Il Trovatore (o trovador), de G. Verdi, passa-se em Espanha no Séc. XV. Com um enredo pouco plausível, a ópera é das mais famosas de Verdi e inclui numerosos trechos musicais de grande beleza e elevada exigência para os cantores. Manrico (tenor), um cigano do grupo dos Urgel e o Conde de Luna (barítono), do grupo rival, disputam o amor da mesma mulher, Leonora (soprano), uma dama da corte amante de Manrico. Este foi criado por uma cigana, Azucena (mezzo-soprano) que diz ser sua mãe. A mãe de Azucena fora mandada queimar viva pelo velho conde, por bruxaria e, por vingança, Azucena raptara o filho deste e lançara-o para a fogueira. Só depois reparou que matara o seu próprio filho. O Conde de Luna prende Azucena (que é entretanto reconhecida) e o filho Manrico. Leonora, depois de tentar ir para um convento, para evitar que Manrico seja morto, promete entregar-se ao Conde, envenenando-se previamente. O Conde, quando percebe que foi enganado, manda matar Manrico. Azucena, proclamando que a morte da mãe está vingada, diz-lhe que matou o próprio irmão.
O Liceu é um teatro a que vou sempre com grande entusiasmo porque junta uma sala deslumbrante e das mais modernas da Europa a um público conhecedor, exigente e disciplinado. Apresentou três elencos distintos (!) dos quais tive oportunidade de ver dois.
A encenação, de Gilbert Delfo, é minimalista, pindérica e de gosto discutível. Para além de uns panos que vão mudando ao longo do desenrolar da ópera, quase não há mais nada. Os dois grupos rivais aparecem assinalados com o azul ou o encarnado na roupa ou na cabeça, tal como os panos do palco. Nada disto é, sequer, original, pois há menos de um ano vi a mesma abordagem em I Capuleti e i Montecchi na Royal Opera House, mas de forma muito mais conseguida e numa ópera realmente encenada. Enfim, foi quase uma ópera em versão de concerto. Ainda mais uma nota negativa sobre o início do 3º acto em que ao coro dos guerreiros foi adicionada uma parte coreografada. Com as suas espadas empunhadas, a dançar aquela coreografia de gosto duvidoso, o efeito foi bizarro e pareceu um espectáculo gay.
Como cenicamente não havia nada para ver, toda a atenção recaiu nos cantores.
Sob a direcção de Marco Armiliato, a orquestra e o coro estiveram excelentes, o que muito contribuiu para o sucesso alcançado. O coro tem várias intervenções e esteve sempre ao mais alto nível.
Ferrando, um capitão da guarda do Conde de Luna, foi Paata Burchuladze nas duas récitas. Um baixo georgiano que me habituei a respeitar mas que, nesta ópera, não esteve bem. Emissão irregular, ora muito forte, ora quase inaudível, cenicamente, desinteressante e com vibrato excessivo. Contudo, o registo mais grave continua a manter momentos de elevada qualidade.
O Conde de Luna foi, na primeira récita, Anthony Michaels-Moore. Barítono britânico de excelentes qualidades, timbre belíssimo, voz potente e harmoniosa ao longo de toda a actuação. Cenicamente foi o melhor da noite. Na segunda récita o papel foi interpretado por Vittorio Vitelli (em substituição de Roberto Frontali) que teve uma prestação bem mais fraca. Emissão irregular, com desafinações regulares, potência fraca para a dimensão da sala e cenicamente mau. Teve a ousadia de se fazer aos aplausos (imerecidos) depois da aria do 2º acto, mas em vez destes ouviu umas vaias.
Leonora, na primeira récita, foi Krassimira Stoyanova. Teve dificuldades em acertar-se com a orquestra no início, mas recuperou e revelou uma boa voz, bem projectada, atingindo os agudos aparentemente sem esforço mas nem sempre mantidos com suavidade. Apesar do poderio da voz, faltou a emoção e suavidade requeridas. No final esteve no seu melhor e foi muito aplaudida pelo público. Fiorenza Cedolins foi a protagonista na 2ª récita e impôs-se. Voz mais pequena mas bem projectada, quente e suave, transbordando de emoção e transformando-se ao longo da récita, como o papel exige. Agudos excelentes, sem desafinar nem gritar, tem uma boa figura e teve uma notável presença em palco.
