sexta-feira, 31 de julho de 2015

ERNANI, METropolitan Opera, Nova Iorque, Março /New York, March 2015


 (review in English below)

Ernani é uma opera da fase inicial de G Verdi, com libretto de Francesco Maria Piave (com quem viria a colaborar em várias óperas posteriores), baseado na obra Hernani de Victor Hugo.  

O argumento é inverosímil, como tantos outros. A acção passa-se em Espanha, no Séc. XVI. Três homens querem casar com Elvira: O tio, Don Ruy Gómez de Silva, Ernani, um bandido que é Don Juan de Aragão disfarçado (quem Elvira ama), e Don Carlo, rei de Espanha. Depois de diversos episódios, o rei acaba por concordar com o casamento de Elvira com Ernani. Silva, querendo ficar com Elvira, obriga Ernani a cumprir uma promessa que lhe havia feito, matando-se. Elvira, confrontada com a situação, mata-se também.


A encenação de Pier Luigi Samaritani é muito convencional e datada, mas não minimalista, e não acrescenta nada a este peculiar e desinteressante argumento. A maioria das cenas tem como elemento principal uma grande escadaria que ocupa a maior parte do palco.

O maestro James Levine foi, mais uma vez, excelente. Orquestra e coro ao mais alto nível e, como sempre, deu primazia aos cantores.

Ernani foi interpretado pelo tenor italiano Francesco Meli. Foi uma prestação sensacional, cénica e vocal. A voz é bonita, grande e expressiva. O cantor manteve a qualidade vocal ao mais alto nível durante toda a récita, o que muito contribuiu para o  elevado nível do espectáculo.



O soprano norte americano Angela Meade foi uma Elvira de grande porte. A voz é forte, bem timbrada mas, por vezes, pouco suave. Cantou sempre em força mas manteve uma apreciável qualidade vocal. Cenicamente foi estática.



Don Carlo, um papel de barítono, foi interpretado pelo tenor Placido Domingo. Domingo é uma referencia incontornável das últimas décadas da ópera. Cantou bem, mas este não será o seu melhor papel. Dado ser quem é e tendo em conta o contributo único que deu e dá ao mundo da ópera actual, foi uma presença marcante.



Don Roy Gómez de Silva foi superiormente interpretado pelo baixo ucraniano Dmitry Belosselskiy. Foi o melhor cantor da noite. A voz é poderosíssima, muito bonita e de grande versatilidade. O cantou usa-a com irrepreensível sentido dramático e é um consolo ouvir e ver uma interpretação deste calibre.



Nos papéis secundários estiveram Mary Ann McCormick como Giovanna, Paul Corona como Jago e Issachah Savage como Don Riccardo.








Foi um excelente espectáculo de ópera, muito mais para ouvir do que para ver.

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ERNANI, Metropolitan Opera, New York, March 2015


Ernani is an opera of the initial period of G Verdi, with libretto by Francesco Maria Piave (with whom he would collaborate on several later operas), based in Victor Hugo’s Hernani.

The plot is far-fetched, like so many others. The action takes place in Spain in the XVI century. Three men want to marry Elvira: Her uncle, Don Ruy Gómez de Silva, Ernani, a bandit who is Don Juan of Aragon disguised (who loves Elvira), and Don Carlo, King of Spain. After several episodes, the king ends up agreeing to the marriage of Elvira with Ernani. Silva, wishing to get Elvira, Ernani requires Ernani to fulfill a promise he had made him, and he kills himself. Elvira, faced with the situation, kills up too.

The staging of Pier Luigi Samaritani is very conventional and dated but not minimalist, and adds nothing to this peculiar and uninteresting plot. Most of the scenes have as main element a grand staircase that takes up most of the stage.

Conductor James Levine was, again, excellent. Orchestra and chorus at the highest level and, as always, he gave primacy to the singers.

Ernani was played by Italian tenor Francesco Meli. It was a sensational performance, scenic and vocal. The voice is beautiful, strong and expressive. The singer kept his voice quality at the highest level throughout the night, which greatly contributed to the high performance level.

North American soprano Angela Meade was a strong Elvira. The voice is powerful and with a nice timbre, but sometimes hard. She always sang in force but kept a high vocal quality. Scenically she was static.

