domingo, 15 de fevereiro de 2015

IOLANTA de P. I. Tchaikovsky e O CASTELO DO BARBA AZUL de B. Bartók


Assiste-se actualmente à estreia (!) da última ópera de Tchaikovsky no Metropolitan Opera de Nova Iorque. Trata-se da ópera Iolanta, op. 69, que foi composta e estreada em São Petersburgo em 1892 no Teatro Mariinsky. O libreto é do irmão mais novo do compositor — Modest Tchaikovsky — e baseia-se na peça dinamarquesa Kong Rénes Datter (A Filha do Rei René) de Henrik Hertz.


A ópera desenrola-se em 4 cenas de um único acto e trata de uma princesa que nasceu cega e que se vê privada não só desse sentido, mas de todo o conhecimento do que é a visão, uma vez que o seu pai deliberadamente lho esconde. Iolanta desconhece o que é ver, o que é a luz, as cores, ou tudo o que a visão pode representar. Para ela, os olhos servem para chorar e isso dá-lhe alívio às suas amarguras. Poderão ler uma sinopse aqui.

Trata-se de uma ópera sobre a descoberta dos sentidos e sobre o poder do amor de transformar e curar. E a música de Tchaikovsky é esplendorosa!


O elenco escolhido foi de altíssimo nível. Para começar, a orquestra foi dirigida pelo grande maestro russo Valéry Gergiev, um especialista neste reportório e que, em 2009, já tinha dirigido muitos destes cantores no Teatro Mariinsky nesta mesma ópera e com a mesma encenação. A orquestra esteve fabulosa, a explorar todas as sonoridades tchaikovskianas.


A estrela maior era, naturalmente, a soprano russa Ana Netrebko. Iolanta é uma personagem ambivalentemente frágil. Se, por um lado, é cega e dependente de terceiros, vivendo ignorantemente com isso e maravilhada pelo mundo das pessoas e da simplicidade das coisas (a ajuda que os outros lhe dão, o som de um riacho, etc.), por outro tem um forte desejo de superação, de procura e de justiça. Netrebko esteve, como habitualmente, a um nível estrelar, com uma voz límpida, cheia, plena de vida. E cenicamente representou ao mais alto nível a fragilidade de alguém que se vê privado de um dos órgãos dos sentidos que mais liberdade nos dá. Esteve magnífica no arioso Atchevo eta prezhde ne znala (Porque não soube disto antes?), bem como no dueto com Vaudémont Tvajo malchan’je nepan atna (Não compreendo o teu silêncio) onde revelou uma excelente ligação a Beczala. Está nas suas sete quintas neste reportório russo e o prazer que tem a cantá-lo é evidente.


Vaudémont foi o tenor polaco Piotr Beczala. A personagem representa um homem que se apaixona à primeira vista pela frágil Iolanta e que, nesse instante, percebe que dará a sua vida por ela, aceitando-a tal como é. Beczala é um dos melhores tenores da actualidade (senão mesmo o melhor!) e demonstrou-o uma vez mais. A sua interpretação foi de grande nível.



Aleksei Markov foi o Duque Robert. É uma personagem que estava prometida em casamento a Iolanta, mas que, não por conhecer o seu estado, está apaixonado por outra nobre e que, por isso, pretende romper o contrato. Markov apresentou-se a um nível elevadíssimo, apresentando uma voz de barítono cheia, com uma capacidade de projecção digna de nota e enorme expressividade. A sua ária Kto mozhet sravnit’sja s Matil’doj moej (Quem se pode comparar à minha Matilda?) foi fantástica.

O baixo ucraniano Ilya Bannik foi o Rei René. Tem um grave profundo, uma excelente projecção e expressividade vocal e cénica, transmitindo com intensidade as angústias e dúvidas da personagem. O barítono Elchin Azizov do Azerbaijão foi o médico mouro Ibn-Hakia. Exibiu-se em bom nível, embora não me tenha encantado. As restantes personagens foram interpretadas por um elenco equilibrado e sem falhas.


Deixei a encenação propositadamente para o final. A produção de Mariusz Trelinski é a que este já apresentara no Mariinsky. É interessante a forma como usa elementos de vídeo que se projectam em torno de uma caixa – pequeno ponto central da acção e do palco, envolto por um estranho mundo sombrio – que funciona como o quarto de Iolanta e que, com movimentos circulares, permite descobrir outras partes do palco de modo a representar as restantes cenas desta ópera de acto único. Acho que é uma encenação eficaz e que tem como elemento mais arrepiante a escuridão com que inunda a sala quando Vaudémont faz Iolanta descobrir que é cega. Não gostei apenas do facto de, na primeira cena, as cuidadoras de Iolanta adoptarem uma postura trocista. Mas, encenação por encenação, gostei mais daquela a que assisti no Teatro Real com Peter Sellars: mais simples, mais introspectiva, a trazer-nos a luz de outra forma.


