Uma das minhas
óperas preferidas de Gaetano Donizetti,
Anna Bolena, com libreto de Felice Romani, esteve em cena no Teatro
de São Carlos, Lisboa.
A ópera centra-se
na intriga urdida em Windsor pelo Rei Henrique VIII (Enrico) que, com o
propósito de casar-se com a jovem Jane Seymour (Giovanna), promove a condenação
à morte por adultério da sua segunda mulher, Anna Bolena, por quem estão
apaixonados o pajem Smeton e Lord Percy, seu primeiro amor exilado pelo rei,
que são incriminados na trama.
É uma obra de
notável beleza melódica, recheada de árias, duetos e ensembles expressivos e de grande força dramática que ilustram os
sentimentos e emoções dos protagonistas. Particularmente famosa é a cena final
onde a rainha, à beira da morte e quando se escutam os canhões que anunciam o
casamento de Henrique VIII com Jane Seymour, alterna momentos de lucidez e de
delírio (Al dolce guidami castel natio),
revive o matrimónio com o rei e o seu amor juvenil e, lamenta a morte dos
inocentes e pede perdão para o casal perverso (Coppia iniqua).
Tive o privilégio
de ver e ouvir grandes cantoras neste difícil e desafiante papel, incluindo
Edita Gruberova e Anna Netrebko. A gravação da Callas em Milão (1957) é uma das
minhas referências. Mas quero aqui recordar Mara Zampieri que, em 1984 em
Lisboa, levou ao rubro o público em São Carlos e no Coliseu dos Recreios com a
sua carismática interpretação, em récitas que ainda hoje recordo com emoção. Entre
outros, teve a seu lado mais uma grande senhora da ópera, Fiorenza Cossoto
(Giovanna). O que era e no que se transformou o Teatro Nacional de São Carlos!!
(Mas este tópico fica para outra altura).
A encenação de Graham Vick é desinteressante e não
ajuda em nada o desenrolar da ópera. O guarda-roupa de Paul Brown e a iluminação de Giuseppe
di Iorio tentam fazer-nos crer que estamos no castelo de Windsor mas os
adereços são parcos, repetitivos e não ajudam à fluidez da narrativa. Contudo,
a dominância cromática, vermelho e negro, sugere o desfecho sombrio da ópera.
O maestro Gianpaolo Bisanti foi
excessivamente espalhafatoso e barulhento na direcção da orquestra que tal como
o coro cumpriram sem deslumbrar.
Anna Bolena foi
interpretada pela soprano romena Elena
Mosuc. Tem uma voz bem audível, apesar de o timbre não ser particularmente
bonito. Mas o problema foi a opção da cantora na abordagem da personagem porque
sacrificou a suavidade e musicalidade vocais em detrimento do volume, o que é
fatal em Donizetti. Contudo, na ária Al
dolce guidami esteve muito bem. Foi
pena não ter feito opção idêntica em todas as outras intervenções.
Jennifer Holloway, mezzo Norte Americana, foi uma Giovanna de voz
muito agradável e melodiosa, apaixonada mas corroída pelo remorso perante a
rainha. A figura da cantora também ajudou. Brilhou no dueto no início do 2º
acto, O mia Regina!, mas esteve
sempre bem.
Burak Bilgili, baixo-barítono turco fez um Enrico credível como
rei tirano, apesar de a voz não ter uma amplitude assinalável. Contudo não
deixou de se ouvir e manteve a qualidade ao longo da récita. Cenicamente foi
menos interessante.
O tenor italiano Leonardo Cortellazzi foi uma agradável
surpresa como Lord Percy. Tem uma voz limpa, ágil e bem projectada. O timbre é
muito bonito deu elevada credibilidade à personagem. Cantou e representou e,
para mim, foi o melhor em palco.
A mezzo norueguesa Lilly Jørstad fez um Smeton vocalmente correcto, bem audível, afinado
e com boa presença cénica.
O tenor Marco Alves dos Santos como Hervey e o barítono
Luís Rodrigues como Lord Rochefort foram
as presenças portuguesas que não destoaram dos restantes.
***
ANNA BOLENA - Teatro São Carlos, Lisbon, February 2017
One of my favorite operas by Gaetano Donizetti, Anna Bolena,
with libretto by Felice Romani, was
on stage at the Teatro de São Carlos, Lisbon.
The opera focuses on the intrigue devised at Windsor by King
Henry VIII (Enrico), who, for the purpose of marrying young Jane Seymour
(Giovanna), promotes the condemnation to the death by adultery of his second
wife, Anna Bolena, for whom are in love the page Smeton and Lord Percy, his
first love exiled by the king, who are incriminated in the plot.
It is a work of remarkable melodic beauty, full of expressive
arias, duets and ensembles of great dramatic force that illustrate the feelings
and emotions of the protagonists. Particularly famous is the final scene where
the queen, on the verge of death and when she can hear the cannons announcing
the wedding of Henry VIII with Jane Seymour, alternates moments of lucidity and
delirium (Al dolce guidami castel natio),
revive her marriage with the king and her juvenile love and, mourns the death
of the innocent and asks forgiveness for the perverse couple (Coppia iniqua).
I had the privilege of seeing and hearing great singers in
this difficult and challenging role, including Edita Gruberova and Anna
Netrebko. The recording of Callas in Milan (1957) is one of my references. But
I want to remember Mara Zampieri who, in 1984 in Lisbon, took to the public in
São Carlos and in the Coliseu dos Recreios with her charismatic interpretation,
in performances that still I remember with emotion. Among others, she had at
her side another great lady of the opera, Fiorenza Cossoto (Giovanna). What was
and what became the National Theater of San Carlos in Lisbon!! (But this topic
is for another time).