Don Carlo, a baritone role, was interpreted by tenor Placido Domingo. Domingo is an unavoidable reference of the last decades of opera. He sang well, but this will not be his best role. Given who he is and taking into account the unique contribution that he gave and gives to the world of opera, he was a striking presence.

Don Roy Gomez de Silva was top sung by the Ukrainian bass Dmitry Belosselskiy. He was the best singer of the night. The voice is very powerful, very beautiful and has great versatility. The singer uses it with great dramatic sense, and what a pleasure it is to hear and see an interpretation of this caliber.

In supporting roles were Mary Ann McCormick as Giovanna, Paul Corona as Jago and Issachah Savage as Don Riccardo.

It was an excellent opera perfrormance, much more to hear than to see.


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sexta-feira, 24 de julho de 2015

OTELLO na English National Opera de Londres — Outubro de 2014

(Text in English below)


Confesso que a ideia de ver uma das minhas óperas favoritas cantada em inglês me faz confusão. Ainda assim, aproveitando uma estada em Londres e aguçado pela curiosidade — o wagner-fanatic já vira e comentara positivamente algumas récitas na ENO, nomeadamente uma Parsifal — aproveitei, numa decisão de última hora, para me estrear na English National Opera, palco em que as óperas são sempre apresentadas em inglês.

O Coliseu de Londres é uma sala claramente inferior à da Royal Opera House, não só no que respeita à dimensão, mas, sobretudo, à decoração, estando cheia de elementos romanos, por vezes de gosto mais discutível. Mas é bem imponente. Também o público-alvo parece ser bem diferente: é mais jovem e mais britânico. E notam-se outros pormenores diferenciadores: por exemplo, pode entrar-se a beber um vinho tinto adocicado ou uma cerveja.

Assisti ao Otello de Verdi: para mim uma das mais espectaculares óperas do maestro italiano e cujo libreto baseado na peça de Shakespeare tem interesse poético, dramático e clínico, tendo dado nome a uma perturbação mental — síndrome de Otelo ou delírio de ciúme.


Mas confesso que saí de lá muito surpreendido pela qualidade global tão elevada. A tradução para inglês esteve a cargo de Tom Philips e conseguiu não só manter o conteúdo muito fidedigno, como soube pôr a língua inglesa ao serviço da partitura de Verdi sem deturpar, de modo algum, as linhas melódicas do original italiano.


A encenação foi de David Alden num nova produção co-produzida com a Royal Swedish Opera e o Teatro Real de Madrid. Traz a acção para os anos 40 sem que, todavia, desvirtue demasiado o cenário pós-triunfo bélico do original. Mas nada acrescenta do ponto de vista interpretativo que justifique essa opção. De resto, nada acrescenta em termos cénicos e é até um pouco estática e amorfa. Limita-se a cumprir.

A condução da orquestra esteve a cargo de Edward Gardner e cumpriu bem, sem que todavia tenha sido uma interpretação superlativa: faltou um pouco de tensão dramática.


Stuart Skelton foi um Otello de bom nível. Tem uma voz potente com agudos que saem fáceis e com uma projecção sem défices. Cenicamente é um pouco mais estático, mas cumpriu de forma convincente. Foi, pois, um Otello de muita qualidade.


Iago foi interpretado pelo barítono Jonathan Summers. Tem um timbre bonito e agradável e uma voz com uma técnica muito segura que soube usar para nos transmitir a maldade intrínseca desta personagem negra. Teve, igualmente, uma prestação cénica de nível elevado.


Leah Crocetto foi uma Desdemona vocalmente de nível muito elevado. Tem uma voz com uma potência rara que se fazia ouvir claramente sobre a orquestra e com agudos estratosféricos. Mas também uma subtileza que lhe permitiu brilhar no Salce, salce! (não me recordo do inglês...). Cenicamente, dada a sua evidente obesidade, foi estática e não jogava bem com o texto. Mas isso é um pormenor (passe o paradoxo de grandeza). Vocalmente foi óptima!

Os restantes personagens cumpriram bem com os seus papéis. Cassio foi Allan Clayton. Roderigo foi Peter van Hulle. Ludovico foi Barbaby Rea. Montano foi Charles Johnston. Emilia foi Pamela Helen Stephen.

