segunda-feira, 18 de julho de 2011

TOSCA – Royal Opera House, Londres, Julho 2011

(review in English below)

Tosca é um ópera de Giacomo Puccini com libretto de Guiseppe Giacosa e Luigi Illica, segundo a peça dramática de Victorien Sardou La Tosca de 1887.

Uma das melhores óperas do compositor, Tosca retrata uma história de amor, vingança, crueldade e morte passada em Roma em Junho de 1800, tendo por fundo as guerras napoleónicas e o ambiente revolucionário então vivido. A história pode ler-se aqui.

(estava lotação esgotada, mas a fila para as desistências ultrapassava largamente as portas da Royal Opera House)

Foi com muita satisfação que revi esta magnífica produção de Jonathan Kent, curiosamente com dois dos três solistas principais, Gheorghiu (Tosca) e Terfel (Scarpia), repetindo os papeis. Diferentes foram o maestro (Pappano) e o Kaufmann (Cavaradossi). 



Se há dois anos já tinha ficado deslumbrado com a récita, que poderei dizer desta? Foi um espectáculo perfeito. Vejamos porquê:



António Pappano dirigiu a excelente Orquestra da Royal Opera House de forma sublime. Sobressaiu a magnífica orquestração tempestuosa que Puccini emprestou à obra para imprimir o ritmo da acção, mas foram também fantásticos as árias e duetos de que a obra está imbuída. O Coro da Royal Opera esteve impressionante, o que foi particularmente notório no Te Deum no final do 1º acto.



Angela Gheorghiu, soprano romeno, como pessoa, tem frequentemente atitudes de profundo desrespeito pelo público, com cancelamentos frequentes e à última hora. Fui recentemente vítima de um deles aqui.
Contudo, já escrevi várias vezes que gosto muito da sua voz. E, desta vez, esteve ao mais alto nível, foi a melhor interpretação que lhe ouvi. A sua Tosca transmitiu ciúme, paixão, angústia, raiva, vingança e desespero ao longo da récita. A voz mantém uma impressionante beleza tímbrica e uma cor única. A extensão vocal é notável, o legato assinalável, os agudos são aparentemente fáceis, não perdem qualidade nem afinação e os pianissimi são de grande qualidade. Em cena foi totalmente credível. O guarda-roupa também ajudou muito. Na ária do 2º acto Vissi d’arte transbordou emoção e tristeza numa interpretação superior.






Bryn Terfel, baixo-barítono Galês, que há dois anos achei que não esteve no seu melhor, foi desta vez um Scarpia imbatível. Para além da prestação cénica excelente como vilão (também a figura e a roupagem a condizerem), a voz foi requintadamente maléfica. O timbre é belíssimo e não grita, conseguindo sempre cantar numa linha melódica muito agradável, harmónica e perfeitamente adequada à personagem.





Deixei para o fim o tenor alemão Jonas Kaufmann. Sou suspeito porque me incluo entre os seus admiradores incondicionais, mas têm sido as muito diversificadas actuações em que o tenho ouvido que são responsáveis por esta opinião. É também um homem simples, acessível e simpático, com quem tive a sorte de me encontrar há poucos meses aqui em Londres, o que contribuiu para a opinião que tenho dele.
Acho que Cavaradossi é um dos seus papéis preferidos e isso ficou patente nesta récita. A figura é excelente e presta-se ao papel. A representação também. Mas o mais importante é a voz que é de uma beleza ímpar e tem características muito singulares, permitindo que baste ouvir poucos segundos para se identificar logo o cantor, o que só acontece com muito poucos. O registo grave é excelente, baritonal, mas os agudos são igualmente poderosos, luminosos, afinados e abertos.







A ária Recondita armonia foi magnífica e deixou-nos antever uma interpretação superior. Em Mia gelosa, também no 1º acto foi suave e tranquilizador na transmissão do amor que sente por Tosca. No 2º acto, após a expressão dilacerante da tortura de que foi alvo, o seu Vittoria! quando sabe da derrota lealista foi marcante no sentimento que conseguiu transmitir. Finalmente, no 3º acto, quando sonha com Tosca, na ária E lucevan le stelle, deu-nos uma interpretação de um lirismo avassalador e uma qualidade insuperável!





