Assiste-se actualmente à estreia (!) da última
ópera de Tchaikovsky no Metropolitan Opera de Nova Iorque.
Trata-se da ópera Iolanta, op. 69,
que foi composta e estreada em São Petersburgo em 1892 no Teatro Mariinsky. O
libreto é do irmão mais novo do compositor — Modest Tchaikovsky — e baseia-se na peça dinamarquesa Kong
Rénes Datter (A Filha do Rei René) de Henrik Hertz.
A ópera desenrola-se em 4 cenas de um único
acto e trata de uma princesa que nasceu cega e que se vê privada não só desse
sentido, mas de todo o conhecimento do que é a visão, uma vez que o seu pai
deliberadamente lho esconde. Iolanta desconhece o que é ver, o que é a luz, as
cores, ou tudo o que a visão pode representar. Para ela, os olhos servem para
chorar e isso dá-lhe alívio às suas amarguras. Poderão ler uma sinopse aqui.
Trata-se de uma ópera sobre a descoberta dos
sentidos e sobre o poder do amor de transformar e curar. E a música de
Tchaikovsky é esplendorosa!
O elenco escolhido foi de altíssimo nível. Para
começar, a orquestra foi dirigida pelo grande maestro russo Valéry Gergiev, um especialista neste
reportório e que, em 2009, já tinha dirigido muitos destes cantores no Teatro
Mariinsky nesta mesma ópera e com a mesma encenação. A orquestra esteve
fabulosa, a explorar todas as sonoridades tchaikovskianas.
A estrela maior era, naturalmente, a soprano
russa Ana Netrebko. Iolanta é uma personagem
ambivalentemente frágil. Se, por um lado, é cega e dependente de terceiros,
vivendo ignorantemente com isso e maravilhada pelo mundo das pessoas e da
simplicidade das coisas (a ajuda que os outros lhe dão, o som de um riacho,
etc.), por outro tem um forte desejo de superação, de procura e de justiça.
Netrebko esteve, como habitualmente, a um nível estrelar, com uma voz límpida,
cheia, plena de vida. E cenicamente representou ao mais alto nível a
fragilidade de alguém que se vê privado de um dos órgãos dos sentidos que mais
liberdade nos dá. Esteve magnífica no arioso Atchevo eta prezhde ne znala (Porque não soube disto antes?), bem
como no dueto com Vaudémont Tvajo
malchan’je nepan atna (Não compreendo o teu silêncio) onde revelou uma
excelente ligação a Beczala. Está nas suas sete quintas neste reportório russo
e o prazer que tem a cantá-lo é evidente.
Vaudémont foi o tenor polaco Piotr Beczala. A personagem representa um homem que se apaixona à
primeira vista pela frágil Iolanta e que, nesse instante, percebe que dará a
sua vida por ela, aceitando-a tal como é. Beczala é um dos melhores tenores da
actualidade (senão mesmo o melhor!) e demonstrou-o uma vez mais. A sua
interpretação foi de grande nível.
Aleksei
Markov foi o Duque Robert. É uma personagem que estava prometida em casamento a
Iolanta, mas que, não por conhecer o seu estado, está apaixonado por outra
nobre e que, por isso, pretende romper o contrato. Markov apresentou-se a um nível elevadíssimo, apresentando uma voz
de barítono cheia, com uma capacidade de projecção digna de nota e enorme
expressividade. A sua ária Kto mozhet
sravnit’sja s Matil’doj moej (Quem se pode comparar à minha Matilda?) foi
fantástica.
O baixo ucraniano Ilya Bannik foi o Rei
René. Tem um grave profundo, uma excelente projecção e expressividade vocal
e cénica, transmitindo com intensidade as angústias e dúvidas da personagem. O
barítono Elchin Azizov do Azerbaijão
foi o médico mouro Ibn-Hakia. Exibiu-se em bom nível, embora não me tenha
encantado. As restantes personagens foram interpretadas por um elenco
equilibrado e sem falhas.
Deixei a encenação propositadamente para o
final. A produção de Mariusz Trelinski
é a que este já apresentara no Mariinsky. É interessante a forma como usa
elementos de vídeo que se projectam em torno de uma caixa – pequeno ponto
central da acção e do palco, envolto por um estranho mundo sombrio – que
funciona como o quarto de Iolanta e que, com movimentos circulares, permite
descobrir outras partes do palco de modo a representar as restantes cenas desta
ópera de acto único. Acho que é uma encenação eficaz e que tem como elemento
mais arrepiante a escuridão com que inunda a sala quando Vaudémont faz Iolanta
descobrir que é cega. Não gostei apenas do facto de, na primeira cena, as
cuidadoras de Iolanta adoptarem uma postura trocista. Mas, encenação por
encenação, gostei mais daquela a que assisti no Teatro Real com Peter Sellars: mais simples, mais introspectiva, a trazer-nos a luz de outra forma.
Mariusz
Trelinski foi quem sugeriu a Peter
Gelb a realização de uma jornada dupla, juntando a Iolanta a ópera em um acto O Castelo do Barba Azul do húngaro Béla Bartók. A razão é a forma como se
tocam de alguma forma, não apenas por serem ambas histórias do imaginário fantástico.