Apesar de não ter a beleza da versão original italiana, foi uma récita de qualidade elevada e uma experiência interessante que futuramente deixa espaço à repetição.

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(Text in English)

I confess that the idea of seeing one of my favourite operas sung in English makes me confused. Still, enjoying a stay in London and sharpened by curiosity - wagner-fanatic had seen and positively commented some recitals in ENO, including Parsifal - I took in a last minute decision to debut in English National Opera on which operas are always staged in English.

The London Coliseum is a clearly inferior to the Royal Opera House hall, not only regarding size, but above all regarding decoration that is full of Roman elements sometimes being  more debatable. But it is quite imposing. Also the audience seems to be quite different: it is younger and more British. And notice to other differentiating details: for example, you can get in drinking a sweet red wine or beer.

I attended the Verdi's Otello: for me one of the most spectacular operas of Italian master and whose libretto based on Shakespeare's play is poetic, dramatic and of clinical interest had given name to a mental disorder - Othello syndrome or jealousy delusion.

But I confess that got out of there very surprised by such a high overall quality. The English translation was made by Tom Philips and managed to not only keeping content very trusted, but also putting English language in the service of Verdi's score without misrepresent in any way, the melodic lines of the Italian original.

The staging by David Alden in a new co-production produced with the Royal Swedish Opera and the Teatro Real in Madrid brings the action to 40 's without, however, distorts the post-war triumph ambience of the original. But adds nothing to the interpretive point of view to justify this option. Moreover, adds nothing in scenic terms and is even a bit static and amorphous. It merely comply.


Conducting the orchestra was Edward Gardner performing well, but shall not have been a superlative interpretation: missed a bit of dramatic tension.

Stuart Skelton was a good level Otello. He has a powerful voice with highs coming out easily and with a projection without deficits. Scenically was a bit static, but fulfilled convincingly. He was therefore an Otello of high quality.

Iago was interpreted by the baritone Jonathan Summers. He has a beautiful and pleasant tone and a voice with a very safe technique that knew how to use to broadcast on the intrinsic evil of this dark character. Had also a scenic performance of high level.

Leah Crocetto was vocally a very high level  Desdemona . She has a voice with a rare power that was clearly hear above the orchestra and stratospheric highs. But also a subtlety that allowed her to shine in Salce Salce! (I do not remember the English ...). Scenically, given her obvious obesity, was static and did not play well with the text. But that is a detail (passing a paradox of magnitude). Vocally was great!

The remaining characters complied well with their roles. Cassio was Allan Clayton. Roderigo was Peter van Hulle. Ludovico was Barbaby Rea. Montano was Charles Johnston. Emilia was Pamela Helen Stephen.

Despite not having the beauty of the Italian original version, it was a recitation of high quality and interesting experience that leaves room for future repetition.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

QUATRO SANTOS EM TRÊS ACTOS, Teatro do Bairro, Lisboa,4/07/2015



Mais um texto de José António Miranda, que o “Fanáticos da Ópera”, agradece.

Ópera de Virgil Thompson (1933)
Libreto de Gertrude Stein

Texto português: Luísa Costa Gomes
Encenação: António Pires

Cenografia: João Mendes Ribeiro
Roupas: Luís Mesquita
Luzes: Vasco Letria
Coreografia/movimento: Paula Careto
Sonoplastia: Paulo Abelho

Intérpretes:
Francisco Tavares
Leonor Keil
Pedro Sousa
Solange Santos
Tiago Careto
Andreia Cabral, Carolina Campanela, Carolina Serrão, Catarina Félix, Catarina Moreira Pires, Cláudia Alfaiate, Diogo Leite, Diogo Xavier, Filipa Feliciano, Frances Edward, Francisco Vistas, Jaime Baeta de Almeida, João Maria, Lourenço Seruya, Mafalda Rodrigues, Rita Sereno.

O Programa de sala é omisso no que respeita à interpretação (direcção musical, cantores, coro e orquestra) da versão gravada da ópera.

Produção: Ar de Filmes (2015)
Co-produção: Act School, Teatro do Bairro

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(Fotografia de Maria Antunes)

Uma pedrada no charco da mediocridade geral prevalecente no panorama lírico-teatral doméstico, ou uma premonição do que poderia vir a ser, se tal fosse possível, o resultado de uma conjunção de saberes e labores de jovens artistas nacionais no domínio das artes do palco.

