(Capa do Programa : Divã do Dr.
Sigmund Freud, Museu Freud, Londres)
( English version below)
Autor: De Moura MC, Lisboa
Assisti a Die Frau ohne Schatten na Bayerische
Staatsoper, integrada no Festival de
Ópera de Munique, 29 de Junho de 2014.
Esta ópera de Richard
Strauss foi escolhida para a reabertura do Teatro Nacional em 1963
depois da sua reconstrução na sequência do bombardeamento de 1943. Regressa em
21 Novembro de 2013, 50 anos da data
histórica, produção do realizador Krzysztof
Warlikowski e apresentação do novo director musical Kirill Petrenko. Ópera em 3 actos, com libreto de Hugo von Hofmannsthal, foi estreada em Viena, 1919. A versão
escolhida por Petrenko é a partitura completa, diferente do hábito corrente de
usar versões com cortes.
O enredo situa-se num
passado mítico e desenrola-se em três níveis de existência.
A filha do Rei dos Espíritos (Keikobad) foi conquistada pelo Imperador; ela não
é espírito nem humano. Não tem sombra (o que significa que é infértil). Uma
grande ameaça paira sobre ambos: se não se tornar humana, o Imperador
transformar-se-á em pedra. A Imperatriz pede ajuda à enfermeira que a acompanha
e descem ao mundo dos humanos. Procuram uma mulher infeliz que recusa o marido
(Barak, o tintureiro) e pensa vender a sua sombra. A ideia não agrada à
Imperatriz que acaba por recusar. Esta recusa torna a Imperatriz humana. O
imperador regressa à vida e ela adquire uma sombra. Os dois casais reúnem-se, e
ouvem-se as vozes das crianças que esperam nascer num futuro distante.
O elenco de
cantores é do melhor que se consegue actualmente. Adrianne Pieczonka (Imperatriz) , excelente soprano canadiana tem
uma voz de belo timbre, enorme flexibilidade vocal, e constrói uma emocionante “Kaiserin”.
A cena com Keikobad (julgamento ?) no Acto 3 em que pronuncia as palavras fatídicas
“ Ich will nicht “ é de antologia.
Um caso á parte, a
soprano dramática russa Elena Pankratova
(Mulher de Barak), que teve uma interpretação superlativa, de incrível domínio vocal e cénico. Grande impacto na
expressão de descontentamento e nas cenas de sedução do Acto 2 , ternura e desespero na
extraordinária ária de arrependimento do Acto 3. A beleza do canto distingue toda sua
prestação.
Johan Botha (Imperador), heldentenor
reconhecido, a voz de timbre bonito é imponente em todos os registos. Certa
rigidez cénica que empresta a um personagem que vai petrificar.
John Lundgren (Barak), barítono
sueco, foi notável. O timbre de um cantor de Lied, tem a presença e a simpatia
do personagem humano (é a única figura da opera com um nome real). A mezzo americana Deborah
Polaski (Enfermeira) é reputada em Strauss e Wagner. A sua voz revela já
alguma fragilidade, mas manteve a tessitura adequada. Grande actriz, foi excelente
a composição cénica da personagem ambígua, sensacional na loucura do fim. Os outros
papeis estiveram muito bem, Sebastian
Holecek, poderoso Mensageiro dos Espíritos, Eri Nakamura, bela Voz do Falcão, Okka von der Damerau, serena Voz do Além e Hanna-Elisabeth Müller, seguro Guardião do Limiar do Templo. A actriz Renate Jett, represnta Keikobad (papel
não falado).
