CARMEN
(Georges Bizet)
Ópera em três Actos
(1875)
Libreto de Ludovic Halévy e
Henri Meilhac, baseado na novela homónima de Prosper Mérimée.
Direcção musical: Rory
Macdonald
Encenação: Calixto
Bieito
Responsável pela reposição:
Joan Anton Rechi
Cenografía: Alfons Flores
Luzes: Bruno Poet
Roupas: Mercè Paloma
Carmen: Justina Gringyte
Micaela: Sarah-Jane Brandon
Don José: Lukhanyo Moyake
Frasquita: Joana Seara
Mercédès: Carla Simões
Escamillo: Nicholas
Brownlee
Le Dancaïre: Tiago Matos
El Remendado: Carlos
Guilherme
Zúñiga: Keel Watson
Morales: Diogo Oliveira
Orquestra Sinfónica
Portuguesa
Coro do Teatro Nacional de
São Carlos Dir: Giovanni Andreoli
Coro Juvenil de Lisboa
Dir: Nuno Margarido Lopes
Produção: Versão inicial
Festival Castell de Peralada (1999). Liceu (Barcelona 2010), English National
Opera (Londres 2012), Teatro Regio (Torino 2012), Den Norske Opera &
Ballett (Oslo 2014)
Calixto Bieito é um vulgar
agitador, e se dúvidas houvesse a esse respeito o espectáculo agora apresentado
no São Carlos expõe à evidência a natureza vulgar e provocatória da sua
intervenção cénica.
Para nossa desgraça maior o
encenador não esteve certamente presente nos trabalhos de preparação desta
reposição. Esses trabalhos foram assim entregues a Joan Anton Rechi.
Esta circunstância
impede-nos portanto de apurar com segurança quem é o principal responsável pela
tonalidade geral que impregna todo o espectáculo. Expliquemo-nos.
A Carmen de Mérimée é uma
provocadora, e os libretistas de Bizet não quiseram felizmente retirar à
personagem da ópera essa característica nuclear. Ela é aliás uma das razões
para o sucesso global da personagem, na ópera ou nos múltiplos outros suportes
de difusão que se conhecem.
Sendo assim, o aparecimento
de uma proposta cénica operática em que, por uma vez, esperamos ver uma Carmen
não convencional, vivendo a sua natureza provocatória em contextos não
convencionais, estranhos à pacata moralidade burguesa que nas propostas mais
comuns informa a generalidade da acção, seria um motivo de benévola
expectativa.
Um encenador conhecido pela
sua apetência pela provocação e pela originalidade das suas propostas pareceria
portanto uma boa escolha para este espectáculo.
Porém uma provocação por si
só não tem qualquer valor intrínseco. Ela apenas se transforma numa mais-valia
quando a transgressão se fundamenta numa análise inteligente da realidade sobre
a qual opera.
Nessa circunstância a
transgressão funciona como revelador violento de algo sobre essa realidade,
sendo então a violência da revelação o fundamento da provocação. As
consequências deste tipo de intervenção são em geral devastadoras, e o
provocador sabe disso e está preparado para as sofrer.
Voltemos agora ao palco do teatro.
Na ópera, tal como na
novela de Mérimée, a provocadora Carmen morre. Porém a provocação multiforme
proposta por este encenador não conduzirá nunca à sua morte, mesmo figurada: de
facto não decorre do espectáculo qualquer risco real para ele, porque não
existe por detrás do que nos mostra qualquer vestígio de proposta inteligente
perceptível.
Pelo contrário. A suposta
provocação transforma-se aqui numa exibição gratuita de quadros aparentemente
em conflito com o imaginário mais comum, quadros susceptíveis de acolher pela
sua forma propósitos de transgressão, mas infelizmente desprovidos de qualquer
conteúdo susceptível de ser percebido com fundamento na história.
E portanto os personagens
são bonecos vazios que debitam de forma mais ou menos competente as suas
partes, encontrando-se os espectadores reduzidos pelo encenador à condição de
frágeis consciências prontas a ser passivamente submetidas à exibição daqueles
quadros.