Foi uma daquelas récitas mágicas, acima das melhores expectativas (que já eram altas), em que um conjunto perfeito de maestro, orquestra, coro e solistas, nos recordaram que, por vezes, podemos assistir a espectáculos de ópera que justificam o fanatismo de alguns!



*****



TOSCA - Royal Opera House, London, July 2011

Tosca is an opera by Giacomo Puccini with libretto by Giuseppe Giacosa and Luigi Illica, according to Victorien Sardou’s La Tosca, 1887.
One of the best operas of the composer, Tosca portrays a story of love, revenge, cruelty and death occurred in Rome in June 1800, with the background of the Napoleonic wars and the revolutionary times lived then. The story can be read in Portuguese here

It was with great excitement that I saw again this magnificent production of Jonathan Kent, with two of the three main soloists, Gheorghiu (Tosca) and Terfel (Scarpia), repeating the roles. Different were the conductor (Pappano) and Kaufmann (Cavaradossi).
If two years ago I had been impressed by the performance, what can I say this time? It was a perfect one. Let's see why:

Antonio Pappano directed the excellent Orchestra of the Royal Opera House in a sublime way. The magnificent stormy orchestration that Puccini put in the work to set the pace of the action was evident. The several arias and duets were also fantastic. The Choir of the Royal Opera was at the highest level, which was particularly evident in the Te Deum at the end of the 1st act.

Angela Gheorghiu, Romanian soprano, as a person, has often attitudes of profound disrespect for the public, with frequent cancellations at the last minute. I was recently the victim of one of them here.
However, I've written several times that I really like her voice. And this time, she was fantastic, it was her best interpretation that I have heard. Her Tosca transmitted jealousy, passion, anguish, anger, revenge and despair over the performance. The voice is strikingly beautiful and has a unique timbre. The vocal range is remarkable, as is the legato. Her top notes are easy, do not lose quality, and the pianissimi are of great quality. On stage she was fully credible. The costume designs also helped a lot. In the 2nd act aria Vissi d'arte she sang with overflowing emotion and sadness. What a superior
interpretation.
Bryn Terfel, Welsh bass-baritone, who I thought was not at his best two years ago, this time was an unbeatable Scarpia. In addition to the outstanding artistic performance as the villain (the figure and the costumes also matched), the voice was exquisitely evil. The timber is beautiful, he never screams, and always sings in a beautiful harmonic way, perfectly suited to the character.

I'm suspicious about German tenor Jonas Kaufmann because I count myself among his unconditional fans. His diverse performances that I have seen are responsible for my opinion. He is also a simple, accessible and friendly man, with whom I had the luck to meet a few months ago here in London, which contributed to the opinion I have of him.
I think that Cavaradossi is one of his favourite roles, and this was evident in the performance. His figure fits the role perfectly. Artistically, he is also convincing.
But most important is the voice that is of a unique beauty and has very particular features. Only a few seconds are sufficient to identify him. This only happens with very few singers. The lower notes are excellent, baritonal, but the top notes are equally powerful, bright, open and always in tune.

The aria Recondita armonia was wonderful and made us expect a fantastic night. In the aria Mia gelosa, also in the 1st act, he was soft and reassuring in the expression of his love for Tosca. In the 2nd act, after the expression of excruciating torture he had suffered, his Vittoria after knowing the defeat of Loyalists was touching in the message transmitted. Finally, in the 3rd act, when he dreams of Tosca, in the aria E lucevan le stelle, he gave us a lyrical interpretation of an overwhelming and unsurpassed quality!
It was one of those performances that surpassed my best expectations (which were high). The sum of a perfect conductor, orchestra, choir and soloists remind us that, sometimes, we see opera performances that justify the opera fanaticism of some of us! 

*****

19 comentários:

  1. Caro FanaticoUm,
    Ainda bem que a Gheorghiu não cancelou! E que pôde assistir a uma récita, ao que me parece, memorável. Fico contente.