Manrico foi interpretado por Alfred Kim na 1ª récita. Tenor coreano sem grandes capacidades cénicas, cumpriu vocalmente sem brilhar. Agudos um pouco baços e, quando a orquestra soava mais forte, deixava de ouvir-se com clareza. Mas, ainda assim, uma presença agradável. Na 2ª récita tivemos Marco Berti, que tem uma voz muito potente e bem timbrada, mas com irregularidades. Os agudos são mantidos com pujança mas, por vezes, tornam-se estridentes. Pouca emoção, cenicamente um desastre, apenas esteve bem nos diálogos com Azucena. A figura não ajuda e na caballeta “Di quella pira”esteve muito aquém do que se esperaria. O público, não deixou de o demonstrar, com algumas vaias entre os sempre presentes aplausos.
Azucena, um dos grandes papeis de mezzo de Verdi e o meu favorito nesta ópera, foi interpretado por Irina Mishura na 1ª récita. Teve uma presença aceitável em palco (apesar de a encenação não ajudar nada) mas a voz esteve aquém do desejável. Emissão irregular, com momentos muito fortes mas outros, inexplicavelmente, quase inaudíveis, timbre feio, vibrato excessivo, mais evidente no registo mais grave. Nunca conseguiu transmitir a emotividade inerente à personagem. Na 2ª récita Luciana D’Intino foi a melhor em palco tanto cénica como vocalmente. O contraste com a anterior foi marcante! Possuidora de uma excelente técnica, a afinação foi perfeita, a voz potente, o registo grave fez tremer o palco, sem vibrato e com um belo timbre. O diálogo com Manrico no 2º acto valeu a récita. A minha referência para a Azucena é Fiorenza Cossotto, a primeira que vi e ouvi em São Carlos e, até àdata, sem rival. Contudo, Luciana D’Intino esteve perto e, se a encenação o permitisse, talvez o espectáculo oferecido fosse mais rico.
Uma última palavra sobre o público de Barcelona. Apesar de estarmos num país latino, é um prazer acrescido assistir à ópera no Liceu. As tosses são escassas mas se mais numerosas há sempre quem o reprima vocalmente. Ouve-se a música até ao fim e quando os cantores ficam aquém do esperado, as reacções negativas não se fazem esperar nem são parcas, como também são exuberantes quando, pelo contrário, se assistem aqueles momentos mágicos que sempre se esperam.
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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
domingo, 13 de dezembro de 2009
Novembro em Berlim
De volta a Berlim desde Março, altura em que pude assistir ao magnífico e tristemente o último Parsifal de Placido Domingo, Novembro foi rico em experiências operáticas.
Começemos pelo fim-de-semana qe marcava 20 anos da queda do Muro...
...6 - 9 Novembro 2009
O "povo" alemão pareceu-me menos austero do que em Março. As pessoas estavam mais descontraídas e com um aspecto menos snob.
Os nossos lugares, situados na 3ª fila do 1º anel à direita do palco, revelaram-se até muito bons - só não se conseguia ver 1/4 do palco na da parte inferior. Em vez dos 220 Euros que teria que ter dado para ver na plateia ou no primeiro anel central ficaram cada por 80 euros o que até foi acessível.
Mas passemos ao que interessa realmente.
A récita foi, para mim, espectacular!
Um elenco extremamente equilibrado suportado por uma orquestra em excelente forma sob a batuta de Barenboim. Placido Domingo esteve magnífico (ou não seja eu a referi-lo...)!!! Quem está habituado a ver esta Ópera com um barítono talvez se incomode um pouco com Domingo mas há uma magia quando este homem canta que tudo fica bem. Notou-se alguma diferença de sonoridade, de timbre: no prólogo e na primeira parte do 1º acto um timbre claramene baritonal em contraste com a restante ópera onde se notou claramente a sua envergadura de tenor. Talvez este balanço se esbata mais com as inúmeras récitas que ainda irá dar ao longo da temporada. Foi visível a evolução como personagem do prólogo para o 1º acto que se passa 25 anos depois. Diferenças não só de aspecto físico (as mais fáceis) mas também de carácter da personagem que tão bem conseguiu fruto da sua excelente capacidade enquanto actor. A cena em que descobre que Amelia é sua filha, a cena do famoso "Plebe, Patrizi, Popolo" e o final da Ópera foram absolutamente ricos em parestesias faciais... Já para não falar no semicantado-semifalado "repete a jura" aquando da maldição para quem raptou ou tentou raptar Amélia. O que mais posso dizer? Para mim não há melhor e quando se reformar de vez vou sentir um grande vazio cultural... Os aplausos e os bravos no final são pelo que continua a ser e não pelo que já foi e, aos 68 anos, isso é magnífico.