(Photo Wilfried Hösl, Bayerische Staatsoper)
Bayerischen Staatsorchester (BSO), Coro da BSO e Coro Infantil
da BSO interpretações brilhantes. Com Strauss no seu ADN, os músicos foram os
primeiros heróis da noite, revelando toda a grandeza e requinte musical desta
partitura maior e complexa. Sebastian
Weigle, maestro alemão, recebeu a orquestra preparada por Petrenko (ausente
em Bayreuth para o “Anel” de Wagner) mas teve o mérito da direcção transparente
e dinâmica que conferiu coerência ao todo. Revelou elegância e inteligência na condução
dos cantores. Foi esmerado nos detalhes, como o monólogo do Imperador no Acto 2,
e o solo do primeiro violino no Acto 3.
A orquestra teve grandes
momentos, como a explosão dramática do final cataclísmico do Acto 2 e nos tutti
que encerram o conto.
A régie superior do grande
realizador polaco merece nota máxima. Inspirado no filme de Alain Resnais, “L´Année
Dernière à Marienbad“(1961), são projectadas várias sequências, desse labirinto
surreal de sonhos e memórias, antes de se ouvir o motivo de Keikobad que inicia
a opera. A soberba cenografia da grande decoradora Malgorzata Szczesniak modula um espaço poético e onírico, de
espectacular beleza plástica. Warlikowski consegue a integração dos cantores no
seu conceito de “teatro completo“.
(Photo Wilfried Hösl, Bayerische Staatsoper)
Vídeos e trabalho de animação notáveis,
de Denis Guéguin e Kamil Polak, projectados nas paredes de
tijolo branco de um sanatório (ou hospital
?). Clareza na definição dos espaços: divã da Imperatriz num ambiente
confortável face à simples cama e máquina de lavar roupa dos Barak. Um elevador
faz a ligação entre os dois mundos: o cunho pessoal de Warlikowski. As sequências alucinantes de vídeos da Floresta e
Debaixo de Agua (deflagração de uma guerra?) introduzem a magia inesperada
nesta ópera fantástica. Na cena do Imperador no pavilhão dos Falcões no Acto 2
as crianças usando grandes máscaras de Falcão evocam o mundo dos sonhos e do
subconsciente que a musica potente de Strauss
e o texto de Hofmannstahl sugerem. A
menina loira que acompanha a Imperatriz pela mão (a Kaiserin na infância)
lembra o mundo onírico em que a Imperatriz parece viver. Keikobad, um velho muito curvado faz aparições regulares,
apoiado numa bengala.
(Photo Wilfried Hösl, Bayerische Staatsoper)
Na grande cena final é
interessante a dicotomia: ao fundo um muro azul onde se projectam as sombras e
o movimento das crianças que esperam nascer, de grande beleza. No proscénio
ocorre o brinde de champagne dos pares reencontrados, a acidez da realidade
burguesa. Para Warlikowski o
trajecto dos casais que se tornaram finalmente humanos é complexo e
provavelmente não tem “happy ending“.
Partilho a sua visão. O final que se segue ao reencontro dos dois casais pode
ser um grande ponto de interrogação. Na mesa onde está o quatuor jubilatório,
três têm uma criança ao colo, a Imperatriz não?
(Photo Wilfried Hösl, Bayerische Staatsoper)
Warlikoski mantem-se fiel à história original, deixa intacta a
grande obra dramática. A qualidade e a seriedade da encenação, a sua
concentração no essencial conferem unidade e força dramática a esta grande
noite de ópera. Na utopia do Acto 3 o uso superior dos vídeos e a sua beleza
poética, criam simplicidade e inteligência inesquecíveis. “Chapeau”!
Die Frau Ohne Schatten”, encenação extraordinária que
salienta a complexidade intelectual e a sumptuosidade musical e vocal.
Indiscutível triunfo de uma obra única de Strauss
e certamente um dos maiores espectáculos do aniversário dos 150 anos.
THE
WOMAN WITHOUT A SHADOW, Bayerische Staatsoper, Munich , June 2014.
