sábado, 29 de abril de 2017

DIE MEISTERSINGER VON NÜRNBERG, Royal Opera House, Londres / London, Março / March 2017


(review in English below)

Embora assinado por mim, o presente texto resulta da opinião consensual de 3 dos fanáticos que escrevem para este blogue.



Os Mestres Cantores de Nuremberga, opera cómica de Wagner, foi levada à cena na Royal Opera House de Londres numa nova produção de Kasper Holten, na sua despedida de director da opera em Covent Garden. A Royal Opera abriu os cordões à bolsa para custear uma produção extravagante, cheia de adereços mas sem grande interesse ou sentido, não relatando o que consta do libreto. Em época de restrições, a verba despendida teria sido mais bem empregue na encenação menos espalhafatosa de 2 ou 3 outras óperas (como, por exemplo, a da Madama Butterfly que está também em cena na ROH).



O 1º acto decorre num clube de cavalheiros e não na igreja. A cena em vez de abrir com um coral de final de missa, abre com uma situação de aparente ensaio de um coro, em que um maestro de direcção muito viva aproveita os momentos orquestrais para se virar para Hans Sachs que ouve o coral e o segue com partituras e, em surdina, quer saber a sua opinião sobre como está a interpretação. O cenário é de bom gosto, madeirado, e tudo, embora diferente, começa a parecer interessante. Walther aparece vestido como um motard, de cabelos sebosos e penteados para trás, nada condicente com a sua posição aristocrática. A acção evolui para a altura em que David explica as melodias e poemas que fazem parte das normas dos Mestres. David e os aprendizes são criados do clube. Durante esta passagem, esses criados o que fazem é montar mesas circulares para um jantar que no fundo vai ser o jantar de trabalho dos Mestres e onde Pogner vai anunciar o prémio do concurso de canto do dia seguinte - Eva, a sua filha e, com ela, a sua herança. Eva senta-se num pedestal em forma de taça, expondo-se como o troféu do concurso.
Pogner entra com Sixtus, os outros a seguir, vestidos formalmente e com aventais maçónicos, acompanhados pelas esposas que se despedem e saem porque aquela reunião é só para homens. Até ao final do acto, os pormenores de encenação são múltiplos e atrevo-me a dizer que cada Mestre tem uma história paralela à acção principal - um engasga-se a certa altura e os outros ajudam, um apalpa o rabo a uma das criadas, enfim... Na prova de canto de Walther temos o Sixtus a marcar os erros em ardósia, como é clássico.

(Fotografia / Photo: Clive Barda)

A partir do 2º acto entramos na incoerência e loucura totais. Começa ainda na sala do clube mas com Sachs sentado e Pogner com uma mão na cabeça, simbolizando o seu receio e preocupação sobre se a sua decisão sobre o prémio é a mais correcta. o que depois surge normalmente na voz e canto. Toda a acção volta a ser nessa sala do clube e há a sugestão da casa original de Sachs ser do lado esquerdo do palco e a de Pogner do lado direito (mas não passa de uma leve sugestão). David traz um sapato, um molde e um martelo e lá vem o Sixtus que, em vez de tocar alaúde, toca como que num pequeno teclado tipo cravo (mas que não soa a cravo!). Há a mudança da Eva por Madalena para a serenata enganada do Sixtus, Eva e Walther que planeiam fugir, estão no palco na escadaria da sala que entretanto se fecha ligeiramente no centro. 
Toda a cena de Sachs a martelar os erros de Sixtus, embora muito bem interpretada, começa a parecer ridícula na encenação. Holten põe os Mestres como pertencentes a um clube moderno (pelo menos do séc. XX e não de época medieval) e depois mantém um Sachs que, vestido modernamente, é um mero sapateiro... A rua não se vislumbra nesta encenação e o barulho que acordaria os habitantes da cidade que nela se reuniriam aqui é substituído por uma cena ridícula e extravagante (que deve ser a imaginação dos Mestres) em que aparecem seres com cabeças de animais e alguns com grandes pénis em erecção, até simulando relações sexuais. O guarda nocturno que termina com a confusão tem patas de cavalo e penas no tronco. Enfim, um total disparate!


O palco vai rodando e o que seria a casa de Sachs começa a ver-se – parece um grande armazém com andaimes, cabos e luzes. Holten quer contrastar o quê aqui? Faz uma encenação no 1 o acto de bom gosto e a casa de Sachs é esta porcaria porquê?