Mas se Domingo esteve muito bem o mesmo se pode dizer dos restantes: o baixo Kwangchul Youn, que vi como Rei Henrique em Londres em Maio (Lohengrin) é um baixo à baixo. Contrariou um pouco a ideia com que tinha ficado mas aquele Lohengrin de Londres também não foi grande coisa (cantar com um "mosquiteiro" à frente durante toda a Ópera...). Voz forte e potente, com graves ressonantes e afinação irrepreensível, conseguem fazer esquecer alguma falta de expressão facial. Contudo o sentimento sente-se na voz. Fabio Sartori fez de Adorno e tem uma voz brilhante! Afinadíssimo, timbre claro e bonito, potência e sentimento. Apesar de com uns quilitos a mais, consegue mexer-se bem e representar. A Anja Harteros têm um autêntico vozeirão! Também com timbre claro e bonito, canta com sentimento e é uma excelente actriz. Fará por certo bons papéis wagnerianos... Hanno Muller-Brachmann, que tinha feito de Amfortas no Parsifal em Março e o qual achei pouco convincente no papel (embora muito aplaudido), esteve bem no papel de Paolo. O que achei foi que tem um ar tão jovial e tão boa aparência que dificilmente se consegue ver ali um vilão. A encenação foi traicional e não achei má, embora fosse criticada. Barenboim têm a orquestra bem oleada e com um sentido musico-dramático excelente. Encheu a casa, transbordando boa música.
Começo a arrepender-me de não ter apostado nos bilhetes para o Festival de Berlim em Março 2010... a ser igual a isto, perco um pedaço da História da Música.
O Lohengrin do dia seguinte, no 1º anel mas na 1ª fila, foi um pouco melhor em termos visuais mas mesmo assim a 72 Euros e não nos atronómicos 220... O Prólogo iniciou-se e deparamo-nos com um homem vestido de Wagner, com máscara e tudo, funcionando como marionete, com pena e gesticulando como maestro... as marionetas vivem nesta encenação o que ficou engraçado mas com alguns pormenores que não percebi muito bem. O cisne era uma pena gigante, Lohengrin estava vestido com uma armadura um pouco gay, apareciam vários pequenos wagner e marionetes na mão de membros do coro vestidos à civil, o arauto era um Urso com uma faixa a dizer Berlim (grande mascote), no final o Lohengrin ascende ao céu para depois cair um boneco no meio do palco (Lohengrin morto) e do irmão de Elsa nem vê-lo.
Os cantores muito bem.
Kwangchul Youn, que havia sido Fiesco na véspera, volta para cantar o Rei, em muito melhor prestação que em Londres - de se tirar o chapéu (se bem que eu não tenha levado nenhum chapéu...). Burkhard Fritz (Lohengrin) defendeu-se no 1º acto mas progressivamente foi apostando mais e, contra a minha expectativa que seria a quebra no monólogo fnal "Im Fernem Land" tal como Ben Heppner no seu melhor (...), cantou espectacularmente bem, afinadíssimo, sobre a orquestra e deixando-me rendido à sua prestação. A Elsa foi normal, sem surpreender muito. O Telramund de Gerd Grochowski foi muito bom, aliás como em Londres havia sido. Deborah Polanski foi uma Ortrud também impecável - maléfica na voz e na postura, excelente! A orquestra mais uma vez brutalmente espectacular. Contudo houve uma pequena descoordenação no coro de entrada nupcial de Elsa e algumas opções de pace que o Barenboim faz (e já havia feito no Parsifal) que não gosto particularmente - fá-las depressa demais e quebra a beleza da música.
