(review in English below)
O Crepúsculo dos Deuses (Götterdämmerung) é a quarta e derradeira ópera do ciclo do Anel do Nibelundo de Richard Wagner. A encenação foi de Andreas Kriegenburg.
Reparem no pormenor da capa do programa de sala, parcialmente queimada!
Kriegenburg opta por uma abordagem cénica radicalmente diferente da que usou nas três óperas anteriores, retratando o comportamento humano nas sociedades capitalistas actuais.
No Prólogo, as três Nornas tecem os fios de ouro do destino, recordam os acontecimentos passados mais relevantes e prevêem o crepúsculo dos deuses. Em palco estão várias pessoas sós, perdidas, apáticas e desesperadas, cada uma sentada sobre uma mala de viagem. São os sobreviventes de um ataque nuclear. Observam fotografias dos seus entes queridos. Surgem funcionários totalmente protegidos por fatos isolantes, uns pedem a identificação a cada uma das pessoas (algumas não a têm) e outros, com contadores Geiger, verificam que as fotografias estão contaminadas e, por isso, têm que ser lançadas num recipiente de lixo radioactivo. Assim, as mulheres e homens sobreviventes perdem a única ligação que lhes restava ao seu passado e aos familiares e amigos que morreram no ataque. A cena é magnífica, de uma intensidade dramática brutal, quase sufocante.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
Siegfried dá o Anel a Brünhilde, como prova do seu amor, no momento em que abandona o rochedo. Brünhilde retribui, dando-lhe o seu cavalo Grane.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
Noutro efeito cénico espectacular, Siegfried atravessa o Reno num barco a remos, onde a água agitada é reproduzida pelos figurantes, vestidos de azul e encurvados.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
No 1º Acto o palácio dos Gibichungs (o rei Gunther, meio irmão de Hagen, e a irmã Gutrune) é um imponente e moderníssimo edifício de escritórios dos nossos dias (um banco?) que ocupa todo o palco. Tem 4 andares, paredes de vidro e pontes horizontais que se movem na vertical e, suspensas a várias alturas, atravessam o palco de lado a lado. Há muitos funcionários impecavelmente vestidos de escuro, ora circulando com pastas, ora trabalhando em laptops. No piso térreo estão uns sofás e um bar modernos. Nas paredes envidraçadas aparece projectada em vários locais a palavra lucro (Gewinn) e Gutrune escreve a palavra luxúria (lust).
Siegfried chega vestido de forma muito rústica e desconhece totalmente este mundo. Choca com os vidros das portas, não sabe apertar a mão, estranha um cocktail sofisticado que lhe é oferecido para beber. Mais uma cena de belo efeito que consegue evitar o ridículo ou a graçola fácil. Depois de beber a poção, apaixona-se por Gutrune, uma mulher sofisticada que surge montada no símbolo do Euro.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
Siegfried faz um pacto de sangue com Gunther. Hagen planeia que Siegfried case com Gutrune e Gunther com Brünhilde.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
No rochedo, a valquíria Waltraute visita a irmã Brünhilde e avisa-a que o desastre está próximo e só pode ser evitado se devolver o anel às Filhas do Reno. Brünhilde recusa-se a fazê-lo porque o anel é o símbolo do seu amor por Siegfried, que é mais importante que o bem-estar dos deuses.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
Aproxima-se um estranho do rochedo (é Siegfried transformado em Gunther por efeito do elmo mágico), arranca o anel a Brünhilde e dorme com ela, embora separado pela espada, por respeito ao pacto de sangue que fez com Gunther.
No 2º acto, Hagen ouve o pai Alberich pedir-lhe que reconquiste o anel. Gunther chega com Brünhilde ao palácio e Siegfried não a reconhece. Quando vê o anel no dedo de Siegfried, Brünhilde acusa-o de traição. Os figurantes e os elementos do coro aparecem espalhados por todo o palco, vestidos de escuro e a falar ou mandar mensagens nos telemóveis, sem nunca olharem ou falarem entre si.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
Hagen convence Brünhilde e Gunther que Siegfried tem que morrer.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
Preparam-se os casamentos de Gunter com Brünhilde e de Gutrune com Siegfried. Os figurantes são os convidados que ficam espalhados pelo chão, adormecidos, com os fatos parcialmente desapertados e entre numerosas garrafas de champanhe vazias.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
No 3º acto Siegfried vai caçar. As Filhas do Reno avisam-no da sua morte próxima.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
Siegfried conta a Gunther e a Hagen a sua história, depois de beber nova poção com que recupera a memória e recorda o seu amor por Brünhilde. Gunther sente-se traído e Hagen mata Siegfried. Levam o corpo para o palácio.
Ao constatarem a morte de Siegfried, todos os funcionários rasgam e desfazem-se de centenas de documentos, falam apressadamente aos telemóveis ou enviam mensagens. Hagen quer tirar o anel do dedo de Siegfried e mata Gunther.