(Fotografia / Photo: Clive Barda)

O 3o acto ainda é pior. Quando a acção se volta para a altura do festival, este é feito na mesma estrutura do clube do 1º acto, agora com uma espécie de anfiteatro em madeira onde se sentam várias pessoas em trajes formais. Na porta temos uma faixa a dizer Festa do dia de São João. Antes da entrada dos Mestres, os elementos operários da cidade vão entrando em trajes de festa, como é esperado nesta ópera, mas parecem transportados da idade média e não para aquele tempo em que Holten a colocou. As danças são foleiras apesar de Holten pôr as pessoas que assistem a bater palmas (o que perturba muito a audição musical), e a entrada dos Mestres também não é excelente... Um conjunto de 6 trompetes a meio do anfiteatro quase ensurdece quem lá está sentado e impede a audição da orquestra. Só se salva o facto de Sachs aparecer no meio do povo e não pela porta de onde entram os outros (percebe-se a clássica associação de Sachs como o mestre mais "próximo do povo", mais sábio, mais experiente de vida).

(Fotografia / Photo: Clive Barda)

Enfim, uma encenação que faz justiça à expressão “Eurotrash”!

Mas se o que se viu foi para esquecer, o oposto aconteceu com o que se ouviu.



António Pappano dirigiu a Orquestra com grande nível, fazendo as nuances todas que se espera nas partes dramáticas e cómicas mas, ocasionalmente, foi um pouco rápido, perdendo a solenidade desses momentos.



Em relação aos cantores as interpretações foram muito homogéneas e de altíssima qualidade.

O tenor galês Gwyn Hughes Jones interpretou o Walter von Stolzing de forma superlativa. A voz tem um timbre belíssimo, sempre bem colocada e audível sobre a orquestra. Em cena foi também muito convincente. Fantástico.



A soprano norte americana Rachel Willis-Sorensen foi uma Eva expressiva e bem audível, apesar de aqui e ali roçar a estridência.



A Magdalene da polaca Hanna Hipp foi também notável cénica e vocalmente.



Outro excelente intérprete foi o tenor britânico Allan Clayton como David. A voz é bem timbrada, ágil e sempre audível de forma muito agradável. Um cantor a seguir.



O barítono alemão Johannes Martin Kränzle fez um Sixtus Beckmesser excepcional na interpretação vocal e cénica. Foi sublime no último acto.



Fritz Kothner foi soberbamente interpretado pelo barítono austríaco Sebastian Holecek. Possuidor de uma poderosíssima voz grave de belíssimo timbre foi, para mim, o melhor intérprete da noite.



O baixo dinamarquês Stephen Milling fez um Veit Pogner convincente.



Deixo para o fim o sapateiro Hans Sachs que foi interpretado pelo baixo barítono galês Bryn Terfel, o nome mais sonante do elenco. Esteve muito bem no primeiro acto, menos bem no 2º onde demonstrou algumas pequenas falhas, bem disfarçadas pela sua experiência e, também na primeira parte do 3º acto algo parecia não estar bem. E assim aconteceu, foi substituído na segunda parte do 3º acto pelo barítono britânico James Rutherford que foi uma lufada de ar fresco, interpretando o papel ao mais alto nível.











Foi pena que a excelência vocal e interpretativa de todos não tenha conseguido fazer esquecer este falhanço conceptual da encenação.

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DIE MEISTERSINGER VON NÜRNBERG, Royal Opera House, London, March 2017

Although signed by me, this text results from the consensus opinion of 3 of the fanatics who write for this blog.

Die Mastersinger von Nürnberg, Wagner's comic opera, could be seen at the Royal Opera House in London in a new production of Kasper Holten in his farewell as director of the opera in Covent Garden. The Royal Opera opened the purse strings to pay for an extravagant production, full of props but without much interest or meaning, well away of what is in the libretto. In time of restrictions, the money spent would have been better spent on the more sober staging of 2 or 3 other operas (such as the staging of Madama Butterfly, which is also on stage at ROH).

