(Review in English below)
Assisti à última récita da ópera Ernani de Giuseppe Verdi no Teatro Nacional de São Carlos. Trata-se da primeira colaboração de Verdi com o libretista Francesco Maria Piave, tendo por base a obra homónima de Victor Hugo.
Devido às restrições da COVID-19, a ópera foi apresentada em versão de concerto e reuniu alguns cantores com projeção internacional nos principais papéis.
A Orquestra Sinfónica Portuguesa sob direção de Antonio Pirolli apresentou-se muito coesa, regular no tempo e com uma interpretação de qualidade ao longo de todos os atos, exibindo uma excelente expressividade e dando realce ao carácter belcantista desta obra. Foi, no meu entender, o ponto forte da tarde.
O Coro do Teatro Nacional de São Carlos foi colocado no fundo do palco dividido por uma estrutura metálica de quatro andares. Todos os seus elementos estavam muito afastados uns dos outros e com uma película plástica por diante, o que em muito diminuiu o seu volume, tornando-se frequentemente muito difícil de ouvir, embora, globalmente, tenham tido, dentro das dificuldades que tinham de ultrapassar, uma performance agradável.
Na minha apreciação, esta ópera tem uma beleza invulgar e já nos mostrava todas as qualidades que o jovem Verdi ia exibir ao longo da sua exitosa carreira. Contudo, em particular o primeiro ato, é muito exigente para os cantores, o que ficou patente na récita de hoje.
Antes de a récita começar, informaram os espectadores de que o tenor americano Gregory Kunde tinha uma lombalgia. Kunde apresentou-se hoje visivelmente diminuído do ponto de vista físico, mas denotou, igualmente, muitas dificuldades vocais. Conhecido pelas suas interpretações de tenor heróico, nomeadamente no papel de Otello, o timbre do já vetrano tenor ainda é muito bonito e ficou bem patente a sua muita experiência na forma como abordou a personagem Ernani. Contudo, no capítulo da afinação esteve claramente deficiente, tendo-lhe sido muito difícil atingir as notas agudas com facilidade, exibindo um vibrato exagerado e uma aspereza na voz que não favoreceu a qualidade vocal. O público não deixou de o acarinhar no final, tendo-se mostrado muito humilde, fazendo um gesto de como quem diz «obrigado, mas a minha performance de hoje não merece tanto».
A soprano chinesa Hui He foi Elvira. Não seria sincero se não dissesse que fiquei muito dececionado com a sua prestação. A potência vocal é inquestionável, mas apresentou muitas dificuldades na afinação, recorrendo frequentemente ao grito, tendo um legatto deficiente, assim como o fraseggio a denotar um italiano pouco seguro. Sobretudo no primeiro ato teve momentos em que chegou a ser desagradável de ouvir, o mesmo sucedendo no último e derradeiro ato.
O barítono italiano Simone Piazzola foi um Don Carlo vocalmente com uma performance de boa qualidade. Tem um timbre bonito, agudos fáceis e com uma coluna de som geralmente bem sustentada que se perdeu pontualmente nalguns agudos, sobretudo no segundo ato. Na sua ária Gran Dio! Costor sui sepolcrali marmi no 3.º ato esteve particularmente bem, mostrando um conhecimento profundo da personagem, emprestando-lhe uma emotividade vocal que denota a sua experiência no papel.
O baixo italiano Fabrizio Beggi foi um Don Ruy Silva muito seguro e aquele que apresentou uma performance mais consistente. Tem uma belíssima voz de baixo, uma boa emissão em qualquer registo da tessitura e uma expressividade muito eloquente, pelo que foi muito agradável de ouvir e, de todo o elenco, aquele que esteve em maior destaque.
Os restantes elementos do elenco, nos seus pequenos papéis, cumpriram bem (Rita Marques foi Giovanna; Sérgio Martins foi Don Riccardo; e João Oliveira foi Jago).
Deve dizer-se que estar na sala do TNSC e poder desfrutar da sua acústica soberba é um privilégio e os fãs estão ávidos por ver se, passada a COVID e com a nova direção de Elisabete Matos, se poderá finalmente assistir ao aumento de qualidade que é urgente e que se exige que se verifique num teatro que, infelizmente, ao longo das últimas temporadas, tem tido um registo próximo do comatoso.
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Review in English
I attended the last performance of Giuseppe Verdi's opera Ernani at the Teatro Nacional de São Carlos. This was Verdi's first collaboration with the librettist Francesco Maria Piave, based on the homonymous work by Victor Hugo.
Due to COVID-19 restrictions, the opera was presented in a concert version and brought together some singers with international projection in the main roles.
The Orquestra Sinfónica Portuguesa under the direction of Antonio Pirolli presented itself very cohesive, regular in tempo and with an interpretation of high quality throughout all the acts, displaying excellent expressiveness and emphasising the belcantist character of this work. It was, in my opinion, the highlight of the evening.
The Choir of the Teatro Nacional de São Carlos was placed at the back of the stage divided by a four-storey metallic structure. All its elements were very far apart from each other and with a plastic film in front of them, which greatly reduced their sound volume, making it often very difficult to hear, although, overall, they had, within the difficulties they had to overcome, a pleasant performance.
In my appreciation, this opera has an unusual beauty and already showed us all the qualities that the young Verdi was to display throughout his successful career. However, the first act in particular is very demanding for the singers, and this was evident in today's performance.
Before the recital began, spectators were informed that the American tenor Gregory Kunde had a backache. Kunde was physically visibly diminished today, but also had many vocal difficulties. Known for his heroic tenor performances, particularly in Otello, the already elderly tenor's timbre is still very beautiful and his great experience was evident in the way he approached the character of Ernani. However, in terms of pitch he was clearly deficient, and it was very difficult for him to reach the high notes with ease, exhibiting an exaggerated vibrato and a roughness in his voice that did not favour the vocal quality. The audience did not fail to appreciate him at the end and he was very humble, gesturing as if to say "thank you, but my performance today doesn't deserve that much".
Chinese soprano Hui He was Elvira. I wouldn't be honest if I didn't say I was very disappointed with her performance. The vocal power is unquestionable, but she presented many difficulties in tuning, often resorting to shouting, having a poor legato, as well as the fraseggio denoting an unsafe Italian. Especially in the first act she had moments when she was unpleasant to listen to, the same happening in the last and final act.
The Italian baritone Simone Piazzola was a Don Carlo vocally with a good quality performance. He has a beautiful timbre, easy treble and with a generally well-sustained sound column which was occasionally lost in some of the treble, especially in the second act. In his aria Gran Dio! Costor sui sepolcrali marmi in the 3rd act he was particularly well, showing a deep knowledge of the character, lending him a vocal emotiveness that denotes his experience in the role.
Italian bass Fabrizio Beggi was a very assured Don Ruy Silva and the one who gave the most consistent performance. He has a beautiful bass voice, a good delivery in any register of tessitura and a very eloquent expressiveness, so he was very pleasant to listen to and, of all the cast, the one who excelled the most.
The remaining members of the cast, in their small roles, performed well (Rita Marques was Giovanna; Sérgio Martins was Don Riccardo; and João Oliveira was Jago).
It must be said that being in the TNSC hall and being able to enjoy its superb acoustics is a privilege and the fans are eager to see if, after COVID and with Elisabete Matos' new direction, we will finally see the urgently needed increase in quality in a theatre that, unfortunately, over the last few seasons, has had a record close to comatose.