Graham Vick's
staging is uninteresting and does not help the opera in any way. Paul Brown's costumes and lighting by Giuseppe di Iorio try to make us
believe we are in Windsor Castle but the props are meager, repetitive and do
not help the flow of the narrative. However, the chromatic dominance, red and
black, suggests the dark ending of the opera.
Maestro Gianpaolo
Bisanti made excessive movements and noises in the direction of the
orchestra that, as the choir, were acceptable.
Anna Bolena was performed by Romanian soprano Elena Mosuc. She has a very audible
voice, although the tone is not particularly beautiful. But the problem was the
singer's choice in approaching the character because she sacrificed vocal
softness and musicality to the detriment of volume, which is fatal with
Donizetti. However, in the aria (Al dolce
guidami) she was very well. It was unfortunate not to have made the same
choice in all other interventions.
Jennifer Holloway,
North American mezzo, was a very pleasant and melodious Giovanna, passionate
but eroded by the remorse before the queen. The figure of the singer also
helped. She was excellent in the duet at the beginning of the 2nd act, O mia Regina!, but she was always well.
Burak Bilgili,
Turkish bass-baritone made a credible Enrico as tyrannical king, although the
voice did not have a remarkable amplitude. However, he could always be heard
and maintained the quality throughout the performance. Cenically he was less
interesting.
Italian tenor Leonardo
Cortellazzi was a pleasant surprise as Lord Percy. He has a clean, agile
and well projected voice. The tone is very beautiful and he gave high
credibility to the character. He sang and performed and, for me, was the best
on stage.
Norwegian mezzo Lilly
Jørstad made a vocally correct, well audible, tuned Smeton with good scenic
presence.
Tenor Marco Alves dos
Santos as Hervey and baritone Luís
Rodrigues as Lord Rochefort were the Portuguese presences singing at the
same level of quality as the others.
***
Obrigado, Fanático_Um ! Restaurou-me alguma esperança, depois de ler Jorge Calado no Expresso desancar na produção de alto a baixo. Espero que se salvem momentos, como os que cita, já que perdi as ilusões quer no cenário de Vick, quer na voz de Mosuc. Quem me manda ter ilusões ?
ResponderEliminarMário, não li a crítica do Jorge Calado propositadamente, não quis influências de quem respeito porque esta é uma das minhas óperas favoritas de Donizetti.
EliminarA encenação é para esquecer, a Mosuc poderia fazer muito melhor mas, no cômputo final, o espectáculo é aceitável porque reúne um grupo de cantores decentes (o que, para o São Carlos nos últimos tempos, é já algo de positivo). Não espere nada de empolgante mas é melhor do que a Manon Lescaut que vimos recentemente em Londres.
Já agora, o vibrato e os agudos da Mosuc são tão feios como Jorge Calado descreve ? Ele às vezes exagera...
EliminarA voz é banal mas o problema principal foi a "opção" da cantora. Privilegiou a força (e os agudos saíram frequentemente estridentes e feios) sacrificando a suavidade e musicalidade, o que é particularmente mau no belcanto.
EliminarQue a Sra. Mosuc já não está no auge da sua carreira, isso ninguém discute. Agora comparar esta com a produção de 84? Por favor!! Poupem-me o disparate. Eu estive em duas das recitas e Zampieri era inaudível comparada com Mosuc. Um canto completamente desafinado, sem vibrato, e totalmente fora estilo. Zampieri é uma grande cantora mas nunca em bel canto, e certamente não na Bolena que ofereceu a Lisboa. (Para quem não ouviu basta ir ao Youtube, existem vários exemplos). Enfim, e já para não falar de Cossotto que estava num estado lastimável.
ResponderEliminarTambém estive em duas das récitas com a Zampieri e, lamento, mas discordo do que afirma. A Zampieri nunca teve vibrato, é verdade, mas não era, de todo, inaudível. Pode não ter gostado do estilo, mas que fez um enorme sucesso, fez. E nessa altura, o público sabia diferenciar as boas interpretações das banais. Quanto à Cossoto, estamos mais de acordo.
EliminarAinda bem que as coisas correram melhorzinho nesta récita. Tal como se apresentou anteriormente, foi uma lástima! Aproveito para perguntar se, nesta récita, também houve um uso barulhento e intrusivo de equipamento - suponho que ar condicionado?
ResponderEliminarNão me apercebi de nada e até fiquei surpreendido com as rotações no palco, silenciosas. Barulho (e muito) vinha do maestro.
EliminarOuvia-se bem, o ar condicionado! Mas afinal gostei muito, encenação, canto e orquestra... A Anna Bolena também gostaria. Comentário no meu <>Livro<>.
ResponderEliminarHouve sim. Um barulho ensurdecedor do ar-condicionado. Um tipo tem de se abstrair dele: como é rouco e constante, dá para fazê-lo. Mas, sim: foi mais um cantor. E na récita toda. Por isso, leva um bravo!
ResponderEliminarJá quanto à récita. 1. Encenação: banal, banal, banal. Um conjunto de símbolos sem qualquer significado. 2. Orquestra: suficiente com um maestro esforçado, mas barulhento. 3. Coro: fraquinho. 4. Cantores: Mosuc sempre estridente, não tem voz para o papel, salvando-se o O dolce guidami; Seymour esteve bem e Percy foi o melhor e mais surpreendente da noite; os restantes foram regulares. Foi uma récita, ainda assim, acima da média para o que tem sido hábito no TNSC.
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