Brünhilde recupera o anel e, para acabar com a maldição, sacrifica-se na pira funerária de Siegfried que arde por detrás da grande estrutura de vidro, agora vazia.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
As Filhas do Reno recuperam o anel e afogam Hagen. A ópera termina com tudo destruído.
(fotografia / photo Wilfried Höse, Bayerische Staatsoper)
Apenas Gutrune sobrevive e aparecem os figurantes, novamente vestidos de branco, como no início do Ouro do Reno, agrupando-se compactamente em seu redor.
Terminou a música, caiu o pano e Kent Nagano manteve os braços no ar durante cerca de um minuto – uma eternidade numa ocasião como esta. O silêncio foi absoluto. Só quando os baixou explodiram os aplausos. Sim… estávamos na Alemanha!
Nina Stemme, soprano sueco, foi a Brünhilde nesta noite. Faltam-me palavras para a qualificar, no seio de tantos cantores de excepção. Mas ela é, sem qualquer dúvida, o melhor soprano dramático da actualidade e, como tal, a melhor Brünhilde. Tem uma voz gigante, uma extensão vocal enorme e um timbre de grande beleza. É também uma excelente actriz. Foi alegre no início, firme no diálogo com a irmã e desesperada no final. Só ouvindo e vendo se acredita que há uma cantora assim. Assombrosa!
Siegfried foi interpretado pelo tenor norte-americano Stephen Gould. Ofereceu-nos uma interpretação que não destoou ao lado da Stemme. Tem um poderio vocal assinalável e cantou sempre afinado e bem audível, sem quebrar até ao fim. A figura do cantor não é favorável à personagem (em contraste total com Lance Ryan) e a agilidade em palco também foi menor.
O barítono escocês Iain Paterson foi um Gunther muito perspicaz e com óptima presença em palco. A voz é notável, bem projectada, mas não tem o poderio dos cantores com quem contracenou.
Gutrune foi interpretada pelo soprano alemão Anna Gabler. Tem também uma voz de assinalável beleza e frescura. A cantora é jovem e tem uma excelente figura, o que ajudou muito a toda a acção em palco.
Hans-Peter König, baixo alemão, foi um Hagen fabuloso. A voz é poderosíssima, escura, bonita. O cantor ofereceu-nos uma interpretação cínica e malévola, bem apropriada à personagem.
A Waltraute do mezzo alemão Michaela Schuster foi excepcional. A cantora tem uma voz de grande beleza e expressividade, a par de uma potência invulgar. O diálogo com Stemme foi um dos grandes momentos da noite.
O excelente baixo-baritono polaco Tomasz Konieczny foi novamente Alberich, embora o papel e a interpretação tenham sido mais discretos aqui que na ópera Siegfried.
As 3 Nornas Okka von der Damerau, Jennifer Johnston e Anna Gabler foram intérpretes à altura da exigência da récita, tal como também o foram as 3 Filhas do Reno Hanna-Elisabeth Müller, Angela Brower e, novamente, Okka von der Damerau.
Uma palavra final para o Coro da Opera Estatal da Baviera que só intervém nesta derradeira ópera do Anel, mas que teve uma interpretação superlativa.
E assim terminou um Anel inesquecível em Munique.
Bravo Bayerische Staatsoper!!
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Götterdämmerung, Bayerische Staatsoper, Munich, January 2013
Götterdämmerung is the fourth and final opera of the Nibelung’s Ring cycle of Richard Wagner. The staging was of Andreas Kriegenburg. Notice the detail of the cover of the program, partially burned!
Kriegenburg takes a radically different scenic approach from that used in the three previous operas, now portraying human behavior in capitalist societies today.
In Prologue the three Norns weave the golden string of fate, recall more relevant past events and predict the twilight of the gods. On stage are there are several lonely persons, looking lost, desperate and apathetic, each sitting on a suitcase. They are the survivors of a nuclear attack. They look at photographs of their loved ones. Officials appear fully protected by uniforms, ask identification documents to each person (some have none) and others, with Geiger counters, note that the photographs are contaminated and therefore must be discharged into a container of radioactive waste . Thus, these survivors loose the only connection they have left to their past and relatives and friends who died in the attack. The scene is magnificent, of a brutal, almost suffocating, dramatic intensity.
Siegfried gives Brünhilde the ring as proof of his love when he leaves the mountain. Brünhilde gives Siegfried her horse Grane. In another spectacular scenic effect, Siegfried crosses the Rhine in a rowboat, where the stirred water is played by curved supernumeraries dressed in blue.
In 1st Act the palace of Gibichungs (king Gunther, Hagen's half-brother, and his sister Gutrune) is an impressive and very modern office building of our days (a bank?) which occupies the entire stage. It has 4 floors, glass walls and mobile suspended corridors at various heights, crossing the stage from side to side. There are many employees impeccably dressed in dark, sometimes carrying folders, or working on laptops. On the ground floor there are a few sofas and a modern bar. In the glass walls appears projected in several places the word profit (Gewinn) and Gutrune writes the word lust.