Mariusz Trelinski foi quem sugeriu a Peter Gelb a realização de uma jornada dupla, juntando a Iolanta a ópera em um acto O Castelo do Barba Azul do húngaro Béla Bartók. A razão é a forma como se tocam de alguma forma, não apenas por serem ambas histórias do imaginário fantástico. Judith está cega pelo amor que nutre por Barba Azul e obstinadamente procura que Barba Azul lhe revele os seus segredos e o seu verdadeiro eu, sabendo dos rumores que correm de que todas as suas anteriores esposas haviam sido mortas. Fá-lo, de alguma forma, de um modo masoquista, explorando e confrontando Barba Azul com as suas fragilidades de homem fúnebre, reservado e atormentado pelo passado. Mas Barba Azul, tal como René, esconde a Judith a verdade da situação em que vive e que a espera. Este é o paralelo. Mas a ópera de Bartók é um imenso drama psicológico ao nível dos melhores e mais elaborados thrillers. Poderão ler uma sinopse aqui.


O libreto baseia-se na peça La Barbe bleue de Charles Perrault e foi escrito entre 1908-10 pela mão de Béla Balázs que o dedicou em conjunto aos seus amigos Bartók e Kodály. Foi a Béla Bartók quem coube, para apresentação num concurso em 1911, escrever a música. Assim, nasceu esta ópera interessantíssima pela enorme densidade psicológica e dramática que encerra, acompanhada por uma música inspiradíssima e moderna.

A encenação é fabulosa e penso que se poderá considerar um exemplo do que é a utilização das novas tecnologias na ópera actual. Começa com o prólogo em que Bardo convoca a audiência a observar a cena que se vai desenrolar e nos questiona se fazemos parte ou não do que vamos ver. Fá-lo com vídeo em que se vêm imensos troncos de árvores numa floresta sombria e escura acompanhados pelo som horripilante do ranger dos troncos. Entretanto Bardo fala-nos com voz pesada através do sistema de amplificação do teatro. Está criado o cenário tenso e escuro que nos transporta para o sombrio castelo de Barba Azul e as suas 7 misteriosas portas. Surge Judith de vestido verde com Barba Azul de fraque. Chega num carro onde é entregue ao esposo no meio da floresta. Entram numa espécie de garagem e, rapidamente, se desenrola a acção.



As duas personagens entram depois num elevador panorâmico em que, de lado, surge uma projecção de vídeo de um corredor com várias portas. Depois é o desfilar de cenários: a câmara de tortura com a parede manchada de sangue, uma banheira onde Judith surge despida e descobre as jóias manchadas de sangue, etc.  




Tudo isto até à cena final em que há um corpo semienterrado que é o de Judith. Judith está horripilada com a sua própria imagem morta. As outras mulheres de Barba Azul dançam ao fundo e Judith antevê o seu fim. Barba Azul canta as virtudes das suas três mulheres (o amanhecer, o fulgor do sol do meio-dia, o entardecer, e a Judith o esplendor da luz da lua da meia-noite). Judith torna-se mais uma das mulheres eternas de Barba Azul. Fecha-se a sétima porta e cai o pano. Resultou tudo muito bem, num estilo muito cinematográfico e que nos conseguiu transmitir toda a tensão desta peça de uma forma que nos colou à cadeira e ao ecrã.


Para tal sensação não foi de menor relevo a interpretação excepcional de Valéry Gergiev aos comandos da competentíssima orquestra da Metropolitan Opera. Há uma mudança de paradigma musical clara entre a delicadeza exuberante de Tchaikovsky e a dureza da música escura da primeira metade do século XX de Bartók.


Além de Gergiev, a dupla de cantores esteve em destaque. A soprano alemã Nadja Michael (muito conhecida pelo seu papel de Salomé) foi uma Judith perfeita: voz completa, potente, expressiva e sofrida aliada a uma intensidade dramática e postura que conseguiu tornar a sua personagem muito credível. Aumentou a intensidade dramática ao longo de uma hora de uma forma angustiante à medida que percebia que o seu fim estava próximo, expondo a fragilidade dúbia da personagem. Formidável!


Também o baixo russo Mikhail Petrenko foi um Barba Azul  de excelência: voz escura e poderosa aliada a uma postura cénica contida, negra e misteriosa, condimentando bem a personagem.



Foi um Castelo do Barba Azul absolutamente genial e a que tiro o chapéu a Mariusz Trelinski e a Nadja Michael!

3 comentários:

  1. Obrigado por esta óptima apreciação, camo_opera!
    Só tive possibilidade de assistir à Iolanta. Gostei muito da encenação, conceptualmente pareceu-me muito boa, mas acho que no final perdeu o fôlego. Quanto aos cantores, estou de acordo consigo: Netrebko e Beczala ao mais alto nível, Markov excelente, Bannik muito bom e os outros aceitáveis.
    Depois de ler o seu texto fiquei ainda com mais pena de não ter podido ver o Castelo do Barba Azul, mas espero ter essa possibilidade numa próxima vez!

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    1. Markov é hoje uma das estrelas do Mariinsky. Voz potente, mas personagem por vezes pouco trabalhada e--infelizmente dada a grande qualidade da voz--sem agudos. Quando vi esta encenação no Mariinsky em Agosto do ano passado, o rei foi cantado por um grande barítono russo (está a escapar-me o nome) que tem também um dos defeitos de Markov: é muito exibicionista. Mas suponho que os americanos não lhe tenham dado esse espaço de manobra. Aliás, um dos problemas do Mariinsky é a falta de ensaios.

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  2. Netrebko-Iolanta é terrível. Praise tal desempenho - top falta de profissionalismo. Ouça a Tamara Milashkina (por escrito) - que é o verdadeiro Iolanthe.

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