sexta-feira, 12 de setembro de 2014

SALOME, A INSACIÁVEL DO MUNICIPAL. CRÍTICA DE ALI HASSAN AYACHE NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.





O texto bíblico é tema e inspiração de diversas óperas e uma das mais impactantes é Salome. Primeiro virou uma peça teatral de Oscar Wilde para depois se transformar na monumental ópera de Richard Strauss. Ambas sucesso mundial e ambas em cartaz até hoje nos teatros do mundo afora. Os motivos do sucesso são diversos, um dos principais é a densidade dramática dos quatro personagens principais. Cada um a sua maneira impactante, com personalidades fortes e interesses próprios.

É de se estranhar que os dois maiores teatros líricos do Brasil apresentem Salome quase que simultaneamente em produções diferentes. Estranhezas e politicagens a parte a versão do Theatro Municipal de São Paulo que estreou no último dia 06 de Setembro esteve a altura de uma produção internacional onde as qualidades em diversos quesitos foram superlativas.

Por incrível que pareça a direção do teatro escalou uma diretora brasileira para a ópera em um elenco onde os solistas principais são estrangeiros. A competente Livia Sabag sempre mostrou grande criatividade e foi eleita melhor diretora do ano de 2013 desse blog por títulos como L'Enfant et les Sortiléges, O Rouxinol e The Turn of the Screw. Diretora de ópera em evolução permanente sua Salome é marcada pela audácia.




Começou conservadora e atenta aos detalhes, como disse o grande crítico de ópera Marcus Góes "Salome de Strauss dispensa sócios inovadores, nus a la playboy, Herodes bichona, Herodíade sapatona e Salome mostrando tudo e muito mais como se tem visto por aí". Sabag não cai nessas armadilhas modernosas e usa a criatividade. A movimentação e o gestual dos solistas mostram as sutilezas do enredo, como o chefe da guarda cheirando apaixonado o véu de Salome e o sangue que escorre dele até chegar aos pés do rei Herodes.

Os cenários de Nicolás Boni e os figurinos de Veridiana Piovezan são de rara beleza e contribuem para a evolução da direção cênica. Até a Dança dos Sete Véus a direção não apresenta nada de inovador, a audácia da diretora aparece na peça mais famosa da ópera. O palco se abre, aparecem sete mulheres dançando com rostos cobertos por véus em primeiro plano e no segundo plano sete mulheres se banham em uma piscina que lembra um banho turco em uma explosão de sensualidade. No segundo momento sete bailarinos dançam em um nível superior do palco. Coitado do rei Herodes, fica confuso e desnorteado tentando encontrar a Salome em meio a beldades. Inovação sensual em uma cena que todas as demais versões dessa ópera fazem a protagonista somente dançar. A coreografia de André Mesquita é simples e direta sem cambalhotas e frescuras características das demais coreografias da casa.

A Orquestra Sinfônica Municipal regida por John Neschling teve a melhor atuação dos últimos anos. Conseguiu consistência e equilíbrio em uma partitura complexa, sonoridade limpa e coesão entre os naipes. A utilização da versão reduzida para orquestra elaborada pelo próprio compositor ajuda a linha vocal. Os tempos escolhidos por Neschling realçam as melodias e toda a densidade dramática da partitura. Conseguiu soar forte sem ser agressiva, fez da massa orquestral exuberante sem encobrir os solistas. Grande apresentação da Orquestra Sinfônica Municipal, mandou bem Joninho.
  
Salome exige diversos atributos da protagonista: Maturidade vocal, interpretação cênica convincente, resistência física, voz de soprano dramático e intensidade em tudo que faz do início ao fim da ópera. Nadja Michael provou que tem todos esses atributos e muito mais, cantou com voz grande, escura e cavernosa. Soprano dramático no sentido literal da palavra dotada de uma projeção que enche a sala. Conseguiu ser lírica em passagens apaixonadas e forte na medida certa em cenas tensas. Sua Salome é amor e ódio, intensa e explosiva. Dotada de um corpão sensual deixa qualquer Herodes babando. Interpretação moderna com canto e atuação cênica unidos em prol da personagem. Sempre insaciável em busca de seu objetivo e como não consegue ouvir um não como resposta o resultado é posse da cabeça de Jochanaan em uma bandeja.
  
O Herodes de Peter Bronder imprimiu voz com bons agudos e interpretação cênica convincente. Estabeleceu com precisão a vontade oculta de possuir a enteada. Algumas vezes seu gestual pareceu exagerado e espalhafatoso.

Mark Steven fez um Jochanaan de voz com graves enormes e impactantes. Sua voz exprimiu toda a repulsa pela sedução sofrida e sua atuação exibiu qualidades amedrontadoras. Firme em seu propósito de não ceder aos caprichos da protagonista o personagem conseguiu ser convincente vocal e cenicamente.

A Herodias de Iris Vermillion cantou com força máxima e exagerou na dose, sua voz se concentrou na região média com um timbre seco. Muitas vezes agressiva e sem expressão.
  

Uma montagem grandiosa com um primeiro elenco de gabarito internacional. O segundo elenco também é de fora, esse poderia ser composto por cantores brasileiros. Existem vários solistas com capacidade para cantar essa ópera com excelente nível no Brasil e que se aprimorariam mais com essa montagem. Pena que a direção do Theatro Municipal de São Paulo dê sempre preferência aos estrangeiros.

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