De tal exibição resultará
forçosamente algum escândalo, elemento importante para o sucesso comercial do
evento, mas nada de mais grave. Para o encenador o reforço da sua aura de
provocador e algum proveito mais, para algum público um motivo de consolidação
e reforço das suas convicções mais arreigadas, afinal e de forma paradoxal o
oposto ao resultado esperado de uma real provocação.
Mas a Carmen é também, não
esqueçamos, um exotismo. Ela é um florão requintado de algumas características
meridionais que ainda hoje continuam a ser um motivo de admiração beata para
alguma intelectualidade artística de além Pirenéus.
Ora esse efeito de
deslocalização, que é o substrato do exotismo, encontra-se neste caso
grandemente atenuado pela transposição da acção para um período da actualidade
recente. Não é seguro se estamos no período final do franquismo ou no reinício
da monarquia espanhola (ao contrário da utilizada no São Carlos, a bandeira
usada na versão original é a do primeiro destes períodos), em todo o caso
estamos certamente na segunda metade do século XX, portanto num ambiente que nos
é ainda bastante familiar.
Neste contexto para obter o
mesmo efeito torna-se necessário compensar tal familiaridade pela utilização de
um registo dramático menos comum. Terá sido essa a razão para a escolha de um
ambiente geral retirado do imaginário sado-masoquista no desenho dos
personagens?
É que, sem motivo aparente
dedutível da história original, tudo na opção dramatúrgica escolhida aponta
nesse sentido, desde o pingalim usado na cena inicial para o “tratamento” de
Micaela por Morales até à violenta cuspidela de Micaela sobre uma Carmen
prostrada no chão na patética cena final do seu reencontro com Don José.
E todos os estereótipos de
tal imaginário percorrem regularmente o espectáculo, onde as correias de couro,
os sapatos de tacão alto pontiagudo, as poses agressivas, os gestos codificados
impregnam todas as interacções entre os personagens, numa fúria expositiva que
por momentos quase roça o obsceno quando introduz em cena sugestões de
pedofilia ou de exibicionismo e voyeurismo.
Não nos é possível saber se
esta opção dramatúrgica totalmente gratuita é propósito da encenação original
ou se resulta de uma perspectiva específica desta reposição. Certo é que ela
evidencia a natureza vulgar da provocação tornando-a portanto demasiado
evidente e… inócua.
Como sempre acontece nestes
casos, muitos fumos e alguma nudez, cambalhotas acrobáticas e luzes violentas
nos olhos do espectador, múltiplos adereços e artefactos de vária natureza e
bastas incoerências ou incongruências lógicas são alguns dos recursos
utilizados pelo encenador para iludir a realidade: um espectáculo plasticamente
feio e conceptualmente vazio. A verdadeira Carmen não passou por aqui.
O comentário sobre a forma
como foi operacionalizado este vazio será portanto necessariamente breve.
A direcção musical foi
paupérrima, evidenciando total incapacidade para controlar executantes e
cantores, com muitos momentos de total desacerto sobretudo no que respeita às
prestações da protagonista titular.
A orquestra soou em geral
como uma banda filarmónica acompanhando uma procissão de rua, sem cordas, sem
outra dinâmica para além da regular marcação do passo ao som de tambores e
sopros, estes frequentemente infelizes.
Quanto aos cantores
principais, para além de uma geral inexistência dramática, deve realçar-se a
frequente desafinação de Escamillo, ultrapassando o suportável num teatro
profissional.
Os frequentes e violentos
ruídos criados por imposição da encenação em longas sobreposições à belíssima
música de Bizet, com o seu auge na cena da desmontagem do emblemático touro no
início do terceiro acto, se por um lado ajudam a esquecer e disfarçam a pobreza
da execução musical apresentada, constituem por outro lado um verdadeiro
retrato e a síntese do espectáculo: para esquecer.
José António Miranda
13/10/2016
Excelente! Gostei muita da sua análise.
ResponderEliminarE revolta-me que Micaela seja assim mal tratada - sempre simpatisei com a personagem ;)
Excelente texto!
ResponderEliminarÉ bom rever esse blog.
Um abraço do Brasil