The first act takes place in a gentleman's club and not in the church. The scene instead of opening with a late Mass choir, opens with an apparent rehearsal of a choir, in which a very vivid conductor takes advantage of the orchestral moments to turn to Hans Sachs who hears the choir and follows the scores. He ultimately wants to know his opinion on the choir and how is the interpretation. The scenery is pleasant with nice woods and everything, though different, begins to look interesting. Walther appears dressed like a motorcycle enthusiast, with greasy hair and hairstyles backwards, nothing in accordance with his aristocratic position. The action evolves to the point where David explains the melodies and poems that are part of the rules of the Masters. David and the apprentices are employers of the club. These servants set up round tables for a dinner that will be the master's work dinner. Pogner will announce the prize of the next day's singing contest - Eva, his daughter. Eva sits on a cup-shaped pedestal, exposing herself as the trophy of the contest.
Pogner enters with Sixtus, the others follow, formally dressed and with masonic aprons, accompanied by their wives who say goodbye to them and leave because that meeting is only for men. By the end of the act, the details of staging are multiple and I dare to say that each Master has a history parallel to the main action - one chokes at a certain point and the others’ help, one shakes the butt at one of the maids… In the song contest of Walther we have Sixtus to mark the errors on slate, as it is classic.

From the second act on we enter into total incoherence and madness. It starts in the club room but with Sachs sitting and Pogner with a hand on his head, symbolizing his fear and concern about whether his decision on the prize is the most correct, what is naturally expressed in the voice and song. All the action returns to this club room and there is the suggestion that the house of Sachs is on the left side of the stage and the one of Pogner on the right side (but it is only a slight suggestion). David brings a shoe and a hammer. Sixtus instead of playing the lute, plays a little harpiscord-like instrument (but that does not sound like a lute!). The exchange between Eve and Madalena happens to the deceived serenade of Sixtus. Eve and Walther who plan to flee are on stage in the staircase of the room which in the meantime closes slightly in the center. The whole scene of Sachs hammering the mistakes of Sixtus, although very well interpreted, begins to appear ridiculous in the staging. Holten puts the Masters as belonging to a modern club (at least of the twentieth century and not of medieval times) and then maintains a Sachs who, dressed modernly, is a mere cobbler... The street is not glimpsed in this staging and the noise that would wake up the inhabitants of the city is replaced by a ridiculous and extravagant scene (which must be the imagination of the Masters) in which being to appear people with heads of animals and some with large penises in erection, some even simulating sexual intercourse. The night guard who ends the mess has horse parasols and feathers on the trunk. Anyway, a total nonsense!
The stage is spinning and what would be the house of Sachs begins to be seen - it looks like a large warehouse with scaffolding, cables and lights. Holten wants to contrast what here? He stages an interesting 1st the act but Sachs´s house is this garbage?

The 3rd act is even worse. When the action turns to the festival, this is done in the same structure as the 1st act club, now with a kind of wooden amphitheater where several people sit in formal dresses. At the door we have a banner to say St. John's Day. Before the Masters enter, the workers of the city enter with party dresses as is classic in the opera, but seem transported from the middle ages and not to that time when Holten put the action on. The dances are tame, though Holten puts the people applauding (which disturbs the musical hearing), and the entrance of the Masters is also not excellent ... A set of 6 trumpets in the middle of the amphitheater of the opera house almost deafens those sitting there and prevents the hearing of  the orchestra. Only one detail is appropriate - Sachs arises from the middle of the people, not from the door from which the other Masters enter (Sachs association with the people is perceived as the wisest, most experienced master of life).

In short, a staging that does justice to the expression "Eurotrash"!

But if what was seen was to forget, the opposite happened to what was heard.

Antonio Pappano directed the Orchestra with great quality, offering the nuances all that are expected in the dramatic and comical parts, but occasionally he was a little faster, losing the solemnity of those moments.

Concerning the singers the interpretations were very homogeneous and of very high quality.

Welsh tenor Gwyn Hughes Jones played Walter von Stolzing superlatively. The voice has a beautiful timbre, always on tune and audible over the orchestra. On stage he was also very convincing. Fantastic.

American soprano Rachel Willis-Sorensen was an expressive well audible Eva, although here and there to rub stridency.

Polish soprano Hanna Hipp was a remarkable Magdalene, scenic and vocally.

Another great performer was British tenor Allan Clayton as David. The voice has a nice timbre and is agile and always audible in a very pleasant way.

German baritone Johannes Martin Kränzle made an outstanding Sixtus Beckmesser both in vocal and scenic performance and was sublime in the last act.

Fritz Kothner was superbly played by the Austrian baritone Sebastian Holecek. A very powerful, deep voice of beautiful timbre was, for me, the best singer of the night.

Danish bass Stephen Milling was a convincing Veit Pogner.