O espectáculo de António Pires e Luísa Costa Gomes é uma complexa construção de grande beleza feita a partir da ópera de Virgil Thompson e de algum modo com ela convivendo em contraponto.

E o resultado desta aventura emocional é de tal modo conseguido, que à medida que seguimos encantados na sua companhia apenas sentimos no fundo da boca o amargo sabor de estarmos reduzidos à audição de um registo gravado da ópera, privados assim do que poderia ser o esplendor da execução desta no local, ao vivo, em simultâneo, com intérpretes, músicos e coro e cantores, num desempenho cénico global em diálogo com o palco.

(Fotografia de Maria Antunes)

Esse sonho, aliás perfeitamente compatível com o original dispositivo cénico concebido por João Mendes Ribeiro, transformaria o que é uma extraordinária demonstração de profissionalismo dos jovens actores da Act School e um espectáculo de fim de curso de qualidade ímpar, num produto de arte global à maneira da Gesamtkunst wagneriana.

Bastaria para tal que não vingasse o habitual espírito de capelinha tão frequente entre nós, e existissem por parte dos responsáveis pelas estruturas existentes disponibilidade, criatividade e entusiasmo idênticos aos demonstrados pelos responsáveis deste espectáculo, para permitir a conjugação do labor de jovens músicos e cantores com uma proposta teatral deste género.

Penso nomeadamente, por terem recentemente dado sinais de vida, no Ateliê de Ópera da Metropolitana, no Estúdio de Ópera da Escola Superior de Música de Lisboa, ou no movimento mpmp.

(Fotografia de Maria Antunes)

Mas passemos do sonho à realidade para descrever o que se passa de facto no palco do Teatro do Bairro.
Num espaço negro de rigorosa austeridade que se prolonga para o infinito, para trás e para cima pela utilização de um vasto espelho, os intérpretes do texto de Luísa Costa Gomes explicitam pela verbalidade e pela expressividade corporal as emoções que a música de Thompson e o libreto de Gertrude Stein veiculam.

A esta exposição cénica da ópera assistimos nós, simples espectadores, desfrutando graças ao espelho colocado no fundo do palco, de uma segunda visão global do conjunto, como se fôssemos deuses pairando acima das dúvidas e angústias dos protagonistas.

Mas a todo o momento, procurados com progressiva intensidade acima de nós pelos olhares e gestos dos intérpretes e sentidos por todos, intérpretes e espectadores, os sons da ópera nos recordam que não somos nem deuses nem santos, mas simplesmente homens e mulheres comuns a quem ambos, deuses e santos, se existirem interpelam permanentemente.

O texto português, de Luísa Costa Gomes, recria ou reproduz de modo exemplar o libreto original, mantendo com o texto de Gertrude Stein um afinidade tal que é permitido considerá-lo como parte integrante de um novo libreto de um espectáculo integrando a audição da ópera.

Sob o ponto de vista formal a prosódia do texto português supera frequentemente o modelo, e coloca-nos no êxtase subtil de acompanhar com crescente prazer o saltitar do discurso de personagem para personagem, ou na deliciosa posição de nos abandonarmos, levados pelo mágico embalar dos discursos simultâneos tão característico da oralidade lírica.

Em terra, no palco, desde o início se descobre uma gravidade solene expressa na deambulação dos múltiplos intervenientes, que desenham coreografias de um rigoroso formalismo e adoptam posturas e movimentos imbuídos de profunda carga simbólica, e desse modo contrastam e preenchem a vacuidade do discurso tornando-o significante.

Ali, no espaço aberto que no final está limitado às dimensões de uma sala de ensaio de ballet, e pela mão dos dois mestres de cerimónias que recordam o herói de A clockwork orange de Kubrick, são assim sucessivamente expostos à nossa frente os florões de variadas mitologias religiosas, numa caleidoscópica viagem cuja vertigem apenas é interrompida a espaços pela audição da ópera.

Esta pontuação do discurso cénico, em palco, pela música vinda de cima, do céu, potenciada plasticamente pela presença do espelho, confere ao conjunto uma coerência e uma unidade tais que é difícil imaginar como será possível dar a ver de outro modo a ópera de Virgil Thompson.

