(Review in English below)
Uma Anna Bolena de ouro no Liceu de Barcelona!
Anna Bolena é uma ópera de Gaetano Donizetti, com libreto de Felice Romani, sobre a condenação à morte por Henrique VIII de Ana Bolena, sua segunda mulher, para se casar com Jane Seymour.
Em Windsor, Jane Seymour (Giovanna) sente-se culpada por manter um romance com o rei Henrique VIII (Enrico). Este diz-lhe que irão casar-se em breve. Ana Bolenna (Anna), rainha e segunda mulher de Henrique VIII, pede a Smeton (um músico da corte que está secretamente apaixonado por ela) uma canção que a faça lembrar Lord Percy, o seu primeiro amor, exilado pelo rei. O rei quer incriminar Percy como amante da rainha e manda-o regressar. Percy tenta suicidar-se depois de reafirmar o seu amor a Anna e esta o rejeitar. Quem o detém é Smeton que tinha consigo um retrato de Anna, que deixa inadvertidamente cair e que serve de pretexto para o rei afirmar a traição. Presa na torre de Londres, Anna tem um confronto com Giovanna em que esta lhe confessa que é ela a nova amante do rei e será a futura rainha. Depois da condenação, Anna perdoa-a, culpando apenas o rei. Os pedidos de Percy e de Giovanna para salvar Anna são ignorados pelo rei. Enquanto aguarda a execução, Anna recorda o seu primeiro amor, alternando momentos de lucidez e de delírio. O terceiro casamento do rei é anunciado e Anna é morta.
Anna Bolena foi a ópera representada na inauguração do Gran Teatre del Liceu em Barcelona em 17 de Abril de 1847.
A encenação do espanhol Rafael Duran é intemporal, simples e eficaz. O cenário, algo minimalista, tem 3 patamares, unidos por uma grande escadaria central. A cor dominante, chão e paredes, é o dourado, a condizer com a beleza da sala. Durante o espectáculo, os níveis mais elevados por vezes são cobertos por um painel de ripas de madeira, que desce, no qual são projectadas imagens que também se vêem no nível mais baixo em dois conjuntos de quatro grandes ecrans situados em cada lado do cenário, onde se projecta a acção em palco vista de quatro ângulos diferentes. Como nos sistemas de vigilância actuais, tudo pode ser controlado a partir deles (e o rei fá-lo explicitamente no 1º acto) mas, quando o rei está com a amante Giovanna, a sua privacidade é garantida porque passam a ser projectadas imagens de peixes num lago.
(Algumas fotografias são do site do Liceu, Barcelona)
A contrastar com o dourado do palco e dos vestidos das protagonistas estão omnipresentes, desde o início, vários corvos negros (máscaras inspiradas no surrealista Max Ernst), numa alusão à Torre de Londres (e ao 1984 de Orwell) onde Anna irá ser decapitada. O efeito cénico é fantástico. Ao longo da récita aparecem também vários cães (estes verdadeiros) pela mão de caçadores, trajados a rigor.
Na cena final, o dourado do palco dá lugar às grades negras do cárcere de Anna, com os elementos do coro também de negro, noutro momento cénico de belo efeito.
O coro esteve bem e a orquestra teve uma boa prestação, dirigida pelo maestro ucraniano Andriy Yurkevych, que foi vaiado no final, não tendo eu entendido porquê.
Anna Bolena foi interpretada pelo soprano eslovaco Edita Gruberova. É uma cantora ímpar que só tem paralelo em Plácido Domingo se considerarmos a associação longevidade - qualidade vocal. A senhora tem 64 anos mas continua a cantar estes papéis dificílimos com um assombro estarrecedor. Não concordo com os que dizem que a voz está danificada pela idade. No registo mais grave não tem (nunca teve) uma voz marcante, mas não é por essas curtas notas que a vamos ouvir. Nos agudos e sobreagudos a voz é imaculada e de potência e beleza assombrosas. Sempre audível sobre a orquestra, a coloratura é fantástica e os pianissimi são do outro mundo. Há ainda a salientar a óptima interpretação dramática da personagem.
Na ária Al dolce guidami, de uma beleza interpretativa arrepiante, ofereceu-nos cascatas de notas agudas que parecem inatingíveis à voz humana e levou o público ao delírio, com uma estrondosa ovação recheada de bravos e outras manifestações de agrado de vários minutos, como raramente assisti ao vivo. E, no final, já depois dos agradecimentos, à chamada constante do público, voltou várias vezes ao palco, onde foi presenteada com chuvas de flores. Uma diva também no Liceu.
(Edita Gruberova)
E se a Gruberova foi assim, o mezzo-soprano letão Elina Garanca foi responsável por outra interpretação, de Giovanna Seymour, absolutamente excepcional. Desde que a ouvi como Romeu em I Capuleti e i Montecchi tornei-me um admirador incondicional e nunca me decepcionou.
A voz é poderosa e de uma beleza e musicalidade invulgares. A técnica é exímia e, no belcanto, é prodigiosa. A figura, bela, alta e loira, ajuda muito. Fez uma Giovanna apaixonada mas corroída pelo remorso perante a rainha.
O dueto com Gruberova no início do 2º acto O mia Regina! foi emocionante e inesquecível, com as duas cantoras a levarem a um nível superlativo as suas qualidades cénicas e vocais.
(Elina Garanca)
Já escrevi anteriormente neste blogue que não gosto da voz de José Bros, tenor catalão, que interpretou Percy. Mantenho essa opinião apesar de ter assistido aqui à sua melhor interpretação. Mas a voz é muito fina, pouco ágil e o cantor parece que canta com a boca fechada. Não soa bem e, cenicamente, também não lhe reconheço grande desempenho. Estava em casa (é de Barcelona) e foi muito aplaudido, mas continua sem me convencer.