Siegfried arrives dressed in a very rustic way and totally unaware of this world. He
collides with the door transparent windows, does not know how to shake hands, stranges a sophisticated cocktail that he is offered to drink. This is another nice scene that, however, avoids a ridiculous behaviour. After drinking the potion, Siegfried falls in love with Gutrune, a sophisticated modern woman who is mounted on an Euro symbol. Siegfried makes a blood pact with Gunther. Hagen plans that Siegfried marries Gutrune and Brünhilde marries Gunther.
In the mountain, the Valkyrie Waltraute visits her sister Brünhilde and warns her that the disaster is near and can only be avoided by returning the ring to the Daughters of the Rhine. Brunhilde refuses to do it because the ring is the symbol of her love for Siegfried, which is more important than the welfare of the gods.
A stranger approaches (Siegfried transformed in Gunther by the magical effect of the helmet), takes the ring from Brünhilde and sleeps with her, though separated by the sword, in respect to the blood pact he made with Gunther.
In 2nd act, Hagen hears his father Alberich asking him to regain the ring. Gunther arrives with Brünhilde and Siegfried does not recognize her. When she sees the ring on the Siegfried’s finger, Brünhilde accuses him of treason. The supernumeraries and the chorus elements appear throughout the stage, dressed in dark and talking or sending messages on mobile phones, without ever look or talk to each other. Hagen convinces Brunhilde and Gunther that Siegfried has to die. The marriages of Gunter to Brünhilde and of Siegfried with Gutrune are prepared. The supernumeraries are guests that are scattered on the floor, asleep, with the clothes partially loose and with numerous empty bottles of champagne among them.
In 3rd act Siegfried goes hunting. The Daughters of the Rhine warn him of his approaching death. He tells His story to Gunther and Hagen. After drinking a new potion he recovers his memory and recalls his love for Brünhilde. Gunther feels betrayed and Hagen kills Siegfried. They take his body to the palace.
When they find out that Siegfried is dead, all employees discard hundreds of documents, speak hastily or send messages with mobile phones. Hagen wants to take the ring from the finger of Siegfried and kills Gunther.
Brunhilde retrieves the ring and, to end the curse, sacrifices herself on the funeral pyre of Siegfried that burns behind the large glass structure, now empty. The Daughters of the Rhine recover the ring and drown Hagen. The opera ends with everything destroyed. Only Gutrune survives and the supernumeraries appear, dressed in white again as in the beginning of Das Rheingold, grouping tightly around her.
The music ended, the curtain fell, and Kent Nagano kept his arms in the air for about a minute - an eternity on an occasion like this. The silence was absolute. Only later the applause exploded. Yes ... we were in Germany!
Nina Stemme, Swedish soprano, was tonight´s Brünhilde. Words fail me to describe her performance, in the midst of so many exceptional singers. But she is, without any doubt, the best dramatic soprano of our time, and as such, the best Brünhilde. She has a giant voice, a huge vocal range and a timbre of great beauty. She is also an excellent actress. She was joyful at the beginning, she had a firm dialogue with her sister, and she was desperate at the end. Just hearing and seeing her we believe that there is such a singer. Awesome!
Siegfried was interpreted by North-American tenor Stephen Gould. He offered us a performance well alongside Stemme. He has a remarkable vocal power and always sang in tune and very audible, without breaking through. His figure is not favorable to the character (in stark contrast to Lance Ryan) and his agility on stage was also inferior.
Scottish baritone Iain Paterson was a very insightful Gunther, with great stage presence. The voice is remarkable, well projected, but does not have the power of the singers with whom he sang.
Gutrune was interpreted by German soprano Anna Gabler. She also has a voice of remarkable beauty and freshness. The singer is young and has a great figure, which helped a lot on stage.
Hans Peter König, German bass, was a fabulous Hagen. The voice is powerful, dark and beautiful. The singer offered a cynical and malevolent interpretation, well suited to the character.
German mezzo Michaela Schuster’s Waltraute was exceptional. The singer has a voice of great beauty and expressiveness, along with an unusual power. The dialogue with Stemme was one of the top moments of the night.
The excellent Polish bass-baritone Tomasz Konieczny was again Alberich, though his performance has been more discrete here than in the opera Siegfried.
The three Norns Okka von der Damerau, Jennifer Johnston and Anna Gabler were singers of top level like the three daughters of the Rhine Hanna-Elisabeth Müller, Angela Brower and again Okka von der Damerau.
A final word of praise to the fabulous Choir of the Bavarian State Opera that only participates in this final opera.
And thus ended a memorable Ring in Munich.
Bravo Bayerische Staatsoper!!
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