(Fotografia de Maria Antunes)

A tensão resultante deste diálogo entre o que se passa em palco e a réplica que a audição da ópera lhe fornece, ou entre a ópera que se ouve e a sua demonstração cénica, gera momentos de grande intensidade lúdica, e nós espectadores que estamos no seu centro, entre o céu e a terra, somos os felizes beneficiários dessa dinâmica emocional.

E pela mão de António Pires e na companhia dos vinte e um intérpretes em palco, fazemos a viagem em três actos pela terra dos santos, não apenas os quatro santos do título da ópera, mas todos eles, como se com eles seguíssemos num poema: São João vai pela mão/de Santa Helena com pena/de São Tomé que caminha/ por seu pé com Santa Teresa/que de surpresa vai presa/numa cruz de Santo André.

Um espectáculo a não perder, e a demonstração de que é possível, com escassos recursos materiais mas com farta contribuição de criatividade, génio e trabalho, produzir algo que, como um sonho, perdurará na nossa memória para sempre.


José António Miranda    15/07/2015

sexta-feira, 10 de julho de 2015

DON GIOVANNI de W. A. Mozart — Palau de la Música Catalana, 27.05.2015

(Review in English below)


Assisti à ópera buffa Il dissoluto punito ossia Il Don Giovanni, KV 527, de Wolfgang Amadeus Mozart. Trata-se de uma ópera estreada em Praga no ano de 1787 com libreto do italiano Lorenzo da Ponte que é, com pleno mérito, considerada uma das mais geniais obras do reportório lírico.


Trata-se de uma ópera em que a personagem principal Don Giovanni (um verdadeiro psicopata) exibe toda a arte do galanteio e segue, como lema de vida, a busca incessante do prazer, não interessando os meios que utiliza para obter os seus fins. A genialidade da obra está não só na sua beleza poética, mas também na sua tremenda dimensão psicológica, na construção ímpar das identidades das personagens, nas suas múltiplas nuances interpretativas (permitindo-se muitas leituras) e na tensão criada apesar do aparato buffo envolvente. E a música de Mozart é tão perfeita que não há descrição que lhe faça jus.


O Palau de la Música Catalana apresentou esta ópera em versão de concerto (ligeiramente encenada) com o conhecido maestro René Jacobs na direcção de uma muito competente Freiburger Barokorchester.


Jacobs é um dos maiores especialistas mundiais nas interpretações históricas das peças deste período e, concretamente, das óperas de Mozart, apresentando frequentemente este tipo de espectáculos. Já assistimos em Lisboa a Die Zauberflöte de qualidade sublime. A sua interpretação foi viva e perfeita no estilo mozartiano adoptado, criando a atmosfera certa que a obra exige e em sintonia com os cantores. Apesar disso, permito-me uma opinião de gosto: achei que algumas vezes ia rápido demais...


A minha apreciação dos cantores está muito condicionada pela sala. Era a primeira vez que ouvia canto lírico no Palau. Por outros concertos, já achava que a acústica deixava algo a desejar (o que não se estranha porque é tudo mármore, azulejo e vidro), mas para canto é uma sala extremamente ingrata. A isso acresce a minha localização no segundo piso... o som perdia-se por patamares...


Johannes Weisser (Don Giovanni)
 tem uma voz com bom timbre para o papel e foi um Don Giovanni rápido e seguro, embora com uma prosódia pouco galanteadora. A ária Fin ch’han dal vino correu bem mas sem deslumbrar, estando muito bem na canzonetta Deh vieni alla finestra e no Finale.

Marcos Fink (Leporello)
 foi o cantor mais cómico de todo o elenco. Possui uma voz potente e um timbre excelente para o papel. Foi um Leporello fantástico e esteve muito bem na emblemática ária Madamina, il catalogo è questo.

Jeremy Ovenden (Don Ottavio)
 teve um óptimo fraseado e ofereceu-nos uma interpretação de bom nível na ária Dalla sua pace.

Birgitte Christensen (Donna Anna) tem uma voz potente e agradável e teve uma interpretação segura e expressiva. Mas não chegou a todas as notas na estupenda ária Non mi dir, bell’idol mio (ainda tinha no ouvido a gravação de Diana Damrau...).