Judith está cega pelo amor que nutre por Barba Azul e obstinadamente procura
que Barba Azul lhe revele os seus segredos e o seu verdadeiro eu, sabendo dos
rumores que correm de que todas as suas anteriores esposas haviam sido mortas. Fá-lo,
de alguma forma, de um modo masoquista, explorando e confrontando Barba Azul
com as suas fragilidades de homem fúnebre, reservado e atormentado pelo
passado. Mas Barba Azul, tal como René, esconde a Judith a verdade da situação
em que vive e que a espera. Este é o paralelo. Mas a ópera de Bartók é um
imenso drama psicológico ao nível dos melhores e mais elaborados thrillers. Poderão ler uma sinopse aqui.
O libreto baseia-se na peça La
Barbe bleue de Charles Perrault
e foi escrito entre 1908-10 pela mão de Béla
Balázs que o dedicou em conjunto aos seus amigos Bartók e Kodály. Foi a
Béla Bartók quem coube, para apresentação num concurso em 1911, escrever a música.
Assim, nasceu esta ópera interessantíssima pela enorme densidade psicológica e
dramática que encerra, acompanhada por uma música inspiradíssima e moderna.
A encenação é fabulosa e penso que se poderá
considerar um exemplo do que é a utilização das novas tecnologias na ópera
actual. Começa com o prólogo em que Bardo convoca a audiência a observar a cena
que se vai desenrolar e nos questiona se fazemos parte ou não do que vamos ver.
Fá-lo com vídeo em que se vêm imensos troncos de árvores numa floresta sombria
e escura acompanhados pelo som horripilante do ranger dos troncos. Entretanto
Bardo fala-nos com voz pesada através do sistema de amplificação do teatro.
Está criado o cenário tenso e escuro que nos transporta para o sombrio castelo
de Barba Azul e as suas 7 misteriosas portas. Surge Judith de vestido verde com
Barba Azul de fraque. Chega num carro onde é entregue ao esposo no meio da
floresta. Entram numa espécie de garagem e, rapidamente, se desenrola a acção.
As duas personagens entram depois num elevador panorâmico em que, de lado,
surge uma projecção de vídeo de um corredor com várias portas. Depois é o
desfilar de cenários: a câmara de tortura com a parede manchada de sangue, uma
banheira onde Judith surge despida e descobre as jóias manchadas de sangue,
etc.
Tudo isto até à cena final em que
há um corpo semienterrado que é o de Judith. Judith está horripilada com a sua
própria imagem morta. As outras mulheres de Barba Azul dançam ao fundo e Judith
antevê o seu fim. Barba Azul canta as virtudes das suas três mulheres (o
amanhecer, o fulgor do sol do meio-dia, o entardecer, e a Judith o esplendor da
luz da lua da meia-noite). Judith torna-se mais uma das mulheres eternas de
Barba Azul. Fecha-se a sétima porta e cai o pano. Resultou tudo muito bem, num
estilo muito cinematográfico e que nos conseguiu transmitir toda a tensão desta
peça de uma forma que nos colou à cadeira e ao ecrã.
Para tal sensação não foi de menor relevo a
interpretação excepcional de Valéry
Gergiev aos comandos da competentíssima orquestra da Metropolitan Opera. Há uma mudança de paradigma musical clara entre
a delicadeza exuberante de Tchaikovsky e a dureza da música escura da primeira
metade do século XX de Bartók.
Além de Gergiev, a dupla de cantores esteve em
destaque. A soprano alemã Nadja Michael (muito
conhecida pelo seu papel de Salomé) foi uma Judith perfeita: voz completa,
potente, expressiva e sofrida aliada a uma intensidade dramática e postura que
conseguiu tornar a sua personagem muito credível. Aumentou a intensidade
dramática ao longo de uma hora de uma forma angustiante à medida que percebia
que o seu fim estava próximo, expondo a fragilidade dúbia da personagem.
Formidável!
Também o baixo russo Mikhail Petrenko foi um Barba Azul de excelência: voz escura e poderosa aliada a
uma postura cénica contida, negra e misteriosa, condimentando bem a personagem.
Foi um Castelo do Barba Azul absolutamente
genial e a que tiro o chapéu a Mariusz
Trelinski e a Nadja Michael!
Obrigado por esta óptima apreciação, camo_opera!
ResponderEliminarSó tive possibilidade de assistir à Iolanta. Gostei muito da encenação, conceptualmente pareceu-me muito boa, mas acho que no final perdeu o fôlego. Quanto aos cantores, estou de acordo consigo: Netrebko e Beczala ao mais alto nível, Markov excelente, Bannik muito bom e os outros aceitáveis.
Depois de ler o seu texto fiquei ainda com mais pena de não ter podido ver o Castelo do Barba Azul, mas espero ter essa possibilidade numa próxima vez!
Markov é hoje uma das estrelas do Mariinsky. Voz potente, mas personagem por vezes pouco trabalhada e--infelizmente dada a grande qualidade da voz--sem agudos. Quando vi esta encenação no Mariinsky em Agosto do ano passado, o rei foi cantado por um grande barítono russo (está a escapar-me o nome) que tem também um dos defeitos de Markov: é muito exibicionista. Mas suponho que os americanos não lhe tenham dado esse espaço de manobra. Aliás, um dos problemas do Mariinsky é a falta de ensaios.
EliminarNetrebko-Iolanta é terrível. Praise tal desempenho - top falta de profissionalismo. Ouça a Tamara Milashkina (por escrito) - que é o verdadeiro Iolanthe.
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