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  2. Caro Paulo,
    É verdade, ainda bem que tal não aconteceu. Como sabe, apesar do seu comportamento de diva inadmissível nos dias de hoje, tenho uma admiração muito particular pela sua voz.
    Estava quase certo que ela não cancelaria desta vez por cantar com o Kaufmann (raramente cancela com ele) mas, sobretudo, porque a récita foi gravada para posterior difusão.
    Mas confesso que, mesmo que cancelasse, só o facto de poder apreciar o Terfel e o Kaufmann já teria valido a pena. Assim foi perfeito.

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  3. Tem aí material para um ano inteiro sem mais óperas!! O que eu gostava de ter visto esta mesma produção!...

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  4. Caro Plácido,
    Foi uma récita emeorável, de facto. Mas estes três dias em Londres foram plemos em excelentes espectáculos e outras surpresas inesperadas.
    Bervemente, tudo aqui no blogue.

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  5. Caro FanaticoUm,

    Como gostava de ter revisto esta produção também. Vi-a em 2006 com os mesmos intérpretes principais à excepção de Kaufmann (Marcelo Alvarez na altura) e foi especial, no dia do meu aniversário e poucos minutos depois de Portugal vencer a Inglaterra, salvo erro, nos quartos de final.

    O Kaufmann é realmente insuperável, de momento, nestes papéis que tem vindo a representar ultimamente (salvo a excepção do Siegmund...) e ter actuado imenso sem comprometer a voz. O mesmo gostava de dizer de Terfel que, infelizmente, hoje em dia, não temos muitas oportunidades de o ouvir em palco.

    Caro Placido,
    Não estivemos lá mas pelo menos gravaram em DVD e poderemos vivenciar, em breve, um pouco do que o FanaticoUm viveu nesta récita que, pela descrição, deverá ter sido memorável.

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  6. Me puedo imaginar que debió ser fantástica, tal y como la describes, y además con ese trío de voces tan espectaculares.
    De los tres, solo he escuchado en directo a Angela Gheorghiu,una soprano que me encanta.
    Tengo muchas ganas de escuchar a Kaufmann en vivo, en la actualidad, una de las mejores voces de tenor.

    Me hubiera gustado estar en esta "Tosca",una ópera que me apasiona y con unos cantantes que son de mís favoritos.

    Gracias FanaticoUm por esta crónica magnífica. Me alegro que difrutaras tanto y que además compartas con nosotros esa tarde y esas magníficas fotos.

    Un abrazo,

    brunilda

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  7. @ brunilda,
    Obrigado pelo comentário. A Tosca é a minha ópera favorita de Puccini e uma das que mais gosto de entre todas as que conheço.
    Foi um espectáculo memorável. A encenação excelente, o maestro e a orquestra também e os solistas fabulosos.
    Se só conhece Angela Gheorghiu sugiro que não perca a oportunidade de ver quer Jonas Kaufmann, quer Bryn Terfel. São dois dos melhores cantores da actualidade e ambos têm uma presença fabulosa em palco. São actores que cantam (e de que maneira!).
    Saudações musicais

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  8. Caro FanaticoUm

    Como sabe, não sou grande apreciador de Puccini (ninguém é perfeito). No entanto, fico muito feliz por si, uma vez que assistiu a uma récita que lhe "encheu as medidas". Há uns dias imaginei que assistiria a esta Tosca depois de ler um comentário seu no Outras Escritas.
    De todos os cantores presentes na récita, é Kaufmann que me desperta mais curiosidade. De Gheorghiu, aprecio-lhe o timbre, mas como a probabilidade de cancelamento é elevada não está nos meus planos viajar de propósito para ouvi-la. Para além disso, a cantora não se aventura no "meu repertório", como bem sabe.
    Cumprimentos musicais. Fico a aguardar mais novidades de Londres.