Alexandrina Pendatchanska (Donna Elvira) foi muito competente no seu papel, apresentando-se sem mácula, mas não me transmitiu muita emoção: Dona Elvira é uma personagem ambivalente e algo histriónica, sendo que o segundo aspecto não passou. Em todo o caso, foi uma óptima presença com as suas árias Ah chi mi disse mai e Mi tradi quell’alma ingrata.

Sunhae Im (Zerlina) tem uma voz melodiosa e ligeira e esteve em bom plano em todas as suas intervenções, nomeadamente em Batti, batti, o bel Masetto e Vedrai carino.

Tareq Nazmi (Masetto e Commendatore)
 foi uma dupla personagem. Tem uma voz profunda e intensa e teve uma boa prestação sobretudo como Commendatore em que a sua voz ressoou austera pelo Palau.

O Cor de Cambra del Palau de la Música Catalana (dirigido por Josep Vila i Casañas) esteve impecável em todas as suas intervenções.

Foi, pois, uma muito agradável e muito bem recebida récita numa das mais bonitas salas de concerto europeias.

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(Review in English)

I attended the opera buffa Il dissolute punito ossia Il Don Giovanni, KV 527 by Wolfgang Amadeus Mozart. It is an opera premiered in Prague in 1787 with libretto of Lorenzo da Ponte. With full merit, this opera is considered one of the most brilliant works of the operatic repertoire.

It is an opera in which the main character Don Giovanni (a psychopath prototype) exhibits all the art of courtship and follows as motto of life to pursuit of pleasure, no matter the means he uses to achieve his ends. The genius of the work is not only in its poetic beauty, but also in its tremendous psychological dimension, the unique construction of the identities of the characters in its many interpretive nuances (allowing up many different readings) and created tension despite the surrounding buffo apparatus. And Mozart's music is so perfect that there is no description that will make you eligible.

The Palau de la Música Catalana presented this opera in concert version (slightly staged) with the renowned conductor René Jacobs directing a very competent Freiburger Barokorchester. Jacobs is one of the leading experts in historical interpretations of the pieces of this period and, specifically, the operas of Mozart, often presenting this type of concerts. We have seen in Lisbon one Die Zauberflöte of sublime quality. His interpretation was alive and in the perfect Mozartian style he adopted, creating the right atmosphere that the work requires and in tune with singers. Nevertheless, allow me a taste of opinion: I thought sometimes he went too fast...

My appreciation of the singers is very conditioned by the hall itself. It was the first time I heard classical singing at Palau. For other concerts, as thought the acoustics left something to be desired (which is not strange because it's all marble, tile and glass), but for singing is an extremely thankless hall. For that, my location on the second floor does not help... the sound was lost ground by ground...

Johannes Weisser (Don Giovanni) has a voice with good timbre for the role and was a quick and secure Don Giovanni, though with a little coquettish prosody. The aria Fin ch'han dal vino went well but without dazzle, being very well in Canzonetta Deh vieni alla finestra and Finale.

Marcos Fink (Leporello) was the most comic singer of the cast. He has a powerful voice and a great tone for the role. He was a fantastic Leporello and did very well in the flagship aria Madamina, il catalogo è questo.

Jeremy Ovenden (Don Ottavio) had a great phrasing and offered us a good level interpretation in the aria Dalla sua pace.

Birgitte Christensen (Donna Anna) has a powerful and pleasant voice and had a secure and expressive interpretation. But she did not reach all the top notes in the stupendous aria Non mi dir, bell'idol mio (I still had in my ear Diana Damrau’s recording...).

Alexandrina Pendatchanska (Donna Elvira) was very competent in her role, presenting in an unblemished shape, but did not gave me a lot of emotion: Dona Elvira is an ambivalent character and something histrionic, and the second aspect has not passed. In any case, it was a great presence with her arias Ah chi mi dice mai and Mi tradi quell'alma ingrata.

Sunhae Im (Zerlina) has a melodious and soft voice and was in good plan in all her interventions, particularly in Batti, batti, bel Masetto and Vedrai carino.

Tareq Nazmi (Masetto and Commendatore) was a double character. He has a deep, intense voice and had a good performance especially as Commendatore with his voice resonating in austere way by Palau.

The Cor Cambra del Palau de la Música Catalana (directed by Josep Vila i Casañas) was superb in all its interventions.


So it was a very nice and very well received recital in one of the most beautiful European concert halls.