expressiveness required a constant presence and total giving. Not to mention that, although many times the loudness of the orchestra were not be easy to surpass, the singers always proved easier to hear.

Christopher Purves, English baritone, was on a very high level. Excellent dramatic vocal and corporal expressiveness, and voice placement and magnificent power, plus a very nice timbre. He was the best singer within the main characters’ trio.

Elin Rombo, Swedish soprano was an Agnès equally exceptional. Voice with a beautiful timbre, great vocal range, projection of high level quality (always soar above the orchestra: highlight to the end of the Second Part). She also has a great body expressiveness and offered an intense dramatic interpretation

Tim Mead, English countertenor, did Angel 1 and Boy. The voice surprised me by the quality and timbre. He had an interpretation of very high quality. Indeed, this trio was amazing!

Then, in smaller roles, had at good level the mezzo-soprano Victoria Simmonds as Angel 2/Marie and tenor Rupert Charlesworth as Angel3/John.

It was therefore a very interesting recitation highlighting the quality of FCG Orchestra and the trio Purves, Rombo and Mead, besides, obviously, the composer Benjamin.                                       

domingo, 18 de maio de 2014

LA GIOCONDA, Teatro de São Carlos, Maio de 2014

(review in english below)

La Gioconda, de A. Ponchielli com libreto de Arrigo Boito, esteve em cena, em versão concerto, no Teatro Nacional de São Carlos.


O Maestro Antonio Pirolli dirigiu superiormente a Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do Teatro Nacional de São Carlos. Ambos tiveram desempenhos de grande qualidade, contribuindo significativamente para a elevada qualidade do espectáculo.


 Elisabete Matos foi La Gioconda. Um luxo! Desempenho dramático sensacional associado a uma interpretação vocal fabulosa ao longo de toda a récita, mas com um último acto de referência. Sim, o Suicidio foi brilhante, mas tudo o resto também. Ponchielli, onde quer que esteja, sabe que, no início do Séc XXI, La Gioconda é La Matos!


 No final da récita a que assisti, Elisabete Matos emocionou-se com os aplausos calorosos (e justíssimos) do público. Os Grandes são assim!

O barítono espanhol Luis Cansino foi um Branaba excelente. Voz bonita, de grande potência e musicalidade, impressionou pela segurança e consistência ao longo de toda a récita.




 Maria Luísa de Freitas foi La Cieca, mãe de Gioconda. Também teve uma interpretação vocal muito agradável.


 Laura foi interpretada pelo mezzo búlgaro Mariana Pentcheva. Outra voz poderosa e escura, com boa projecção. Por duas vezes achei que faltou fôlego à cantora para terminar as notas.


 Alvise foi o baixo brasileiro Luiz-Ottavio Faria que se impôs vocalmente, oferecendo-nos uma voz segura, forte, bonita e afinada.


 O tenor italiano Mario Malagnini foi Enzo. Teve uma interpretação irregular, alternando períodos de bom nível vocal com outros em que a voz soava pequena e perdia qualidade no registo mais agudo.


 Deixaram boa impressão João Oliveira como Zuàne/piloto, Marco Alves dos Santos como Isépo e Manuel Rebelo como cantor.



 Lamento muito que a ópera não tenha sido encenada. Para mim, que tenho visto muitas encenações péssimas (algumas em São Carlos e muitas mais no estrangeiro), continuo a achar que uma ópera em versão concerto é uma ópera amputada. E hoje, mais uma vez, assim foi.
Houve uma tentativa de incluir algum movimento cénico. Mas faltaram muitos gestos e objectos essenciais e simples de usar, mesmo nesta abordagem (por exemplo o punhal). Maria Luísa de Freitas tentou comportar-se como mãe cega de Gioconda, mas esteve constantemente a olhar para a partitura. E que dizer da “Dança das Horas”? E poderia continuar, mas não acho necessário…
A terminar saliento que, apesar de em versão concerto, foi um dos melhores espectáculos a que assisti nos últimos anos no nosso único teatro nacional de ópera.






****


La Gioconda, Teatro de São Carlos, May 2014

La Gioconda by A. Ponchielli with libretto by Arrigo Boito was on stage, in concert version, at the Teatro Nacional de São Carlos, Lisbon.

Maestro Antonio Pirolli superiorly directed the Portuguese Symphony Orchestra and Chorus of the Teatro Nacional de São Carlos. Both performances were of great quality and contributed significantly to the high quality of the performance.

Elisabete Matos was La Gioconda. A luxury! Phenomenal dramatic performance associated with a fabulous vocal performance throughout the performance, but with a final act of reference. Yes, Suicidio was brilliant, but everything else too. Ponchielli, wherever he may be, knows that at the beginning of XXI century, La Gioconda is La Matos!
At the end of the performance I attended, Elisabete Matos was emotionally touched by the warm (and deserved!) applause from the audience.
The grand ones are like that!

Spanish baritone Luis Cansino was an excellent Branaba. Beautiful voice, with great power and musicality, he impressed by the security and consistency throughout the performance.

Maria Luisa de Freitas was La Cieca, Gioconda 's mother. She also had a very nice voice performance.

Laura was interpreted by the Bulgarian mezzo Mariana Pentcheva. Another powerful and dark voice, with good projection. Twice I thought she lacked breath to finish the notes.

Alvise was interpreted by the Brazilian bass Luiz-Ottavio Faria. Self-imposed vocally, offering us a secure, strong, beautiful and refined voice.

Italian tenor Mario Malagnini was Enzo. HehHad an irregular performance, alternating periods of good vocal level with others in that the voice sounded small and lost quality in the upper register.

João Oliveira was OK as Zuane, Marco Alves dos Santos and Manuel Rebelo as Isépo and as a singer.

I regret that the opera has not been staged. I have seen many bad stagings of operas (some in São Carlos Opera House and many more abroad), but I still think that an opera in concert version is an amputee opera. And this time, once again, it was so.
An attempt was made to include some scenic movement. But it lacked many essential gestures and objects simple to use, even in this approach (eg the dagger) . Maria Luisa de Freitas tried to behave like blind, but she was constantly looking at the score  And what about the "Danze delle Ore" ? And I could go on...
Finally I note that, although in concert version, this was one of the best performances I have seen in recent years in our single national opera house.


****