De volta a Berlim (26 Novembro a 3 de Dezembro) tive então a oportunidade de ver na Deutsche Oper um Tristão e Isolda. Já tinha bilhetes desde Abril deste ano (3ª fila da plateia) e o elenco era bom. Contudo, para minha surpresa, ficou ainda muito melhor. Subtituiram Robert Gambill como Tristão (aceitável tenor, vi o seu Tristão numa edição em concerto na Culturgest há uns anos e um primeiro acto da Valquíria no CCB com a Elisabete Matos e não foi mau) por Ian Storey, um tenor acho que novo mas grisalho, que fez a sua ascenção no papel em 2007 quando cantou na estreia da Temporada do Scala, ao lado de Waltraud Meier, Matti Salminen e sob a batuta de Barenboim. Confesso que tenho o DVD desta produção ainda lacrado, comprado em promoção na FNAC dos Campos Elíseos há cerca de 1 ano e ainda desconhecia as suas capacidades. O papel de Brangane era por um nome qualquer desconhecido e passou a ser cantado por Petra Lang, uma das boas de leste, na minha opinião, e que já a havia escutado como Ortrud este ano em Londres. E como Kurwenal, também substituindo alguém que não conhecia, Alexandre Marco-Buhrmester, um Kurwenal que já havia escutado no mesmo papel no Tristão de Paris do ano passado, e antes como Amfortas, também em Paris. A completar o elenco, um Robert Holl já velho mas ainda a dar os seus graves de forma coesa, e finalmente, à 5ª representação do Tristão da minha curta carreira "Opera Live" a dar uma representação a meu total gosto como Rei Marke, com particular enfase para a prestação no final da Ópera. A Isolda foi Evelyn Herlitzius (Brunhilde na Valquíria em Concerto com Domingo em Barcelona 2008 e Isolda em Sevilha em Maio 2009).
Vamos então aos meus comentários resumidos:
A encenação tem a minha idade - estreada 1980 e imortalizada já em DVD pela dupla Gwyneth Jones e Rene Kollo. Simples, clássica e eficaz - aliás como toda a produção. Senti que assisti a uma récita "de livro" - directa em tudo o que queira transmitir, sem ideias trocadas, sem mesas atrás do palco, cadeiras isoladas, etc. Era um barco no 1º acto, uma zona da muralha do castelo no 2º e um rochedo junto ao mar no 3º acto. Perfeito na sua simplicidade. A orquestra foi dirigida por um velhote dos seus oitenta anos que sinceramente nem sei o nome mas náo é dos conhecidos. Esteve muito bem, falhando por 3 vezes (que eu desse conta) no ponto que habitualmente me queixo... Para mim, quando no prelúdio, o primeiro acorde a orquestra cheia (não é o acorde tristão) se ouve e a orquestra entra em uníssono, a récita vai ser muito boa... e isto manteve-se.
Em relação aos cantores:
Ian Storey foi uma pseudoagradável surpresa. Explico: conteve-se muito o 1º e 2º actos mas notava-se potencial escondido e que transbordou no 3º acto, sem dúvida o mais difícil. Não faz este papel há muito tempo e acho que precisa de aprender o que pode dar antes desse 3º acto. Mas é perfeito em termos cénicos. Postura e porte de Tristão e um actor exímio. Antes de começar o 3º acto veio um senhor da Deutsche Oper falar: "Ian Storey, bla, bla, bla... meniskus... bla, bla, bla, ha, ha, ha... aplausos" (a única coisa que percebi de entre o alemão foi menisco e o nome do cantor... somei 2+2 e tinha-se aleijado no joelho e pedir-se-ia desculpa por não se mover tanto no 3º acto, ou com alguma dificuldade). Assim foi e se calhar alguma dor que sentia também o fez superar a dor de Tristão e cantar como cantou, de actuar como actuou. Fantástico!
Evelyn Herlitzius tem-me surpreendido à medida que a tenho visto mais em palco. Conheci esta cantora das emissões de Bayreuth talvez 2006 e 2007 e não gostava do timbre, demasiado rude e ao estilo de Gwyneth Jones no facto de não atacar as notas directamente e fazer uma espécie de appogiatura nas mesmas. Tem vindo a melhorar e nota-se menos a rudeza e o restante. Talvez este se deva a abrir demasiado a boca ao cantar, como Gwyneth Jones achava ser a causa para o mesmo fenómeno nos últimos anos da sua carreira. É uma excelente actriz e foi um prazer escutar a sua Isolda, embora assuma que Nina Stemme é melhor.
Robert Holl e Petra Lang já descrevi e Alexandre Marco-Burmester é um barítono de excelente qualidade quer vocal quer interpretativa pelo que qualquer um com estas características canta um Kurwenal de maneira soberba. ~
Em resumo, foi o melhor Tristão e Isolda no seu todo a que tive o prazer de assistir.
Venham as próximas...
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