I
saw the performance of the DIE FRAU OHNE
SCHATTEN at the Munich Opera Festival, 29th
June 2014. This opera from Richard Strauss was chosen for the
reopening of the National Theatre in 1963, after his reconstruction after the
II World War. Celebrating 50 years of
the historic date, a new production by Krzysztof
Warlikowski and the presentation of Kirill
Petrenko as the brand new musikdirector. Opera in three Acts, to a libretto by Hugo von Hofmannsthal, first performed in Vienna , 1919. Petrenko selected the complete uncut
score, against the current trend of using shortened versions.
Set in the mythical past the plot takes
place in three levels of existence. The daughter of the King of the Spirits (Keikobad)
has been floating in an in-between state since the human Emperor conquered her:
She is neither a spirit nor a human. A woman without a shadow – which means a
woman who is infertile. A threat hangs
over the Empress and Emperor : If she does not become fully human, he will turn
to stone. The Empress asks help from the
nurse that accompanies her to search for a shadow. They descend to the human
world, and the nurse takes the Empress to an unhappy woman who refuses her
husband's (Barak, the Dyer) advances. She is prepared to sell her shadow. However,
the prospect of the transaction does not make the Empress happy. She declares
her wish to belong to the humans. With this renunciation, Keikobad´s spell is
broken: the Emperor comes back to life , she herself casts a shadow. The
couples reunite and the voices of unborn children can be heard, a possibility for a distant
future
The singers cast is one of the best that
could be assembled today. Adrianne Pieczonka (The Empress), excellent Canadian soprano,
has a voice with a beautiful timbre, great vocal flexibility and offered
us a very moving Kaiserin. The scene
with Keikobad (a judgment ?), Act 3 , in which she pronounces the terrible words “Ich will nicht“ is truly impressive. But the
outstanding performance was Elena Pankratova (the Dyer’s Wife).
The Russian dramatic soprano sang
with a thrilling radiance, incredible
vocal and scenic qualities. She can shade her voice to express many nuances of the role, and never
seemed to have to push very hard. A compelling performer she had great impact on the
expression of her naggishness and the seduction
scenes in Act 2, specially riveting in her Act 3 aria of repentance. It
was the beauty of her singing that marks an unique performance.
Johan Botha (The Emperor), a well
known heldentenor, beautiful singing , vocally impressive, effortless power.
His scenic rigidity seems appropriate as the figure will turn into stone.
John Lundgren, a Swedish baritone, was
a notable Barak. The voice of a Lieder singer, he has the presence and the
sympathy of this figure humanity (only character with a real name). American mezzo Deborah Polaski (The Nurse), an experienced Straussian and Wagnerian
singer, throws everything at her performance. Her dramatic voice is certainly
frailer than it was, but she kept her
tessitura adequate. Great actress, she was excellent in portraying this
ambiguous personage, sensational in the final madness. The other parts were
well taken, notably so Sebastian Holecek as the powerful Spirit Messenger, Eri Nakamura sang the Voice of the Falcon, Okka von
der Damerau delivered a serene Voice from the Above
and Hanna-Elisabeth
Müller was a secure
Guardian of the Threshold. Renate Jett,
Austrian actress, represents a mute
Keikobad.
Bayerischen Staatsorchester BSO, Choir of BSO e Children
Choir da BSO were brilliant. Sebastian Weigle took over from Kirill Petrenko (in Bayreuth
for the Wagner´s Ring). Weigle led a
solid, well-paced and superior performance, and the BSO (on its finest form) responded
beautifully. He had his own merit in the transparency and dynamic direction
that gave coherence to all the massive ensemble. Weigle´s handling of
everything from the magical, intimate textures to the visceral exciting
climaxes was masterful. With elegance and intelligence he gave ideal
support to the singers. Especially notable were the Emperor´s monologue and the
solo violin of Act 3. Great moments were the dramatic explosion of the
cataclysmic final of the Act 2 and the
tutti that end the opera.
