O texto bíblico é tema e inspiração de diversas óperas e uma
das mais impactantes é Salome.
Primeiro virou uma peça teatral de Oscar Wilde para depois se transformar na
monumental ópera de Richard Strauss.
Ambas sucesso mundial e ambas em cartaz até hoje nos teatros do mundo afora. Os
motivos do sucesso são diversos, um dos principais é a densidade dramática dos
quatro personagens principais. Cada um a sua maneira impactante, com
personalidades fortes e interesses próprios.
É de se estranhar que os dois maiores teatros líricos do
Brasil apresentem Salome quase que simultaneamente em produções diferentes.
Estranhezas e politicagens a parte a versão do Theatro Municipal de São Paulo que estreou no último dia 06 de
Setembro esteve a altura de uma produção internacional onde as qualidades em
diversos quesitos foram superlativas.
Por incrível que pareça a direção do teatro escalou uma
diretora brasileira para a ópera em um elenco onde os solistas principais são
estrangeiros. A competente Livia Sabag
sempre mostrou grande criatividade e foi eleita melhor diretora do ano de 2013
desse blog por títulos como L'Enfant et
les Sortiléges, O Rouxinol e The Turn of the Screw. Diretora de ópera
em evolução permanente sua Salome é marcada pela audácia.
Começou conservadora e atenta aos detalhes, como disse o
grande crítico de ópera Marcus Góes "Salome de Strauss dispensa sócios
inovadores, nus a la playboy, Herodes bichona, Herodíade sapatona e Salome
mostrando tudo e muito mais como se tem visto por aí". Sabag não cai
nessas armadilhas modernosas e usa a criatividade. A movimentação e o gestual
dos solistas mostram as sutilezas do enredo, como o chefe da guarda cheirando
apaixonado o véu de Salome e o sangue que escorre dele até chegar aos pés do
rei Herodes.
Os cenários de Nicolás
Boni e os figurinos de Veridiana
Piovezan são de rara beleza e contribuem para a evolução da direção cênica.
Até a Dança dos Sete Véus a direção não apresenta nada de inovador, a audácia
da diretora aparece na peça mais famosa da ópera. O palco se abre, aparecem
sete mulheres dançando com rostos cobertos por véus em primeiro plano e no
segundo plano sete mulheres se banham em uma piscina que lembra um banho turco
em uma explosão de sensualidade. No segundo momento sete bailarinos dançam em
um nível superior do palco. Coitado do rei Herodes, fica confuso e desnorteado
tentando encontrar a Salome em meio a beldades. Inovação sensual em uma cena
que todas as demais versões dessa ópera fazem a protagonista somente dançar. A
coreografia de André Mesquita é
simples e direta sem cambalhotas e frescuras características das demais
coreografias da casa.
A Orquestra Sinfônica
Municipal regida por John Neschling
teve a melhor atuação dos últimos anos. Conseguiu consistência e equilíbrio em
uma partitura complexa, sonoridade limpa e coesão entre os naipes. A utilização
da versão reduzida para orquestra elaborada pelo próprio compositor ajuda a
linha vocal. Os tempos escolhidos por Neschling realçam as melodias e toda a
densidade dramática da partitura. Conseguiu soar forte sem ser agressiva, fez
da massa orquestral exuberante sem encobrir os solistas. Grande apresentação da
Orquestra Sinfônica Municipal, mandou bem Joninho.
Salome exige diversos atributos da protagonista: Maturidade
vocal, interpretação cênica convincente, resistência física, voz de soprano
dramático e intensidade em tudo que faz do início ao fim da ópera. Nadja Michael provou que tem todos esses
atributos e muito mais, cantou com voz grande, escura e cavernosa. Soprano
dramático no sentido literal da palavra dotada de uma projeção que enche a
sala. Conseguiu ser lírica em passagens apaixonadas e forte na medida certa em
cenas tensas. Sua Salome é amor e ódio, intensa e explosiva. Dotada de um
corpão sensual deixa qualquer Herodes babando. Interpretação moderna com canto
e atuação cênica unidos em prol da personagem. Sempre insaciável em busca de
seu objetivo e como não consegue ouvir um não como resposta o resultado é posse
da cabeça de Jochanaan em uma bandeja.
O Herodes de Peter
Bronder imprimiu voz com bons agudos e interpretação cênica convincente.
Estabeleceu com precisão a vontade oculta de possuir a enteada. Algumas vezes
seu gestual pareceu exagerado e espalhafatoso.
Mark Steven fez
um Jochanaan de voz com graves enormes e impactantes. Sua voz exprimiu toda a
repulsa pela sedução sofrida e sua atuação exibiu qualidades amedrontadoras.
Firme em seu propósito de não ceder aos caprichos da protagonista o personagem
conseguiu ser convincente vocal e cenicamente.
A Herodias de Iris
Vermillion cantou com força máxima e exagerou na dose, sua voz se
concentrou na região média com um timbre seco. Muitas vezes agressiva e sem
expressão.
Uma montagem grandiosa com um primeiro elenco de gabarito
internacional. O segundo elenco também é de fora, esse poderia ser composto por
cantores brasileiros. Existem vários solistas com capacidade para cantar essa
ópera com excelente nível no Brasil e que se aprimorariam mais com essa
montagem. Pena que a direção do Theatro Municipal de São Paulo dê sempre
preferência aos estrangeiros.
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