terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

ACIS AND GALATEA, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Fevereiro de 2017


De José António Miranda, colaborador habitual do "Fanáticos da Ópera" fica mais um magnífico texto, como sempre acontece, este sobre a ópera Acis and Galatea.



24/02/2017  Fundação Calouste Gulbenkian  (Lisboa)

ACIS AND GALATEA   (Georg Friedrich Händel)
Ópera em três Actos  (1718)  (Versão WA Mozart 1788)
Libreto: John Gay, Alexander Pope e John Hughes, a partir da tradução inglesa das Metamorfoses de Ovídio, por J. Dryden

§  Direcção musical: Leonardo García Alarcón
§  Acção Cénica: Marie Mignot

§  Luzes: Luís Fradique e Marie Mignot
§  Roupas e adereços: Bárbara Magalhães
§  Máscaras: Tiago Serpa

§  Galatea: Ana Quintans
§  Acis: Marco Alves dos Santos
§  Polyphemus: André Henriques
§  Damon: João Miguel Rodrigues
§  Coridon: João Terleira

§  Orquestra Gulbenkian
§  Coro Gulbenkian    Dir: Jorge Matta

§  Produção: FCG

O amor de Acis e Galatea. Nicolas Poussin, 1630

Por mais estranha que tal afirmação possa parecer aos mais incautos não é possível deixar de reconhecer que o espectáculo apresentado agora na sala grande da FCG foi provavelmente o melhor espectáculo de ópera visto até ao momento em Lisboa na presente temporada.
E a estranheza compreende-se pois se tratou da negação do paradigma habitual entre nós no que respeita à cena lírica.

Em primeiro lugar o Grande Auditório não tem condições materiais que permitam a apresentação de verdadeiros espectáculos de ópera encenada. Complementarmente, a ênfase da programação musical da Fundação não está colocada no espectáculo lírico. Para além de tudo isto, e contrariamente ao que sucede frequentemente nesta sala e é hábito no escasso circuito operático nacional, o elenco de cantores era constituído exclusivamente por vozes portuguesas. Três heresias portanto.

Pois não obstante estes aparentes constrangimentos pudemos mais uma vez assistir à demonstração de que a escassez de recursos apenas serve de justificação para a falta de qualidade quando a mediocridade impera e a inteligência não sobra.
Felizmente para nós tal não foi o caso desta vez e neste local. Tentemos portanto ver porquê.

A sala da FCG não serve para ópera encenada, é um facto reconhecido. E por tal razão temos sido periodicamente brindados com aquilo a que os programadores de serviço denominam ópera semi-encenada.
Esta infeliz designação, que tem sido usada nos últimos anos para a apresentação na FCG de um conjunto de espectáculos líricos com qualidade muito heterogénea, foi também neste caso a proposta para o espectáculo.
Ora nesta área é particularmente difícil traduzir quantitativamente as propostas apresentadas. Quando isso é feito apetece-me sempre perguntar porquê semi-encenação, e não dois terços, ou um quarto, por exemplo.
Porém a designação é o que menos importa. De facto, se encenar ópera fosse apenas separar a orquestra da cena e dispor nesta os outros intérpretes (cantores, actores, bailarinos) e um conjunto de dispositivos cenográficos habitualmente utilizados em teatro, seria talvez mais fácil quantificar.

Mas o espectáculo lírico é algo mais do que um somatório de recursos: a ópera é música e são palavras em teatro, e este acontece ou não independentemente dos suportes ou contextos disponíveis, como resultante de um conjunto de variáveis qualitativas cuja caracterização não é passível de ser feita simplesmente de modo quantitativo.
Ora neste caso podemos afirmar sem qualquer dúvida que aconteceu teatro no palco do Grande Auditório. E portanto pudemos assistir a um magnífico espectáculo de ópera, provavelmente o melhor apresentado naquele local desde o extraordinário acontecimento que constituiu, curiosamente também no dia 24 de Fevereiro mas em 2014, a apresentação de Dido e Eneias sob a direcção de Teodor Currentzis.

O mérito caberá em primeiro lugar à responsável por aquilo que o programa denomina em acordês “ação cénica” e eu chamaria concepção cénica. Maria Mignot colocou os elementos da orquestra no centro do espaço disponível fazendo o coro e os cantores solistas deambular em seu redor ao serviço das necessidades expressivas da obra.

Desse modo, e utilizando apenas como dispositivos complementares um elemento cenográfico em forma de grande portal vegetal que deixa ver em fundo quando se queira o verde dos jardins da fundação, a encenadora conseguiu ultrapassar a ausência de fosso sem com isso transformar o espectáculo numa simples apresentação concertística da ópera. Uma proeza.

Para tal contribuiu também de forma decisiva o trabalho de direcção musical de García Alarcón. Na verdade e por força desse trabalho a orquestra não adoptou o comportamento voyeurista tão frequente nestas situações, com os instrumentistas distraídos com o que se passa em cena e o consequente e inevitável reflexo a nível da sonoridade global.
Pelo contrário, e de modo algo contrastante com a rotina da orquestra, vimos grande empenho expressivo em múltiplas execuções individuais, traduzido naturalmente em verdadeiras interpretações veiculando a grande carga emotiva da partitura.