The superior new staging of the Polish
director deserves the highest mark. Inspired in Alain Resnais ´s movie “L´Année Dernière à
Marienbad “(1961), several clips were projected “ohne musik”, a surreal
labyrinth of dreams and
remembrances, before the strong Keikobad
motif with which Strauss called the audience to attention. The superb scenario
of the great decorator Malgorzata
Szczesniak modulates a dreamlike and poetic space.
Visual spectacular and
plastic beauty and the integration of the singers into Warlikowski “ total theatre “ concept, which included spell-binding
video and animation work- by Denis
Guéguin and Kamil Polak –
projected onto the white-tiled walls of a sanatorium (or hospital ?) set. Clear
definition of the spaces : the Empress´s couch in a comfortable décor face to
the simple bed and washing-machines of the dyers’ home. An elevator makes the
connection between the two worlds, with
a personal touch of the director. The Forest and Underwater video sequences brought
breath-taking magic to this fantasy opera.
In the big scene in Act 2 with the Emperor at the
“Falkenhaus”, with child actors wearing huge falcon masks, evoked the word of
dreams and the unconscious as potently as Strauss´s music and Hofmannsthal’s
text do. The blonde little girl that accompanies by the hand the Empress (the
Kaiserin in infancy?) recalls the dreamlike world in which the Empress seems to
live.
Keikobad, an old man very curved made regular
appearances propped up on a walking stick. The final scene is dominated by a large number
of children whose playful actions are shown as shadows on the back blue wall, great
beauty , on the proscenium the reunited couples toast champagne, the acid
reality of the bourgeoisie.
For Warlikowski the journey of the couples
that have assumed humanity is complex and mostly probably does not have a happy
ending. I agree with his artistic vision. What happens after the final
encounter of the beautiful two couples can be a great question mark. In the
round table where the jubilatory quatuor feasts, three have a child seated on
the lap, but the Empress has not?
Warlikovski keeps
his fidelity to the original plot, and leaves intact the great dramaturgic
work. The quality and seriousness of the staging, his focus on the essential,
give unity and strength to this great opera evening. In the utopia of Act 3 the
superior use of videos and the poetic beauty, create simplicity and
intelligence.” Chapeau”!
Die Frau ohne Schatten , an extraordinary staging that
enhances the intellectual complexity and the musical and vocal sumptuosity.
Great triumph of Richard Strauss
most complex and enigmatic opera, this will certainly be one of the major
achievements of the Strauss anniversary year.
É com enorme satisfação e grande orgulho que colocamos este magnífico texto (e fotografias) sobre “Die Frau ohne Schatten” na Bayerische Staatsoper, da autoria de MC de Moura. A qualidade do texto deixa transparecer, inequivocamente, a expertise do autor, que pela primeira vez enviou uma crítica para o “Fanáticos da Ópera” que, assim, ficou mais rico. Em nome dos “Fanáticos”, Muito Obrigado!
ResponderEliminarAgradeço o seu amável comentário e fiquei naturallmente sensibilizado. Foi um prazer e uma honra colaborar no " Fanáticos da Ópera " que muito admiro e que regularmente acompanho. Aprecio a diversidade e a qualidade das obras abordadas e dos comentarios.
EliminarCaro MC de Moura, Muito obrigado pela sua colaboração no seu/nosso blogue. O seu óptimo texto espelha inequivocamente a qualidade da récita a que teve oportunidade de assistir. Realmente, com encenações e elencos de excelência não há como negar a vitalidade que a ópera tem hoje em dia. Espero que continue a brindar-nos com a sua superlativa colaboração. Pena que não seja versado em Strauss: confesso que me aguçou o desejo de conhecer mais a fundo esta ópera. Obrigado.
ResponderEliminarAgradeço o comentário que faz à minha apreciação da grande ópera de Strauss , pouco conhecida e que tive a oportunidade de ver pela primeira vez nesta produção superior que aonselho. Na programação 2014/2015 Munique retoma " Frau Ohne Schatten " em Dezembro com Petrenko e um novo elenco mas mantem a soprano Pankratova.
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