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  9. Caro Alberto,
    Obrigado pelo seu comentário. A Gheorghiu não se aventura no ser reportório, mas Kaufmann também não. E tem uma voz grave, baritonal (que também não aprecia), mas com agudos luminosos. Contudo, acho que ficará muito positivamente agradado quando o ouvir ao vivo. É um cantor fantástico e a voz, justamente por ter estas características particulares, é de uma beleza impar.
    Ninguém é perfeito, é verdade e, como já deve ter lido, Kaufmann também tem muitos detractores, sobretudo na Alemanha, sua terra natal. Acusam-no de escurecer intencionalmente a voz. Pessoalmente acho que a acusação é disparatada pois rapidamente ficaria sem ela.
    Brevemente, mais novidades de Londres, com algumas surpresas, mas mais Puccini de novo (lamento).
    Cumprimentos musicais

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  10. Nice, Gegheorgiu didn't cancell!

    There're some heavy critics against Kaumann in Germany. But whenever I hear other tenors, especially young ones, I can understand why Kaufmann is one of the most sought after singer in our time. It has nothing to do with looking.
    Many of young tenors struggle in the high register. Kaufmann doesn't. Also his staging presence is remarkable. What else do opera fans want?

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  11. Dear lotus-eater,

    I know there is criticism against Kaufmann. Most of it comes from Germany, his homeland. In your blog, we can find a lot of it. From opera goers from other countries, we read only words of admiration, not criticism. It is a very interesting issue sociologically.

    If I were German, I would be proud of having a German singer with such a tremendous international success. As you can imagine, such a success is not achieved only with good looks! Kaufmann is one of the very best tenors of our times.

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  12. Caro fanático,
    a Tosca era uma das óperas favoritas do meu falecido pai. Ele nos obrigava, nos finais de semana, a ouvir trechos de obras clássicas com a finalidade de nos educar. Eu ouvia árias da tosca, de Aída, de o Guarani de Carlos Gomes...
    Obrigado por mais essa excelente crítica!
    Um abraço

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  13. Buscando crónicas de esta Tosca me he encontrado con tu blog y me he leido todos tus posts sobre JK ;)
    Estamos completamente de acuerdo, fue increible la función ! Dentro de unos años podremos decir.."Yo estuve allí" ;)
    Vi varias funciones en Londres y estoy escribiendo las crónicas por orden, asi que mi post sobre Tosca tardará un par de dias pero
    me encantaria recibir tu visita (y la de tus lectores !) en mi blog :
    http://noticiasinutilesopera.blogspot.com

    Obrigada !!

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  14. @ Kenderina,
    Passarei a visitar o seu blogue e, como assistimos às mesmas óperas agora em Londres, lerei com muito interesse a sua opinião.
    Cumprimentos de Portugal

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  15. Olá, Fanático!
    Com com o maior prazer que li mais esta crónica! A récita deve ter sido fabulosa, realmente ficamos todos invejosos, bem se nota que todos gostávamos muito de ter assisitido...
    A Tosca é uma ópera maravilhosa e arrebatadora. Cavaradossi, Floria e Scarpia formam um triângulo único nos palcos operáticos, acho que é um dos mais belos dramas para se ouvir e ver.
    Continuação de boas récitas em Londres!!!

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  16. Cara Elsa,

    Foi, de facto, excelente. Brevemente escreverei sobre os outros espectáculos.
    Cumprimentos

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  17. Fanático,

    Parabens pela excelente récita que assistiu e pela excelente crítica.

    É realmente difícil imaginar um casting melhor do que esse para Tosca.

    Ontem assisti uma récita de Nabuco aqui no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Hoje a noite vou escrever a crônica e lhe envio para publicação. Adianto que superou em muito as minhas expectativas (que, ok, não eram muito altas). Foi o melhor espetáculo que tivemos aqui no Rio de Janeiro nos últimos anos, na minha opinião.

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  18. Caro Eduardo,
    Ficaremos à espera das notícias da ópera no Rio de Janeiro, o que será uma estreia absoluta neste blogue.

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  19. Vou ver esta ópera na Wiener Staatsoper esta sexta-feira. Obrigado pelo texto!

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