Para esta vivência intensa da ópera no palco centralizado pelo conjunto instrumental contribuiu claramente também o desempenho cénico dos intérpretes vocais, de grande sobriedade mas simultaneamente intenso rigor expressivo, transformando cada momento num vibrante espectáculo lúdico.
O uso inteligente da luz e a discreta qualidade dos escassos adereços utilizados completaram este quadro idílico. Mas a cereja em cima do bolo foi a qualidade dos desempenhos vocais.

Polyphemus observa Acis e Galatea. Auguste Ottin, Fontaine de Medicis, 
Jardins du Luxembourg, Paris

Ana Quintans fez mais uma vez a demonstração de um facto cuja confirmação é desde há muito desnecessária: trata-se da melhor soprano portuguesa em actividade. Um instrumento de timbre belíssimo utilizado com superior domínio técnico e a sua capacidade expressiva ímpar constituíram mais uma vez os elementos chave que garantem que as intervenções desta solista nos proporcionam a nós, felizes espectadores da sua plena maturidade interpretativa vocal, momentos de grande prazer. Um sonho cujo ponto culminante aconteceu na ária final, Heart, the seat of soft delight !

André Henriques já não é, felizmente, uma revelação, pese embora a sua juventude. A sua prestação como Polyphemus apenas confirmou o que já reconhecíamos desde a sua aparição no Ateliê de Ópera da Metropolitana. Trata-se de um cantor dotado de um timbre muito belo, grande à vontade cénico e técnica perfeita, uma voz grande e extensa conjugada com evidente naturalidade dramática, neste caso postos à prova com muita mestria e grande sucesso no difícil papel que lhe coube.

A verdadeira surpresa da noite veio porém da participação de Marco Alves dos Santos, um tenor com uma carreira ascendente entre nós mas até aqui algo indefinida estilisticamente. E para quem tenha seguido até aqui essa carreira, foi uma verdadeira revelação apreciá-lo neste repertório pela beleza do timbre, a fluidez de emissão, a segurança cénica, compondo um Acis de grande qualidade. Ficamos portanto atentos e expectantes em relação ao seu futuro depois desta actuação ímpar.

João Rodrigues e João Terleira estiveram também em bom nível. Mas o grande elemento aglutinador deste belíssimo espectáculo foi o coro, irreconhecível na sua prestação de natureza superlativa, para mais neste caso investido de uma participação dramática cénica que desempenhou com grande rigor e expressividade: uma pequena maravilha o resultado do trabalho de Jorge Matta!

Leonardo García Alarcón não dispunha aqui da sua “Capella Mediterranea”, mas de facto conseguiu transformar a orquestra numa unidade expressiva de grande qualidade, visível particularmente no segundo acto.

E deste modo, numa sala que não é feita para ópera, com escassos recursos cenográficos, recorrendo a uma orquestra que não é especialista em repertório lírico, e apenas com a contribuição de intérpretes (coro e solistas) nacionais, se escreveu o que foi provavelmente, repito,  o melhor espectáculo de ópera visto até ao momento em Lisboa na presente temporada. Uma lição!


JAM      26/02/2017

sábado, 25 de fevereiro de 2017

ACIS AND GALATEA – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Fevereiro de 2017


Acis and Galatea é a primeira obra musical de Georg Friedrich Händel com texto em inglês. Baseada na mitologia clássica grega, conta a história de um pastor, Acis (tenor), que se apaixona e é correspondido pela ninfa Galatea (soprano), também pretendida por um monstro de um só olho, Polyphemus (barítono). Este mata Acis mas Galatea transforma-o em água que corre na planície para a eternidade, assim celebrando a vitória do amor. Não conhecia a obra e socorri-me do magnífico texto de Susana Duarte, no programa de sala, para dar este apontamento.



Foi um espectáculo muito bom, com alguns componentes que merecem ser destacados pela qualidade excelente.

A ópera foi apresentada em versão semi-encenada por Marie Mignot, com luzes de Luís Fradique e Marie Mignot, adereços de guarda-roupa de Bárbara Magalhães e máscaras de Tiago Serpa. A orquestra esteve colocada à frente do palco, atrás um espaço para o coro. Os solistas circularam por todo o palco. Durante o espectáculo ergueram-se painéis laterais com desenhos de árvores que simulavam o enquadramento campestre e, no final, revelou-se o jardim da Gulbenkian que proporcionou um enquadramento real perfeito. Uma abordagem cénica simples, de muito bom gosto e grande eficácia. O primeiro componente de excelência que quero assinalar.


Dirigiu o coro e orquestra da Gulbenkian o maestro Leonardo García Alarcon. Todos muito bem, mas não posso deixar de realçar a interpretação do Coro Gulbenkian, sempre perfeita, mas sublime após a morte de Acis! Mais um componente de excelência. Jorge Matta, maestro do Coro Gulbenkian, deve estar muito orgulhoso do seu trabalho.


Quanto aos solistas, o tenor Marco Alves dos Santos interpretou o Acis com grande elevação, o soprano Ana Quintans, com voz bonita e sempre afinada, foi excelente como Galatea (outro destaque) e o barítono André Henriques esteve ao mais alto nível como Polyphemus, excelente tanto cénica como vocalmente (o último destaque). Em papéis secundários e também com boas prestações, embora num patamar inferior, estiveram os tenores João Miguel Rodrigues e João Terleira.


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