Carlo Colombara, baixo italiano, foi Enrico. Seguro na voz e credível como rei tirano, não tem uma potência equiparável às duas protagonistas, mas não deixou de se ouvir e manteve a qualidade ao longo da récita.
O contralto italiano Sonia Prina deu boa conta no papel de Smeton. A voz é bem timbrada, firme e cheia.
Mais um excelente espectáculo em Barcelona, um daqueles em que a magia da ópera se sentiu em pleno! Recomenda-se vivamente!
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ANNA BOLENA – Liceu, Barcelona, Janeiro de 2011
A golden Anna Bolena at the Liceu in Barcelona!
Anna Bolena is an opera by Gaetano Donizetti, libretto by Felice Romani, on the sentencing to death by Henry VIII to Anna Bolena, his second wife, to marry Jane Seymour.
In Windsor, Jane Seymour (Giovanna) feels guilty for keeping an affair with King Henry VIII (Enrico). He tells her that they will marry soon. Anna Bolena (Anna), the Queen and the second wife of Henry VIII asks Smeton (a court musician who is secretly in love with her) to play a song that reminds her of Lord Percy, her first love, exiled by the king. The king wants to incriminate Percy as the Queen's lover and orders his return. Percy tries to kill himself after reaffirming his love for Anna as she rejects him. Smeton avoids it and drops a picture of Anna, what serves as a pretext to assert the king's betrayal. Stuck in the Tower of London, Anna has a confrontation with Giovanna in that she confesses that she is the new mistress of the king and that she will be queen in the future. After a confrontation, Anna forgives her, blaming only the king. Requests from Percy and Giovanna to save Anna are ignored by the king. While awaiting execution, Anna recalls her first love, alternating moments of lucidity and delirium. The king's third marriage is announced and Anna is dead.
The opera Anna Bolena was performed at the inauguration of the Gran Teatre del Liceu in Barcelona on April 17, 1847.
The staging of the Spanish Rafael Duran is timeless, simple and effective. The scenario, somehow minimalistic, has three floors, connected by a large central staircase. The dominant colour, floor and walls, is golden yellow, matching the beauty of the room. During the performance, the higher floors are sometimes covered by a panel of wooden strips, which descends, and in which images are projected that are also projected at the lowest floor in two sets of four large screens situated on each side of the scenario, where the action on stage is projected from four different angles. As modern security systems, everything can be controlled from them (and the king does it explicitly in the 1st act), but when the king is with his mistress Giovanna, his privacy is assured since the projected images change to golden fish in a lake.
In contrast with the golden stage and the dresses of the actresses, everywhere, from the beginning, several black crows are always present (masks inspired by the surrealist Max Ernst), alluding to the Tower of London (and Orwell's 1984) where Anna will be beheaded . The scenic effect is fantastic. Throughout the performance, several dogs (these live ones) also appear by the hand of hunters, dressed accordingly. In the final scene, the golden stage gives way to the bars of the black prison where Anna is, with the elements of the choir also in black, another moment of beautiful scenic effect.
The choir and the orchestra had a good performance, conducted by Ukrainian maestro Andriy Yurkevych, who was booed at the end, I did not understand why.
Anna was interpreted by the Slovak soprano Edita Gruberova. She is a unique singer that is only comparable to Placido Domingo considering the association longevity – quality of voice. The lady is 64 but still sings these extremely difficult roles with an astonishing quality. I do not agree with those who say that her voice is damaged by age. In the lower notes she does not have a remarkable voice (she never had), but we do not go to hear her for those short notes. In the high and extreme high register, her voice is divine and of breathtaking beauty and power. Always audible over the orchestra, the coloratura is fantastic and the pianissimi are above human capacities. I also highlight the great dramatic interpretation of the character.
In the aria Al dolce guidami , she offered us a beautiful interpretation, with cascades of top notes that seem unattainable to the human voice. The audience became wild with a thunderous ovation filled with bravos and other expressions of satisfaction during several minutes, something that I rarely watched live. And in the end, after curtain calls were over, responding to the constant call of the public, she returned repeatedly to the stage where she was presented with lots of flowers. A Diva also in the Liceu.
And if Gruberova was as I described, Latvian mezzo-soprano Elina Garanca was responsible for another absolutely exceptional interpretation, as Giovanna Seymour. Since I heard her as Romeo in I Capuleti e i Montecchi I became an unconditional admirer and she never disappointed me.
The voice is powerful and of unusual beauty and musicality. The technique excels and in belcanto, she is prodigious. The figure, tall, beautiful and blonde, helps a lot. She played a passionate Giovanna consumed by remorse before the queen The duet with Gruberova at the beginning of Act 2 O mia Regina! was exciting and unforgettable, with the two singers bringing to a superlative level their artistic and vocal qualities.
I've written before in this blog that I do not like the voice of José Bros, a Catalan tenor, who played Percy. I maintain that opinion despite having seen his best performance here. But his voice is very thin, not flexible and the singer seems to sing with the mouth closed. He does not sound attractive, and artistically, he is not also a great performer. He was at home (he is from Barcelona) and was much applauded, but he still did not convince me.
Carlo Colombara Italian bass, was Enrico. He showed a steady voice and he was artistically credible as the unfair king, although his voice is not comparable in power to the two protagonists. But he maintained the quality throughout the performance.
Italian contralto Sonia Prina was very good as Smeton. The voice is pleasant, firm and full.
Another excellent performance in Barcelona, one in which the magic of opera was felt in full! I strongly recommend it!
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