I leave to the end the cobbler Hans Sach that was interpreted by the welsh bass baritone Bryn Terfel, the most sound name of the cast. He did very well in the first act, less well in the 2nd, where he showed some minor flaws well disguised by his experience, and also in the first part of the 3rd act, something seemed not well. And, in fact, so it was. He was replaced in the second part of the 3rd act by baritone James Rutherford that was a breath of fresh air, interpreting the character to the highest level.

It was a pity that the excellent vocal performance of all singers did not succeed in forgetting this conceptual failure of the staging.


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2 comentários:

  1. A encenação, infelizmente, não prestou. Foi cara e elaborada, até porque era a encenação de despedida do diretor da ROH, mas a imaginação abandonou-o nos segundo e terceiros atos, o que contrasta com o primeiro, que até foi bom. Este constraste desvaloriza ainda mais a encenação no seu conjunto, porque a falta de continuidade faz desconfiar de que tenha existido uma “ideia” no próprio primeiro ato.
    À exceção do primeiro ato, tudo o resto é incipiente e desprovido de sentido, em que – erro gravíssimo! – o que se ouve e o que se vê não tem, quase sempre, correspondência entre si, como se tal não fosse essencial.
    A única coisa que achei interessante aconteceu no final do terceiro ato (mas dela só quem se encontrasse na plateia ou usasse uns binóculos podia aperceber-se e foi algo de que me dei conta apenas quando assisti à ópera uma segunda vez): foi o desgosto de Eva com Walther quando este aceita tornar-se Mestre.
    Numa encenação normal, Eva ficaria contente com tal aceitação, que é o que resulta do contexto da obra e visa demonstrar que, ainda que a novidade deva ser aceite pelo antigo (que é o tema central desta ópera), para que este sobreviva transformando-se, também a novidade deve aceitar o que o antigo tem de positivo, contribuindo para uma evolução em lugar de uma revolução radical que olvide o passado. Walther é a novidade radical, que não percebe o antigo. Beckmesser representa o antigo, que despreza aprioristicamente a novidade que o assusta. Sachs é a reunião perfeita do velho e do novo, enfim, da Razão. Já Eva nada é ou representa. É um objeto de que se pode dispor e que aceita, pelos sentidos que não pela razão, a novidade porque é mais sedutora do que a Razão de Sachs.
    Pegando nesta desvalorização do papel da Mulher representada em Eva, o encenador quis explorar o papel daquela e revelar o problema da misogenia da sociedade. Por isso colocou a acão num clube londrino, símbolo do conservadorismo e espaço fechado à cabeça feminina (talvez não a outros dos seus encantos). Daí a colocação de Eva numa taça, revelando que Eva não tem existência autónoma como ser racional, mas apenas como objeto, sedutor da cobiça e posse masculinas, que na Mulher encontram um momento legítimo de irracionalidade (taz por isso as pessoas se transformem em bichos grotescos no final do segundo ato).
    Isto é, depois, contrastado com o comportamento da mulher-objeto. Quando Walther não quer aceitar tornar-se Mestre, Eva mostra-se apoia a sua decisão e constância, tudo naturalmente apenas por gestos, visto que não canta. Mas Sachs convence-o a aceitar. E Walther, em vez de aceitar, comedidamente, tornar-se naquilo que não é por natureza ou nascimento, mas apenas por respeito à sageza do conselho de Sachs, subitamente aceita sê-lo, fazendo-o como herói, com cega soberba, como se nunca tivesse querido ser outra coisa. A reação de Eva é a revolta, porque confirma que também Walther a coisifica, e abandona o troféu, que deixa vazio, revelando que foi traída, não fisicamente, mas racionalmente. Se Walter nem sequer se apercebe da reação de Eva, é afinal um Homem que põe e dispõe, Sachs, pelo contrário, reconhece os motivos de Eva e, como sábio, conclui, provavelmente, que também ele tinha de perceber este sinal da "coisa nova", que é, afinal, Eva – a força renovadora natural – e não Walther – uma força renovadora que, como quase todas, é fraca e se deixa corromper e vencer por pressões exteriores.
    Os sinais desta leitura do encenador e que são transportados para a encenação são muito ténues e apenas surgem, de forma um pouco mais evidente, já na parte final de uma ópera de 4h30m e unicamente através da linguagem gestual dos cantores-atores. Porém, como se sabe, uma linguagem gestual fina deste tipo é própria do cinema dos close-ups e não do teatro… Por isso também a encenação falhou redondamente!

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    1. Caro Anónimo,
      Obrigado por este seu texto tão enriquecedor. Espero que seja lido por muitos "bloggers", apesar de aparecer já alguns dias após o "post".

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